domingo, 25 de fevereiro de 2018

A pandorga desvairada


Ela vive da força do vento e da habilidade do seu condutor e tem muitos nomes. Pandorga, Papagaio, Arraia, Pepeta, Cafifa e por ai vai, talvez com tantos apelidos ela se mostre altiva e vez ou outra se desprenda do seu algoz, de quem se mete a lhe dominar, de quem lhe concedeu a vida, as cores, de quem construiu sua rabiola ímpar e vai andar por aí no céu aberto como se tivesse nascido livre.

A sua natureza de existência demonstra que foi feita como muitos de nós, para termos na rotina de praia uma aerodinâmica que permita suportar as ventanias de inverno em todas as esquinas, que nos conceda ouvidos um pouco ensurdecidos para não surtar com o minuano que sopra intermitente por dias. A Pipa reina nos céus de final de veraneio avisando que daqui para frente o clima não será toda esta maravilha, que o céu nem sempre vai querer estar tão original. Final de fevereiro e brinquedos da beira-mar despede-se.

Foi assim com aquelas cinco Pandorgas que flanavam no ar em uma fileira tão perfeita que até parecia uma dança, e agora, com menos ruído dos humanos podia-se escutar suas delicadas sedas rufarem a liberdade, enchendo a beira da praia de sonhos. Facilmente se eleva o pensamento e se imagina estar firme, com a mente refrigerada pelo ar marinho, com a alternativa de dar asas à imaginação acreditando que o ponto de equilíbrio fica ao rés do chão.

Confiança e estabilidade reinam neste dia ensolarado, quando o desatino toma conta do grupo de Pepetas que enfeitam o céu e com um repentino sinal de revolta se desprendem com agilidade do mestre que lhes concedeu a vida e se lançam na atmosfera, subindo e descendo com a força do vento lhe soprando o caminho. Parece agora que as ditas se embriagaram com o azul do céu, abarrotaram suas ventas do ar rarefeito da beira do mar neste dia e se espalharam solitárias sem temer seu destino. Amarras são para os fracos.

segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

Moça danada


Fui inventar de olhar para trás e não deu nem tempo de me arrepender porque lá estava eu imersa na fumaça que empana as lembranças e assim, de costas para o agora e de frente para o que não existe mais, passei meu dia. Tenho a impressão que deve ter sido um tipo de acordo entre a vida e a morte que, em conluio, resolveu me testar e ver até onde eu aguentaria reviver o que não podia mais ser consertado, o que não devia ter acontecido, o que passou em branco e mais tantas palavras que não foram ouvidas e outras tantas deixadas fora do contexto assim como conversas importantes que sequer foram celebradas.

Confesso que não estou achando de muita serventia essa viagem forçada que anda me enchendo os olhos de lágrimas, que laceia meu corpo porque o esforço de repassar deixa minha ossada tensa e encrespada, sem falar na alma, que nesta hora resolve dar uma de corajosa e anda para trás com tanta galhardia que até parece que vai viver de novo.

Não vou dizer que parecia um filme passando porque a sensação era a mesma de trilhar uma picada que ia se mostrando aos poucos, com eventos acontecendo em tempo real e eu ali assistindo a tudo como se eu mesma fosse uma grande angular ou um caleidoscópio de acontecimentos. Espertamente tratei de selecionar o que eu queria ver e deste jeito fui enganando a torcida que queria a todo o pano me ver em desespero, colocar-me de modo que a minha vontade fosse não mais retornar, que me pusesse em guarda lá atrás e minha vida para frente não tivesse mais sentido, como se o tempo em perspectiva fosse tão exíguo – e, pensando bem, o é – que o passado seria meu principal algoz e minha prisão.

É assim mesmo que funcionam as lembranças, elas emergem do fundo do nosso coração e se postam em frente ao tempo presente desafiando o nosso desejo de fazer consertos nos retratos fundidos a ferro e fogo na nossa vida pregressa. Acordei do delírio fantasmagórico e corri para o mar. Um banho de descarrego nesta hora foi o que bastou para limpar o que veio à tona por puro acaso da vida, esta moça danada que volta e meia dá uma sacudida para verificar se estamos atentos.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

O veleiro e a bandeira preta


Enxerguei ao longe um veleiro. Longe, muito longe, bem na linha onde o horizonte marítimo encontra o céu e pensei que talvez fosse um sinal auspicioso para os tempos que estão a chegar, os dias em que até a maré baixa seus flaps para não algariar o povo nativo. A imagem passou por mim rapidamente e então me veio à mente que seria um sinal que o tempo de paz estava chegando, que o lugar teria de volta sua personalidade pacata revigorada, que as ruas teriam seus musgos na altura da vista, que o vento viria brincar novamente entre ondas, que as arvores iriam cantar seus cantos para que todos ouvissem. Posicionei o alcance dos olhos de forma a ter certeza que o sinal estava acontecendo exclusivamente para mim e com a providência interessante do acaso fincou-se à minha frente, na beira do mar, uma bandeira preta agressiva. Boa!

Percebi que hoje o meu espirito está muito parecido com aquele veleiro que singrou as águas, silencioso e célere, identificando o meu apreço pela normalidade, pelo retorno do silêncio que não muda nunca por aqui. No final das contas conseguimos navegar pela vida com certa ligeireza como se atados estivéssemos em cálculos perfeitos que se movimentam conforme a vida anda.

Assim também a bandeira preta tremulante e amiga lança-me recados mais do que próprios avisando-me que o mar resolveu dar um basta, acelerar suas águas ao longe fazendo com que as metafóricas embarcações simbolizem o fim do tempo quente em todos os sentidos e que a nossa matemática de vida volte a ser calculada com a exatidão de um veleiro perfeito.

Deste jeito nada peculiar escuto um ar mais calmo com o fim de tanto desvario que se estendeu por todas as portas e janelas, que se proliferou com intensidade ultrapassando qualquer limite dificultando a organização do pensamento.  Falta pouco para o fim, mas pelo jeito os sinais que o mar me envia são imbatíveis! Ufa!

domingo, 11 de fevereiro de 2018

Além da brincadeira


Está mais difícil escolher o personagem que vai encarar dias em que a ordem modifica-se, em que existe um decreto confesso para sorrir mesmo sem achar graça, em que a indumentária trai o vestir-se, que pareça fazer parte do todo, que o canto saia do tom fingindo que manda um recado, que os grupos se proliferem e que todo mundo necessite ser outro de qualquer maneira.

Ao invés de olhar para a festa seria de bom tom que se tivesse apenas um único olhar para dentro de si com o intuito de descobrir onde estão os personagens que se tornam reis por tão poucos dias. Quem sabe com uma vista bem enviesada encontremos nos recônditos da nossa alma as figuras emblemáticas que lideram a vida de tantos em tão pouco tempo e com tanta intensidade. Quem sabe poderemos descobrir perfis interessantes que no vai da valsa do mundo moderno de certa forma desapareceram, ou se tornaram fingidos de si mesmos.

As alegorias tradicionais desta festa podem se revelar através do Rei Momo de cada um porque vivemos tempos tão difíceis onde tudo se resolve no mais ou menos, a governabilidade da vida anda a beira do caos e por este motivo temos que estar com o sorriso eterno nos lábios e atentos aos movimentos incertos do entorno. Na mão, a chave dos dias. É por pouco.

Alguns poderão examinar o fundo deste baú e encontrar aquele ímpeto da fanfarra e do cinismo que esta sempre à espreita e o Arlequim de todos nós tomar corpo. As mulheres que tomem tento porque vai passar o pólen da futilidade, da graça e da esperteza bem por perto e seria um bom conselho não se deixar levar por aí portando a Colombina como preferência. Os homens que ainda possuem uma réstia de dignidade e sentimentalismo deverá dobrar o cuidado nas esquinas da folia para não deixar que tudo corra solto e tornem-se um Pierrô abandonado. Melhor aprender a divertir-se com a imaginação e pitadas da história que vai sempre além da brincadeira.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...