segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Arriar a vela

Pensei muito a respeito deste assunto, se eu devia ou não me arriscar a fazer remoção do entulho que com o passar do tempo vai se avolumando na vida como craca em casco de embarcação, e que, para solucionar, somente arriando as velas, suspender o barco e trabalhar. Ao observar o assunto por esta perspectiva animei-me, porque anda me parecendo que pelo andar da carruagem dos viventes, está se acumulando no entorno do calendário que ora se apressa ora se pasma tanto organismo estranho que somente arriando o modo de vida costumeiro para que haja uma dedicação criteriosa no aparamento. 

Não foi difícil dar baixa nos incômodos que se postam em frente como se fosse grande coisa, como se fosse executar um arrasta quarteirão na rotina, como se achasse que a partir dali tudo muda enquanto que a única certeza é a volta do original, a limpeza do excesso, o brilho do que jamais deveria ter ficado oculto. 

Nesta barcaça sentimental que resolveu aportar na soleira da minha porta como se esta fosse um porto seco decidi - com muito capricho - lavrar o excesso que por certa preguiça ou comiseração deixei entrar limite adentro. Eu sabia que o fútil, o chato, o supérfluo e a antítese se instalaram com facilidade porque deixei as velas flanando em abertura espetacular sob os ventos de verão e me distraí olhando para outro lado. 

O arriamento não chegou por acaso como as chuvas de verão, a calmaria do outono, os ventos da primavera, e o “fog” do inverno. Não, vieram porque por algum motivo oculto as aldravas da vida ficaram abertas e sem proteção facilitando a entrada do não desejado por principio. 

domingo, 27 de fevereiro de 2022

Aquela casa

 

Deparei-me com aquela casa antiga em que habitei em minha juventude, na rua que ora se encontra envelhecida e muito bem assentada no espaço esquecido por Deus onde se estabelecera um diálogo rotineiro que funcionava como belo diapasão do bairro, parecendo que entre ruas, becos e vielas o ar era ameno, calmo e convidativo a uma pequena prosa na calçada, um tempo lúdico para risadas e roda de amigos ali em perfeita comunhão.

Estanquei o passo ali mesmo para poder usufruir da lembrança que de tão antiga se tornou nova em folha na minha mente, uma vez que por entre portas e janelas havia uma sensação de momento presente, terno, lúdico, inocente fazendo com que o passado possa surgir de roupa nova, como um milagre. A visão parecia estancada no tempo como se alguém houvesse ordenado um “Mandrake” e tudo remete ao que sempre foi, talvez, com um leve tom sépia como pano de fundo para o avanço da prestimosa hera e erva daninha. 

A casa parecia um organismo animado, com vida própria após este enredo tramado pela natureza com precisão, se entrincheirando na porteira principal deixando a casa figurar agora como uma estampa na mente de quem havia penetrado em seus cômodos com a ligeireza da mocidade. 

Afastei-me para poder observar melhor o entorno e descobri que as residências próximas, a calçada, a rua, o tronco das árvores faziam parte do orquestramento do lugar que envelheceu em conjunto, que deixou aparente sua ferida, que buscou se igualar na temperança que o tempo fornece em sua lenta passagem. Devagar dei uma olhada derradeira para aquela fachada tramada e cadeada com resoluta paciência pela vegetação deslumbrante, apressei o passo e me afastei deixando que o tempo amainasse o rigor da minha memória naquele momento.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Bota fora

 

A hora que parecia nunca chegar se aproxima devagarinho, quase empacando, pairando certo temor que alguma conspiração fora de hora desembarque na premência de alguns de evadir-se para outros lados solapando o desejo íntimo de tantos que almejam o Paraíso liberto e destrancado para continuar a viver no ritmo cadenciado das dunas voláteis, areias ansiosas e ondas voluntariosas, sem falar do amigo de todas as estações, o vento intermitente. 

O calendário demonstra autoridade estando exposto por todo lado e o sino cadenciado minuto a minuto vai empurrando para a hora crucial da partida que sinaliza que é de bom tom ir juntando os tarecos inúteis adquiridos no período da farra desenfreada onde o que é feio bonito parece, o que faz mal passa a fazer bem, o exceder-se faz parte do todo de quem vem para um tempo limitado e a exacerbação dos modos ganham altos índices de aprovação. Quem se importa, dizem alguns. 

Na outra ponta cortinas são arriadas, portões destravados, cercas vivas podadas, riacho na calmaria, praia limpa e a bicharada toma o poder novamente após um tempo fugindo do pisoteio de todo tipo de ambulante, inclusive, das pegadas firmes do individuo que parece sempre estar com pressa almejando, quem sabe, chegar a lugar algum. 

Não tem mais como esperar, o sino bateu e a hora da retirada em bloco se faz urgente, talvez, por ser o tempo destinado para aloprar no seu lugar de origem deixando que estas terras alternativas voltem ao poder dos nativos que durante um período voltam a usufruir das condições civilizadas que escolheram viver, apesar deste interregno anual suportado com frequência com mais do mesmo.

terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Perdi a linha

Eu  tinha certeza que estava no rumo certo, talvez um pouco mais avoada do que de costume ou quem sabe até fazendo questão de deixar de lado esta costura diária que, mais do que me organiza, me atrapalha muito, pois me dei   conta que, afinal, já havia perdido a linha há muito tempo e estava por ali disfarçando de seguir um caminho bordado com aviamentos coloridos, não querendo enxergar que eu havia perdido o carretel e igualmente o bastidor companheiro de todas  as horas na tapeçaria involuntária do dia.

Decidi ficar vagando sem o modo linear para me enxergar melhor, para me deparar com o que não estou percebendo e quem sabe procurar linhas mais delicadas e com cores suaves que combinem com a natureza marítima que não se cansa de pintar o entorno com suas cores usuais mudando apenas o matiz, vez ou outra, para brincar de claro e escuro, enganando a bicharada residente.

Divaguei um pouco sobre como voltar a ter um carretel com linha firme, que não se desfaça facilmente no puxa estica do pano no bastidor e que consiga levar adiante o dia com costuras delicadas, quando for o caso, e enredos mais confusos só para que eu possa suturar tudo mais do meu jeito brincando de ir e vir nas agulhas.

Resolvi de maneira reflexiva que eu iria abandonar  a linha, o carretel e o bastidor que por ora não mais me atraiam, porque, na verdade, eu havia me abandonado nos assuntos do dia e falseei na alternativa proposta singular de seguir o caminho diário com linhas escolhidas de antemão. Voltei com muita graça aos ditames diários dos ventos, da maresia, das águas e das areias circulando com grande diferença dia a dia.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...