sábado, 31 de dezembro de 2016

Final de ano


Não dá mais para correr porque ele nos pegou em primeira mão. O final do ano nos alcança e na partida para o término não deixamos de olhar para trás, para ver retrospectivas, para fazer um balanço geral, para colocar as brigas no reformatório, para olhar no entorno do mundo - e também mais perto - tendo a certeza de que muito mal foi feito, a vida perdeu certo sentido de leveza e graça porque neste estancada geral e visão do balanço, a conta não fecha.

Melhor sentar um pouco, logo ali na virada final para ver o que estamos trazendo dentro do alforje. Este umbral do Ano Velho para o Ano Novo pode ter algum ponto sem nó, pode haver também uma magia secreta escondida junto à nossa bagagem de boas intenções. Vai que alguns ou todos os males feitos do mundo no ano passado acharam por bem pegar uma carona em nossas costas, se enfiaram na trama da mochila, se disfarçaram como do bem dentro de nossa bagagem mais pesada. A intuição falou mais alto e assim, antes de avançar no novo caminho, deixamos estes equipamentos mais doídos para trás.

Então fica decidido que levaremos apenas a bagagem de mão e que assim mais leves, sem a curva da coluna vertebral vergada de tanta desgraceira que tivemos que transportar, terá a chance de visualizar um ano que vem melhor, mais leve. A conferência do conteúdo da pequena maleta que na corrida e de última hora lembramos de enjambrar vai surpreendendo à medida que se faz a conferência dos itens. A surpresa se contabilizou porque dali nada havia de utilidade, nada de bens materiais, objetos úteis e inúteis, coleções supérfluas, bloco rabiscado, livro de cabeceira, porta retrato, fita ou laço, um grampo, uma carteira, um óculo, uma chave, um dinheiro, nada.

O que fluiu de dentro desta bolsa simplória, arranjada às pressas porque o trem do tempo não aguarda, foi, em primeiro lugar, um perfume não identificado no dia a dia, uma essência que ao ser inspirada encheu os pulmões de uma brisa que imediatamente oxigenou todas as fibras do cérebro, causando assim uma reação em cascata. A lida continuou surpreendendo porque o próximo embrulho tinha uma bela embalagem que de certo modo não podia ser vista a olho nu, porque eram palavras que se desenhavam no ar formando frases de solidariedade, de amor, de incentivo, de ajuda, de socorro, de alegria e de esperança. E deste jeito o alforje se projeta como sendo um saco de sentimentos, de desejos bons, de possibilidades de se fazer outro caminho, individual e coletivo para este Novo Ano que começa. 

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

Morada escolhida


Pensando bem, caminhei tanto que me perdi e ao perceber que não havia esforço na retomada veio ao meu encalço este lugar parecendo que nunca dele sai. Parece-me que conheço cada canto da casa e assim posso andar com os olhos vendados que em nada vou tropeçar, que todos os objetos dispostos arrumaram-se sozinhos deixando para mim apenas a observação e do mesmo jeito paredes parecem sair do lugar para me fazer circular livremente. Nas ruas a impressão é que conheço todas as pessoas por quem cruzo todos os dias e que todos os meus bons dias sempre foram dados e recebidos de volta.

A noite vai alta quando me desacomodo e busco esfriar meus pensamentos na aragem gelada desta morada praiana, sentando-me no melhor lugar com vista para o mar, que me espia escuro, rugindo descompassadamente o que soa como musica para mim. O corpo vai resfriando junto com a mente que se liquefaz tateando as cenas que parecem repetidas de outras horas que não essa. Prolongo o momento na observação da rua deserta até estremecer de medo e de frio. É um medo bom e o frio vem me avisar que de agora em diante as variações terão sempre uma benção da natureza, que ora resfria o bafão dos pensamentos obsessivos, ora o vento leva todas as pétalas para o caminho a ser trilhado e deste jeito diáfano vou vivendo por aqui.

Que modo é esse de caminhar onde os sapatos não gastam, as pegadas se esvaem no vento ou chuva, os caminhos se cruzam entre presente e passado, os encontros se esfumaçam virando alegorias, as conversas se congelam no tempo, os pontos e vírgulas somem do texto e os parágrafos se desacomodam na pauta. As buscas de outrora se cristalizaram de tal jeito que do nada viraram releituras obsoletas, as afirmações contundentes viraram pó, os amores eternos morreram antes do primeiro round. E é deste jeito que meus contornos vão se igualando a esta instalação que abriga tantos caminhos agora se permitindo ser um só.

domingo, 25 de dezembro de 2016

Ombros


Bem torneados, com a pele grudada no osso como convém, cada um com seus diferenciais como manda o figurino do nosso corpo. São eles que recebem, em primeiro lugar, toda nossa desfaçatez  ao sugerir sem a menor vergonha que ele se comprometa de carregar os sentimentos, os mais diversos, para dizer o mínimo. Como eles não podem sair do lugar, esbravejar através de gestos extemporâneos, aquiescem se tornando assim as duas pontas do esqueleto que se contorce como sendo nossos arrabaldes.

São dois arrimos que deliberam a eficácia de nos sentirmos melhor ou pior a cada amanhecer, se curvando nos agradecimentos e reverenciando o que vier pela frente, erguendo-se em lanças para possibilitar uma vista mais ampla, se comprimindo entre si para acompanhar momentos de dor, se afastando para abrir o peito e deixar ir o ar que se arrevesa emparedado. Permitem-se ser arrogantes na tentativa de demonstrar quem tem razão e o embate se faz na mudez da sua existência que pouco se expressa, mas muito carrega.

Os ombros femininos se arredondam em seu feitio se exibindo sem pudor nas instâncias das vestimentas, se aprumando e seguindo o falsear de todos os gestos estudados para atrair a quem se apresenta aos arredores de si. Por sua natureza são delicados, dançam no ritmo de todo corpo, se esgarçam na expansão da felicidade e se vergam quando o desgosto se apresenta. São delicados, mas ao mesmo tempo fortes sendo os últimos a decair enquanto de pé se encontra o corpo.

Os ombros masculinos nasceram para marcar o território e com sua conformação atrevida por natureza gosta mesmo é de exprimir sua autoridade e sua força, estabelecendo em detalhes os limites com a musculatura que, quanto mais aparente mais encanta ou mete medo. Vai dai que este cabide masculino não se encurva como touceira de bambuzal, não se arroja em prantos, não se digna a se alevantar mais do que necessário. Mais interessante imaginar que estes ombros em sendo varões se tornam com facilidade um trespasse forte que une duas pontas altaneiras. Bom de pensar que passar em anos à frente tenhamos ombros sempre perfeitos com uma feição segura e uma altivez que nunca surpreende. 

sábado, 24 de dezembro de 2016

É Natal


O segredo começava bem antes do calor e das luzes da cidade darem o alerta amarelo para o convescote de Natal, festa excitante para muitos por vários e tantos motivos e que, para outros nem tanto, sendo um divisor de águas em muitas famílias. Esquecem os personagens do universo que tanto a felicidade incomparável, sempre lembrada, também para muitos o sofrimento se encontra na primeira fila das lembranças natalinas. É de bom tom pensar na possibilidade de os episódios não terem tido esta exata amplitude que tantos anos depois ainda se jogam nos corações e, deste jeito libertário, talvez seja  conveniente reunir forças para deixar ir o que não serve mais, podendo esta ocasião, tão emocionada, cumprir seu destino de bálsamo curador para todas as dores: as adquiridas, as veladas, as vendidas ou as imaginadas.

O evento é universal e parece difícil não enxergar o contexto de união, os ventos favoráveis ao encontro, ao amor, às trocas familiares reais, as que ficaram na lembrança, as que nunca existiram ou, ainda, famílias adotadas, aliás, um remédio para os sofredores de plantão.

É sempre neste período que começam a cicatrizar as feridas que abrem e fecham constantemente durante o ano, gangrenando aqui e ali algumas almas perdidas, inflamando as veias do convívio, fazendo febre nos corpos mais sadios. Esta é a hora perfeita para tirar os panos quentes de cima dos acontecimentos – bons e maus - e celebrar a vida.

A ideia é de eliminar o supérfluo colocando os pés no chão como se fosse pela primeira vez, abrindo o coração singelo da criança em nós, cintilar o olhar com a tendência de seguir para o alto, para o infinito, para a morada de Deus, porque certamente é este o caminho perfeito para  anunciarmos que o conforto das Festas chegou.

Nestes tempos, o ar que se respira expande, as ruas se iluminam com o brilho dos olhos das crianças, as cozinhas exalam aromas que nos remetem ao passado remoto, qualquer luzinha vermelha abre a imaginação para a festa, um laço de fita aguça a curiosidade do presente a receber ou a entregar, uma fatia de bolo se transforma em panettone  pelo desejo de degustar e um simples galho de arvore sugere uma árvore de Natal. Deste modo singular se percebe que a magia está instalada e que não existe neste post a opção cancelar.

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Boca fechada


Abri a boca varias vezes e também tantas a fechei, meus olhos se esbugalharam outro tanto mais e se cerraram, e deste jeito meu corpo inteiro foi tomando atitudes de iniciativa, mas recuava constrangido. Parecia que havia algum prendedor, uma ratoeira que me fisgava bem no momento em que eu estava a ponto de me expressar. Não lembro direito se seriam para meu bem ou para meu mal os motivos que me faziam reagir. Mas não importa, o fato é que a cada momento em que eu me calava em palavras, gestos ou olhares, certa bruma descia por entre meus ombros deixando o que já preso estava, mais sorumbático, assim, como uma aura ao revés.

Meus olhos ficavam semicerrados com as pálpebras dando sinal de cansaço e de falta de energia para continuar em sua vida independente, lubrificando com os óleos da surpresa a vista observadora do entorno que tem a missão de trazer para dentro de mim o que ocorre por ai, por perto e também, como intuidor, o que rola ao longe.

E do mesmo jeito a força da fala autoriza a abrir a boca e soletrar todas as ideias, as conclusões e também o que for necessário para colocar algumas coisas no seu devido lugar e então percebo que em  minha boca se esconde bem de cantinho uma censura, uma trava, um não sei quê de pensar antes de falar e assim, com este modo mais maduro me calo.  Ledo engano que estes assuntos terão destino fúnebre em seu propósito, tenho certeza que serão aproveitados - com outra serventia - em ocasiões relevantes, quando o desdouro da indignação arrebentar meu coração e deste jeito vou fluir estas e outras tantas opiniões que se auto exilaram por conta própria.

O desencargo não para por ai porque tenho pernas, e estas como todos os companheiros do meu corpo possuem o impulso de ir, mas se adernam no lodo da decepção o que talvez me torne pária ao consultar todos os assuntos. A relevância se mistura ao diário transparente, perco minha compostura e meu rigor porque de certa forma tudo já se desfez com o encantamento que tenho pela vida passando a par e passo por mim sem se dar o devido respeito. 

domingo, 18 de dezembro de 2016

A lágrima


Naquele dia eu senti alguma coisa diferente no ar, um sopro que vinha meio fora de sintonia, uma lágrima que escorria do nada, e depois outra seguida de um grande suspiro e um soluçar embargado. Parava para pensar e lembrava que sempre fui assim, choro do e para nada. As lágrimas fazem parte de mim como se fosse qualquer outro órgão que me fornece a capacidade de existir, como se ela fosse alguém que de mim não conseguisse se apartar e também deste jeito tão contumaz opera inconteste para que toda a engrenagem não pare nunca.

A minha lágrima pertence somente a mim, ela não se derrama na minha face e morre no travesseiro, ou na minha roupa de festa, ou na minha pedalada diária porque eu quero, não, ela tem personalidade e vida própria e resolve acontecer simplesmente, como se fosse sua rotina derrubar o que encontra pela frente, variando um pouco sua força e intensidade. Ela também se agranda como um caleidoscópio o vai e vem de tudo e na mesma proporção se ousa diminuta vez ou outra, assim, voluntariosa, nascida para ser.

Meus pensamentos não pertencem a ela, porém ela descobre o que me vai por dentro na instância do sopro inefável da intuição. Ela aposta firme e acerta no que acontece no entorno e, sagaz, já se apruma para marejar assim que os ventos da vida dão solavancos, assim que o mundo se sacode em palpos de aranha por não poder resolver o que ele mesmo criou, assim como entre tantas coisas para acontecer de ruim, justamente naquele dia ensolarado, com tudo para dar certo, tudo dá errado.

Minha lágrima tem poderes absolutos e se verte abundantemente mesmo que eu esteja ainda tentando disfarçar, olhar para outro lado, não me deixar contaminar. Ela vem me dizer que a minha tristeza, deve sim, se deixar derramar pelo mundo de tantas noticias más porque o sal da vida tentará curar na ardência os infortúnios de agora e, quem sabe, de tantas outras feridas.

Então ando sempre assim, marejada e com a visão turva. Com certo medo dos atuais tempos vou tateando nas paredes para não pisar em falso,  me segurando de certo modo e muito falsamente, nos corrimões da vida, me policiando para não dar credito a quem não merece e assim de lágrima em lágrima penso que elas regarão a tristeza de muitos como um bálsamo.

sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Temporada


Dia ensolarado morno ainda e com pouco vento, as ruas preguiçosas porque recém os bocejos da siesta desmoronavam na obrigação de abrir as portas do comercio, nesta fase do ano em que a cidade tem a liberdade de viver sua vida própria, de ser ela mesma, de escutar os passos dos caminhantes habituais adivinhando-lhes seu destino. Inspirar o ar forte da maresia e abrir um sorriso só de pensar que suas pegadas na areia da beira da praia pela manhã já se foram nas ondas e desta feita seus pensamentos também se acomodaram. Na memória, a quietude do lugar que certamente inspira que todas as palavras daquele dia tenham o peso que se tenha que dar. Nem mais nem menos.

Não é chegada a hora de se afobar com mais nada, os ponteiros do relógio se mostram muito realistas e quem sabe o desejo de dias ainda calmos fosse tão grande que as condições das ruas e praças passaram despercebidas. E segue então a negação de que em determinado tempo – que não está longe – tudo mudará de figura.

Ter a ilusão que o tempo custa a passar faz parte do destino da cidade que respira por tabela, que ri e chora em diferentes ocasiões, que briga e se acalma no calor ou no frio, que aprova e desaprova dependendo da proposta. Um local para viver tantas estações marcadas como é sua natureza, pródiga na percepção dos matizes de luz, nos trinados diversos das aves, dos ventos que embalam negócios e as chuvas que dão o tom da grama das casas viúvas dos seus moradores. Uma cidade de tantas facetas e interesses.

A luz amarela do desconfiômetro acendeu quando na virada da esquina a praça surge toda iluminada, suas tendas caprichadas e abarrotadas formavam um circulo bem feito com passeio asseado. Na sequencia, as calçadas limpas, bem varridas, mesas caprichadas com cadeiras bem acertadas e convidativas, cardápios jogados com milimétrico capricho, flores novas nos vasos de centro, vitrines com manequins vestidos com raro apuro e sem definição de temperatura. Este sim foi o alerta final. 

terça-feira, 13 de dezembro de 2016

Estado


Parece mesmo impossível vagar pela vida como se estivéssemos olhando de cima, como se nossos pés pairassem no ar, longe do pavimento frio que esfria a temperatura do corpo para então termos condições de recuar nas atividades da maioria, mas, que neste dia, está dando pinta de que nem vai iniciar. Parece um tempo como os outros, mas não é, porque a formação está elevada do chão, tudo a nada se parece, e neste estar desagregado apenas o relevante se esgueira e se apresenta no recinto que teima em reverberar o que a nascente hoje determinou.

Como se eu não fosse deste mundo, fico ali elevada no ar percebendo que de certa maneira meu corpo se esmera em não pesar, que meus ossos estão tão porosos que posso sentir o ar perpassando por entre todos que neste momento não possuem serventia alguma, somente talvez para unificar e arejar o corpo com a alma, com certa graça, admito.

O entorno não me parece estar diferente de mim, então, volta e meia abro um olho, um apenas, para checar se no correr das horas os parceiros deste quadro surreal já não se evadiram. Nada, todos ali alimentando meu estado de espírito bem audacioso que hoje se insurgiu a colocar os pés no rés do chão.

Não existe peso para ser carregado e assim pairo no ar e com os olhos fechados sigo um pouco mais na minha alienação. A cadeira abaixo de mim serve como referência apenas, e posso ver que está em certo sentido deslocada da arrumação, alguns livros se revelam criativos ao desejarem me alcançar, mas enfeitiçados pela leveza de se ausentar imitam o meu estado de espirito.

E assim a rua e o interior se apresentam juntos, evadidos de um estado normal, curtindo de certo modo uma forma de se apresentar à vida, que faça um sentido às avessas. Que a contemplação seja o sujeito de todas as frases que não serão ditas desta boca que amanheceu sem palavras deixando deste jeito tudo em volta desarrumado.



domingo, 11 de dezembro de 2016

Salva vidas



O mar recrudesce um pouquinho como se reverenciasse as guaritas se assentando novamente na beira da praia, para abrigar os guerreiros salva-vidas que encarapitados – literalmente – na estrutura precária, passam desde os primeiros raios de sol até os últimos, a olhar com detalhe como anda se comportando o oceano neste dia. É ali na imensidão amada de muitos que os pormenores são ditados diferentemente, no verão que anda a todo vapor.

Os avisos oceânicos se fazem bem por debaixo das águas e também enviam seu recado ao conhecedor desafiando-os, mudando de cor para impressionar e suscitar as várias explicações, se redemoinha um pouco lá, um pouco alhures, também com a intenção de conquistar estes olhares fixos durante a jornada, parecendo uma brincadeira para quem assiste.

 As areias foram evacuadas dos habitantes marítimos diários porque ao receber uma horda insana a lhes pisotear, melhor serventia é se recolher para o fundo, bem ao fundo da terra que margeia as espumas. E deste jeito ficam espiando a mudança da paisagem que reside agora no multicolorido status de veraneio.

As ondas entram no jogo do empurra e ficam sempre se combinando como se manter em alta, como baixar os flaps para desespero dos surfistas, como ter uma arrebentação instigante ao olhar dos empoleirados rapazes em guarda na faixa de areia que se alterna com suas bandeiras de avisos, que se municia de aparatos de salvaguarda para quem desafiar aquelas águas. Elas podem estar calmas e profundas, porém munidas de um sentimento de traição atávico ditado pelo clima,  disfarça por debaixo de suas espumas.

A tarefa fica mais difícil porque não é somente ao maravilhoso mar que os olhos atentos e treinados devem se dirigir. O entorno pede atenção por ser sempre caótico e sugere olhar de lince para a multidão que se enjambra ao sol, para as crianças que se arremetem ao mar sem calcular distâncias, a cachorrada mimada se solta e corre para todo lado como se não houvesse amanhã. Na contrapartida, bengalas se entrelaçam nas cangas coloridas, as pernas bambas se opõem às coxas torneadas, os abdomens tanquinho desafiam as enxundias de tantos e muitos, os pés correm atrás das bolas com e sem cor e assim outro grupo empina papagaio, joga bocha, frescobol, peteca, vôlei de praia, ginastica, corrida e o scambal.

E deste jeito animado ainda sobra um tempo para olhar para o alto, o céu azul, onde helicópteros fazem rasantes, monomotor puxa faixas de propaganda, os paraglider exibem destreza. Tantos ao alto, tantos a terra. Para bem entender esta dinâmica é sabido que estes heróis de veraneio necessitam sempre ficar em um nível acima do chão, para ver melhor....

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Entrelaçados


Todos os dias eles passam de mãos dadas em direção à beira da praia, as mãos, entrelaçadas, possuem um movimento quase infantil jogando-se assim, grudadas, para frente e para trás que a mim me parece embalar o tempo deles. As mãos calosas e afinadas em si movimentam-se perfeitas em seu encaixe de tantos anos, retratando uma atitude automática nesta procura de um emaranhado que  surge bem antes da primeira passada, como se houvesse ali uma suspeição de falta de equilíbrio, necessidade de sentir o apoio como se eterno fosse  e de quebra sentir o calor da pele e a muda conversa que rola nesta aproximação para seguir lado a lado e em frente.

Esta caminhada diária, ao alvorecer, serve para impulsionar as conversas do dia. Dias iguais a todos mas que se diferenciam pela surpresa da vida que de tão longa a todo amanhecer se reinicia, como uma agulha que volta ao começo no disco com teimosia. A imagem que me passa é de uma certeza de conhecimento de um e outro onde nem será preciso se olhar, ou se o olhar acontecer de pronto terá sido feito em uma linguagem cifrada que há muito foi aprendida.

Os diálogos imaginados versam sobre pueris assuntos como momentos de abelhudos comentários da vizinhança, da critica a coleta do lixo do município que não funcionou, da empregada que decidiu ter uma folga sem avisar, do cachorro que de tão velho anda rabugento e desobediente e para completar, o gato que sumiu na noite anterior para depois,  agorinha cedo da manhã, voltar a casa todo estropiado de suas maluquices sexuais com a gatiada do entorno.

Tem a hora do silêncio, que talvez apenas esteja reverberando uma desavença tola de ciúmes de um ou outro que torceu o pescoço na admiração de algum corpito sarado que trespassou a matinal caminhada. Talvez haja, em conluio com um dia não tão resplandecente, um mau humor instalado por conta do atraso na refeição ou outra porcaria de assunto qualquer que não emplacou. A mudez peremptória dá o seu recado vez ou outra, mas não desenlaça as mãos que mesmo em um dia em que o fígado dita os pensamentos, não se largam.

Nunca falta nas manhãs corriqueiras uma conversa, às vezes bem azeda da conjunção familiar uma vez que aqueles dois se encontram apartados do cotidiano dos seus jovens por força da evolução das famílias, e, assim, as análises se confrontam sempre com o antigo porque na ausência de tantos restam a eles murmúrios, suposições e dúvidas. Deste jeito o jargão “no meu tempo” está sempre na ponta da língua uma vez que  o desconhecimento das rotinas é a única forma de apaziguar a distância e as mudanças neste jogo da vida jogado  sem regras pré-definidas.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Preciosidades


Parece incrível que uma simplória e rústica beira de praia possa esconder tantos tesouros para quem ousa olhar tudo em sua amplitude e ter deste jeito mais conhecimento desta vida silenciosa que se aprofunda para quem sabe prestar atenção.

Os olhos, ao se aproximarem da magnitude do oceano se vê hipnotizado pela massa cristalina que se movimenta a partir dos humores do vento, bailando sempre contra sua vontade, fazendo um pra lá dois pra cá obrigatórios sendo que, quem lhe pede em dança, é seu companheiro de vida. O vento enlaça o mar ditando o ritmo diário mantendo-o refém para todo o sempre. E assim, sem vontade própria as águas se deixam levar docemente, de certa forma apaixonada por este par que faz de sua existência o comando dos oceanos.

Difícil desgrudar da vastidão misteriosa, porém ao se desprender dali a vista, a chance de passear pela paisagem que a natureza coloca em formação é grande e então se vai tropeçando, em um primeiro momento, nas conchas destituídas dos seus moradores, se presenteando humildemente, após terem sido embaladas por longo tempo pelo fundo do mar. 

Elas podem surgir como se fossem verdadeiras esculturas de tão trabalhadas sua casca, ou ter ainda enraizadas em sua carapaça musgos recentes, mas o mais belo é sempre o seu interior, parecendo madrepérola, ou sendo, sei lá. E deste jeito, involuntário, vem dar os costados ao seu descobridor, pois seus inquilinos há muito abandonaram a morada, se tornando isca de pescador.

O mar suscita tantos desejos de paz e harmonia que fica difícil ali se deparar com o sofrimento. Não se sangra a beira da natureza que se oferece de graça, que resfolega sem cessar todos os seus sons, seus cheiros e que a cada dia amanhece diferente somente para passar o recado que no amanhecer se ausentam as tragédias da vida.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Silêncio


O dia se derramava como tantos outros, mas naquela manhã ele surgiu possuído por estranhas vibrações que fluídas se pareciam a pequenos raios de luz que cintilavam por entre a natureza morta e a muito viva por aqui. Havia muito brilho e percebi a ausência do vento e de sons os mais variados. Também os pássaros em minha janela se conservaram silentes e mesmo andando meio surda para todo o barulho do mundo, senti a falta do trinado estridente que me acorda da delicia do sono profundo, que avisa ao meu corpo para se mexer porque já é hora e que me faz sorrir mesmo que eu esteja acordando em prantos.

Continuei observando este coma desta manhã, em que aparentemente tudo parou e fiquei imaginando que pode ser que esteja sendo dado um recado aos moradores desta galáxia que se debate entre formatos os mais variados de viver a existência, que em sendo única tem de ser bem escolhida. Os minutos tão preciosos para quem não tira os olhos dos marcadores se estancam e se recusam a mover um ponteiro sequer deixando em desespero os viciados na contagem, os rebeldes sem causa, os desafortunados em busca do tempo perdido, os salvadores de si mesmos e os que mudam a rota a todo instante buscando a melhor e maior biografia.

Nesta manhã inédita o vento também estancou todas as brisas e neste feitio fica sugerido que nenhuma vela se aventure ao mar, nenhum pólen seja distribuído com a costumeira generosidade, nenhum grão de areia deverá acobertar os buracos dos siris, nenhuma onda se alevantará um milímetro a mais do que já se encontra, reunindo deste jeito a natureza que executa em larga escala matinal seu discurso mudo.

A parecência com esta vida imóvel sugere que se fique ao largo dos movimentos e se concentre o pensamento nas tantas inutilidades que permeiam o dia a dia, a vida de trabalho, os afazeres de soma abundante, a teimosia em acelerar e a desdita de querer sempre mais. Depois desta parada estratégica que serviu para dar um gostinho da paz de verdade, o tempo começou a correr novamente, os segundos a se somar nas horas, nos dias e a eternidade no modo automático ficou bem mais perto.

sábado, 3 de dezembro de 2016

Jogo divino


Tantos corações sangrando e tantos outros ou mais que se unem na cor retinta da dor que sempre tem gosto de fel, porque a ausência dilacera e reparte em mil pedaços uma e tantas vidas, que neste momento tem apenas a única opção de abençoar e deixar ir em paz. Mas não se faz isso com tanta simplicidade porque laços que se quebram por quaisquer motivos, derramam todas as lágrimas e toda agonia seja qual for o comprometimento ou a situação do ido e ficado. O descalabro da morte é um sopro que está sempre na espreita, mas não o sentimos deveras, porque se assim o fosse jamais teríamos nosso passo a passo de todo dia.

Tantos olhos se apertam na dor e outros mais os arregalam como se assim conseguissem engolir a tragédia com mais facilidade e, desta maneira esbugalhada, se afunda dentro do peito já tão reverberado com os fatos, mas por isso mesmo generoso. Neste espaço diminuto e ao mesmo tempo imenso todo o sofrimento é acolhido para depois, com mais lentidão, formatar as tantas sensações que em um primeiro olhar parecem impossíveis de se posicionar.

As lembranças não vagueiam mais, elas se tornam um filme real porque na memoria reverberam as cabeças baixas, afundadas no gramado sendo então este tapete verde a plataforma da vida de um em todos costurando tantos sonhos de jogos de vitória ou de derrota. Seja em qualquer tempo que este verbo for conjugado, ele estará sempre se apresentando como presente.

Todos eles possuem a láurea em seus pés que carregam as ditas chuteiras somente para uma boa serventia uma vez que, em muitos casos, quase inúteis são porque os talentos nascem perfeitos se tornando almas que vão rolando por ai em todas as gramas. O artefato redondo, principal sujeito das peladas no campinho, pode ter sido confeccionado com os carpins velhos das avós da favela, em outros uma bola murcha encontrada em algum lugar e insuflada com qualquer coisa e em muitos casos ela chega de couro, como manda o figurino e seu poder é absoluto porque é fruto de solados sedentos de bola na rede. E desta forma é dada a largada para ser arrimo de família, para suportar as dores, lesões, treinos e sacrifícios que vão se acomodando no tempo, porém, a vida, como uma rede esburacada da várzea, extrai todos os jogadores que de agora em diante terão seu time em nova fase batendo bola com o divino.



quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Um passeio público


Dobrei a esquina naquela ventania peculiar de inverno no litoral norte que só não digo que é de renguear cusco porque a linguagem nestas paragens e neste espaço serão outras. Então, falando dos ventos, eu diria que aqui eles são os enfunadores de vela, sopram brisa forte e intermitente que impulsiona as pás da energia eólica, generosa e abundante. Mas não é do vento que eu queria falar, é da esquina, propriamente dita, que me atropelou depois de algum tempo de ausência nesta beira mar. Não sei bem quem chegou primeiro, se eu, ou ela. Talvez tenhamos chegado junto.

Então, parei de supetão porque meus olhos não podiam acreditar naquele passeio longo, asseado, desenhado com esmero, deixando entrever bem ao longe o que seria esta passagem quando o sol brilhasse mais forte. Não havia nenhum empecilho ao longo dela e ao descer os olhos vi desenhos caprichosos, com referência à cidade, milimétricamente colocados.

A sensação que eu tive foi de importância! Senti-me auferida de dignidade por ter ao meu dispor esta via que além da vista mutante e linda fará meu coração bater com mais fôlego, para mais rapidamente conferir todo o percurso. Parece-me que eu e tantos outros moradores fomos lembrados que a rotina na cidade litorânea é partilhada por pessoas que todo dia vem dar sua espiada nas ondas, fazer uma prece, espreguiçar ao sol de inverno ou conversar conversas boas com qualquer um.

Enxerguei o futuro do próximo verão quando os ocupantes de bicicletas, jogadores de bola, pais com carrinhos de bebê, vovôs de bengala, patinadores, caminhantes e corredores sentir-se-ão da mesma forma importantes. Uma calçada sem obstrução e com finalidade cumprida, além, é claro, da reverencia ao mar.


Mil detalhes


Aquela porta entreaberta chamava para si a curiosidade, mais pela  busca de um bom motivo para tudo ou nada, ou para constatar alguma coisa, virando as costas depois e acelerando os processos que vem à cabeça enquanto o vazio dos dias são preenchidos apenas por conjeturas e devaneios.

A porta da residência, localizada em rua carente de vida humana nesta estação, me chamava em altos brados e assim me aproximei abelhuda. Empurrei o caixilho pesado que rangendo abriu-se para um ambiente muito bem decorado, com ares inóspitos e  sinistros  na arrumação  como se por ali não existisse ar para respirar. Igualmente as entradas de luz serpenteavam em claridade tão tênue dando a impressão que fosse se dissipar ao menor sopro de vento.  

Passando o olhar no amplo recinto fui percebendo que havia um pó muito fino e brilhante lavrando todas as reentrâncias da decoração, dos móveis, do caprichado ladrilho vermelho antigo, dos tapetes, das flores artificiais, das cortinas translúcidas, dos objetos de decoração praiana que mantinham agora um ar assustado e com colorido irreal, como se fossem espectros de si e não uma cópia da natureza.

O silêncio me acompanhava fiel e solícito como sempre e, deste jeito, fui percebendo que no chão ainda havia rastros de chinelos de praia rebordados pela fuligem dourada, demonstrando que havia se arrastado por ali, ladeado por pegadas de criança e bichos de estimação complementando o cortejo. Entrando em outros ambientes intuí que mesas e cadeiras, copos, pratos talheres e outros artefatos estavam desarticulados dando-me a impressão de certa sutileza na intenção.

Nos outros cômodos a mesma coisa, uma ponta da colcha levemente dobrada para cima, um travesseiro esquecido no canto da cama, uma camisola jogada  no espaldar da poltrona de vime, uma porta do roupeiro entreaberta, chinelas de verão embaixo da cama. Em tudo ali naquele lugar sinalizava a expectativa de vida na casa assim percebida pelos mil detalhes deixados no afastamento.


Maresia


De tempos em tempos a surpresa vinha bater na janela babada de maresia das brabas e por isso mesmo sempre tão maravilhosa. A vista ao alumbrado nesta manhã é embaçada como se a natureza estivesse por ali na espreita, só de bico na brincadeira de criar filtros para que nossos olhares matinais se prendam na tarefa de adivinhar o que está se descortinando através deste vidro que não sabe se defender.

As multicoloridas facetas que ora se desenham na vidraça vão se modificando em cada ângulo, deixando entrever com certo ar ilusório a rua deserta, os cães que sempre perdidos dão a impressão que estão na eterna procura de seus donos, fuçando o caminho, olhando ao longe para cima e para baixo. A passarada não fica atrás e nestes dias nebulosos ficam planando na maior das alturas, com seus bicos enfiados na imensidão do céu, tragando o recado do oceano que neste dia desperta a todos com seu hálito mais poderoso.

Uma piscada e o sol vem contribuir para deixar as figuras gravadas na janela com jeito de joias elaboradas pelo talento do ar marinho, que tem em seu perfil de hoje a tarefa de melar o que vier pela frente. Grudento, sempre quer dizer a que veio, quer ser lembrado pela sua presença que transforma lindas janelas invernais em pinturas surreais, que se retratam a si próprias como melhor lhe convier, não há ali, naquele dia, o perigo de mãos enluvadas fazerem o desserviço de subtrair as histórias inéditas que nasceram do dia para noite de um jeito tão disfarçado.

Nem todas as vidraças das residências tem o privilégio de se divertir com a bruma.  Apenas as aberturas de frente para o mar podem receber esta surpresa brincalhona porque a elas é dada a incumbência de ser o espaço mais nobre de toda a construção. A bruma que hoje se alevantou por detrás do mar veio avisar que em breve os tempos mudarão e que a melada do mar vai baixar a guarda e o sol a pino batendo na quina é quem vai dar as tintas.  

A ressaca


Chegar ali, na casa de praia, sempre sugere o aprofundamento de um sentimento quase infantil que vai se somando a outras sensações quando se inicia a abrir portas e janelas do lugar que é sempre muito especial para todas as famílias. Praianas da gema ou não. É ali que ocorrem todos e tantos encontros, é neste lugar que acontece o convescote anual da vizinhança e desde jeito se parte para comemorações sem fim. Os espaços respiram lazer, descanso, mente aberta e olhares que em todo momento vão buscar em alto mar um pensamento, um alento, uma palavra, uma poesia tosca, refluindo tudo o que foi arrematado para dentro de si. Flutua-se em puro descompromisso.

Estes lares residentes ou de passagem tem apego intenso com o mar que está ali sempre à disposição e quando acontece algum evento climático, como um ciclone extratropical, vem demonstrar a força que ele tem e que nos passa despercebida no dia a dia. E assim o vento tão necessário para transportar sementes para muitos recantos terem uma florada distinta, podem também chegar com violência duvidosa a mando da natureza. E assim, com toda inocência, vê-se um adorável oceano movido pelo vento desgovernado se elevar em ondas gigantes, não aquelas perfeitas para o surf, mas sim, impulsivas, parecendo destinadas a cumprir uma missão do clima, que neste dia disse que tinha no alforje um discurso que não estava romanticamente engarrafado e jogado nas areias da praia.

As pessoas se achegaram o quanto puderam frente ao mar e atônitas presenciaram a natureza aumentando o tom de sua fala, arrastando consigo casas inteiras, atravessando o passeio público, se alargando rua afora como se fosse comum e original sua passagem por este caminho, ou como se fosse bater na porta de um vizinho para pedir uma xicara de açúcar, de tal jeito íntimo e decidido que se adentrou nas várias ruas de muitos bairros.

Foi deste jeito que o clima, que possui uma alma encantadora provendo a natureza com todas as suas milagrosas erupções, ao invés de encantar seus adoradores os fez correr para salvar alguns pertences, os fez acelerar para não ser tragado pelas águas irreprimíveis. Sem reação, mil olhares se firmaram no desmoronamento sôfrego das dunas, das calçadas e dos seus negócios tornando o episódio quase inacreditável.

Na vida de tantos uma reação atávica junto ao desastre. Assim como o mar voltou ao seu curso, estes moradores buscam dentro de si toda a alegria que estas praias os proveram, durante tantos anos, e, deste jeito assim, bem simplório, decidem não se dar por vencidos.


O Assalto


Coração mole ao nascer do dia, calmo como convém aos amantes praianos, hora de colocar aquela bermuda e camiseta macia e puída primorosamente conservada durante anos, com esmero, no armário que não mofa porque na casa o trânsito é sempre intenso. Do sol inclusive. As chinelas, igualmente gastas, montam o conjunto que sempre dá um alerta de que as coisas por aqui não mudam muito, pelo simples motivo de que não há necessidade nem relevância, nem desejos fúteis e de agitado mesmo, apenas pensamentos bons. Então, dar um olé na padaria da esquina, quase de pijama, é a melhor opção para iniciar mais uma data.

Da mesma forma, o comerciante que pula cedo da cama para oferecer o pão quentinho à vizinhança fiel, veste o jaleco, o boné e o indefectível lápis ancorado na orelha se colocando à postos para as primeiras conversas, que nem sempre são amenas, mas não é nem bom caracterizar como funestas. Está quente, céu azul e para este raiar é o clima – será que chove? -  quem dá as ordens da prosa.

O cusco guardião da rua já está de pé no capacho da padaria, abanando o rabo com a língua pendurada no aguardo de sua água e ração. Alguns vira-latas se juntam a ele para filar a refeição que ele compartilha generosamente, levemente enfadado da insônia vigilante.

O sol vai indo para bem alto e tanto as compras como o recebimento de mercadoria toma um ritmo peculiar naquela rua de tão pequeno varejo. Parece impossível que nesta calma que impera nestes dias em que se sorve o  trabalho prazeroso, possa acontecer algo funesto.

E assim, do nada, um gajo mal encarado entra no estabelecimento e aponta uma arma para os poucos clientes que ali se deixavam ficar para não perder as primeiras do dia, mal imaginando que eles seriam os protagonistas. E deste jeito irrompe a violência no pacato lugar, causando um espanto que deixa todas as mentes geladas, esvaziadas de qualquer pensamento e sem saber como agir. Dá para ouvir o coração de todos batendo forte, a garganta com  o pomo de adão se convulsionando em um sobe e desce seco, as mãos hirtas com dedos gelados, olhos fora de órbita gravando na retina o acontecimento.

É nesta paralisia momentânea que segue o assalto do miserável ladrão que ao abrir a tosca gaveta do caixa, com o dono de mãos para o alto, se dá de cara com alguns contos de réis. Não sabia ele que por ali o fio de bigode é mais importante que as patacas e por isso a clientela não paga na hora, pede para anotar a dívida no caderno da “venda”, um bloco sujo, com muitos rabiscos, escritos à mão com o ensebado toco de lápis, que sempre leva uma lambida para que o apontamento fique mais nítido e forte. O larápio se desacomoda frente ao fracasso da pilhagem, pega um pão fresquinho e sai correndo, sendo seguido pela matilha que ladra desabrida em seus calcanhares.

Casinha de praia


Aquele caminhão surgiu do nada na janela em que costumo me postar para ver o dia acender seu fogo matinal, vindo agora bem rápido para o meu lado, brincando de esconde-esconde com algumas árvores que ali estão bem na minha frente. Da janela, espichei o pescoço para a passarinhada que conversava animada, tal marocas combinando as estripulias do dia, tenho certeza. Surpreendi-me, pois o tal caminhão trazia em seu dorso espetacular uma casa de madeira que resfolegava em rangidos de um lado a outro, parecendo que poderia desabar em mil pedaços, se espatifar no chão ou as duas coisas combinadas, tal o sacolejo.

Não pude deixar de sorrir ao ver tal cena e mais surpresa ao constatar que o caminhão enveredava para a beira da praia e lá se foi por uma trilha tão angulosa quanto a cena. Fiquei pensando em que lugar do mundo esta casinha iria parar, o que pensavam seus moradores ao enviar por tão frágil transporte uma moradia nova, que merecia ser colocada em um terreno com o melhor ângulo solar e assim ter fincados bem firmes no chão, seus alicerces. Estas estacas comprovariam que o abrigo foi construído com todo prumo  para resistir aos arrestos do vento, as brigas familiares, a fumaça do fogão, ao sol causticante e as chuvas torrenciais. Ele deveria estar preparado para tudo isso, pensava.

Mas depois, refleti que poderia haver outra opção para o meu divagar. Vai ver que foi construída em cima do inusitado transporte justamente para não ter fundações, conseguindo desta maneira aprofundar um caráter itinerante. Talvez não lhe aprouvesse assentar seu piso com afinco porque em determinadas temporadas seria por demais pretencioso desejar ficar. Tanto por querer, como por não poder. Simplesmente.

Com a imagem ainda na retina percebi que a fragilidade da cena tinha tudo a ver com o desejo de pousar com suavidade no solo, como se tivesse receio de feri-lo, de não apertar muito suas paredes para poder deixar entrar a brisa marinha que por vocação iria enfunar as cortinas. Não fazer junta forte nos cantos para que ali possam se abrigar reluzentes caracóis vindos da ressaca marítima, muito bem combinados com a sutil presença de minúsculos pontos de areia fina que se abrigam por um momento das ventanias. Deixar as portas mal assentadas para que por elas passe a luz em dias ensolarados, possuir janelas sem tramela para que se abram e fechem ao sabor do horário que a natureza dita. A vida é assim, aparece sempre cambaleando e nos dando alternativas.

O mistério


Na primeira vez me chamou a atenção um pé de sapato solitário e pungente encostado nas areias da beira da praia. Era um pé masculino e devia estar no fundo do mar havia algum tempo, a se confirmar seu aspecto, e assim me dei conta em encontrar mil achados para o perdido. O pé de sapato era de couro preto com grossa e borrachuda sola, acampado entre as areias, mariscos, caranguejos e tatuíras defuntas há muito.

Acabei por pensar que poderia pertencer a um macho marinheiro ou pirata de todos os mares de antanho que em uma briga o tenha remetido a alguma cabeça mais desavisada.  De pronto me pareceu ouvir as passadas fortes do homem autoritário que se fazia atender através da sua pesada marcha que o calçado abrutalhado lhe conferiu. A peça, que parecia ser de pé esquerdo não estava rota, mas revestida de uma divertida camada de precioso e verde musgo marinho que proporcionava uma visão cabeluda, levemente sinistra.

Talvez tenha escapado do pé do seu dono em uma farra etílica, em uma briga do macharedo por um rabo de saia ou jogado ao mar pela mulher traída que o surpreendeu agarrado em outra cintura. Pode ter ocorrido uma tempestade de alto mar e o sapato se desgarrou do corpo ou o corpo se esvaneceu restando apenas o heroico calçado que agora resta solitário na beira da praia.

Da segunda vez foram os pedais que me alertaram em plena Estrada do Mar para um calçado feminino jogado na vala. Tinha um salto alto, bico fino, preto e com laço dourado, novo ainda. Era delicado e assim me pareceu que poderia ter sido sua última noitada, calçando a senhorita fogosa e faceira que em passos de dança aproveitou a noitada e depois rodou de volta em doce passeio na Barra Forte do amado, a quem se enlaçou na cintura com delicadeza para se equilibrar. As duas pernas para o mesmo lado como convém a uma dama, com o scarpin brilhando ao luar sem sequer ser percebida sua perda que ficou jogado na macega à luz da lua. E assim vemos dois perdidos, macho e fêmea, que nunca se encontrarão.

O lugar




Não foi de repente não, a alternativa apenas se apresentou com toda a modéstia, assim como quem não quer nada, se entremeou junto aos planos do dia a dia querendo parecer oculta, querendo não ser ninguém, desejando a incógnita e na realidade se configurando como um susto para disfarçar.

Como o amontoado era grande, urgia achar o lugar que de tanto imaginado sumia no desejo inconteste de mudar a vida. Perdia-se por entre as ruas, não se reconhecia nos soberbos arranjos habitacionais e se desarranjava ao ter de escolher. Tantos lugares e uma só preferência, essa era a sina do vivente. Então, ele começou com considerações iniciais que sentiu serem relevantes e foi assim perpassando pelas opções que fossem de seu inteiro agrado.

O fator número um era o mar. Ah, o mar. Aquela imensidão inóspita a mercê de sua vista durante todo o ano com rumores das ondas em altos e baixos era uma atração que não poderia faltar. Mas, pensou no vento, na maresia, nas vidraças remelentas na maior parte do ano. Imaginou sua geladeira se esvaindo em ferrugem, e junto com ela todos os seus utensílios virando pó de ferro. Não se importou ao lembrar-se disso, apenas pensou na reverência, na possibilidade ampliada de ver destruídos seus pertences por um manancial desta envergadura.

Não havia alternativa e era este oceano com sua grandiosidade que lhe chamava a atenção, e se esforçava para trazê-lo junto a si compartilhando todos os seus momentos. Aliás, temporadas peculiares que se alternavam com veemência em todas as estações do ano. Porém, não era só isso que importava. A si lhe cabia buscar o restante, que não se referisse apenas ao mar que ali estava com sua formação original e que de certa forma não necessitava de sua avaliação a bem da verdade.

Foi adiante no bater do coração das ruas, encontrando as sugestões atrativas querendo lhe convencer que este era o melhor lugar para assentar sua ossada ainda jovem. Fosse qual fosse se empilhada, se firmada no chão, a opção era a sua serventia. Escolheu uma casa pequena que lhe parecia suficiente para acalentar todos os seus sonhos, avizinhar-se com a areia, o nordestão, as pampinhas, a eterna formação da natureza que lhe surpreendia todo dia com novos desenhos nas areias da praia e também nas águas ora cristalinas, ora ferrugem. Não se esquecendo do vento levando tudo pela frente, para os lados e pelo meio. O rei sol propiciando para que tudo neste lugar praiano escolhido a dedo vicejasse, se tornasse vivo, mutante. 

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...