quinta-feira, 29 de abril de 2021

A impermanência

 

Gosto da impermanência do tempo que não segue ordens do andar de baixo e muito menos do andar de cima decidindo todos os dias uma sina diferente onde suas cores sempre são díspares e o humor variável arremete a um bom dia cheio de expectativas, sem nenhuma exatidão, o que soa muito divertido. A ordem é flanar o olhar sem se reter em nenhuma paisagem deixando que a brisa leve da vida se encarregue de instruir o lado perfeito do dia e o corpo sinta com profundidade o frio e o calor da natureza em constante movimento. 

Esta desordem deliciosa e matutina aparece sempre sem avisar e sem bater na porta vai entrando e com ares de soberana designa a luz que passeia independente, entrelaçando a sombra com múltiplas formas, algumas com ares expansivos, outras se escondem e outras ainda se agrandam na concepção do movimento em perspectiva criado neste momento fortuito de feixes iluminadores que imagina e busca o incidental. 

Necessário vagar por entre o espectro formado pelo dia que vai acontecendo suavemente, minuto a minuto, cambiando a sombra da noite pela luz matinal que, por obrigação, coloca tudo na aparência real, deixando para trás os fantasmas da noite, a assombração que se alterna e as formas inusitadas que obedecem a dança da impermanência em meio ao burburinho do amanhecer.

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Sorriso emprestado

 

Resolvi pegar aquele sorriso emprestado que passou como se ele estivesse cravado para todo o sempre naquele rosto que também rescindia a uma alegria bem antiga, com uma formação mais inusitada e orgânica que ao invés de transparecer o cinzento que delicadamente lhe ia por dentro, ressaltava uma vivacidade reluzente através de uma testa iluminada, bochechas rosadas e nariz empinado o que concordei que estava muito bem posto neste retrato que descobri por acaso nas gavetas semiabertas da história contada. 

Foi desta maneira que hoje pela manhã adotei o comodato inusitado que parte para fora de si, do corpo, da alma, e me arvorei a utilizar esta tática como se minha fosse e sair por ai palmilhando com pressa o que acontece ou o que pode acontecer através desta marca ilustrada e incorporada. Quem sabe por detrás da uma suspeita surja a verdade, atrás de uma traição um pedido de socorro e pode também o acaso vir a bater na porta e encontrar tudo desarrumado e assim de surpresa em surpresa do desarrumo, o arranjo poderá aparecer feito este sorriso que pedi emprestado. É de outro tempo, mas vale de qualquer forma. 

Com esta careta que brilha mais que fogo-fátuo tenho absoluta convicção que vou encontrar a velharia escondida pelos cantos louca para levar um bom lustro de atualidade, as biografias amareladas e carcomidas pelas traças implorando por restauradores compadecidos com o que não se pode deixar esfarelar e assim, vem vindo ao encontro desta cara colorida que me veste tudo o que se acha na fila do descaso. Comprometida resolvi encarar o desafio e coloquei tudo em pratos limpos e na gaveta da rotina adequada e assim que completei o serviço devolvi o Sorriso das Antigas que, por necessidade, tive que pedir emprestado ao tempo passado.

sexta-feira, 16 de abril de 2021

Sair fora

  

Um pensamento interessante me assaltou a mente quando, por força do hábito, minhas fantasias – algumas estapafúrdias – saltitava por entre muitos temas quase todos muito caros e recorrentes no meu dia a dia. E foi como uma flechada certeira que me lembrei daquela massa humana da qual fugi há alguns meses atrás, que se movia uniforme e desconexa, fazendo tanto barulho na minha cabeça que acabei ensurdecendo completamente para tantas e muitas passagens relevantes e merecedoras de imaginação e discernimento. 

Dei-me conta que as gentes que estavam sempre me cercando e pendurados na minha aba foram varridos de mim e do meu entorno naquele dia fatal de partida para nunca mais voltar, me chegando à memória como se fossem finíssimos grãos de areia arremetidos sem autorização na vereda que me enredo todos os dias na busca do interessante, do inusitado, do simples, do possível e do impossível. 

Deixei-me levar - por alguns instantes - na volta àquele tempo que para mim já é remoto e notei que a lembrança deste bota fora inconteste veio agregada a um sentimento de vitória e também de uma paz interior, imensa. Para completar, uma alegria íntima, sorriso de face a face, passos leves, coração aberto, alma leve e benevolente. 

Como determinei tempos atrás continuo com a persistência de, ora em diante, não ceder a apelo de desconhecido, voz enrouquecida, olhar de viés duvidoso, interesse escuso e explícito deixando a vida na beira do abismo e na várzea do mundo. Libertei-me de tudo e agora só navego por terra, por mar e pela maresia.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Maré

 

Aproximei-me da beira do mar no dia em que a maré vinha lamber os cômoros e as muradas que andam sempre com ar derrubado porque a natureza é implacável e busca de volta o seu lugar de origem - detalhe que gosto muito de observar. E assim, vem levando tudo que lhe passa pela frente e volta deixando os trastes e traços de qualquer coisa que não lhe pertence, se igualando a caminhadas sem destino em que devolvemos ao vento os efeitos do que não nos cabe transportar. 

Parece um pouco de exagero imaginar que nas planícies sem fim da memória os perdidos e achados se equivalem ao espaço que por ora e por hoje lava-se inteiro com a espuma do oceano que fica no vai e vem brincando com todos os praieiros da gema e moradores das entranhas do quebra mar. 

No embalo das ondas – literalmente – a mente flutua em busca dos perdidos, porem, como o vagalhão que vem com força, passando a limpo o caminho, aos arrastados é negada a aparição pelo simples fato que já foi distribuído ao ostracismo do sem importância, sem registro e sem noção. 

Nesta praia limpa e lavada do entulho do fundo mar somente aportará o barco com remos fortes e proa apontada para o horizonte que se junta ao oceano profundo iluminando o destino que está sempre ali ao alcance da vista.

sábado, 10 de abril de 2021

Os esquecidos

Todos os dias me defronto com minha agenda imaginaria minuciosamente escrita com os assuntos relevantes que devo passar a limpo para deliberar, pensar, desenvolver ou simplesmente pensar no quê me aparece, desde o fundo do meu coração, passando pelo pueril que, aliás, anda dominando os rascunhos. Mas é obrigatório incluir o que possui alta e absoluta razão de surgir e assim reescrevo tudo, todos os dias no capricho, não podendo haver descuido porque eu sei que os muros do meu entorno volta e meia são mal frequentados. 

Mas, assim, em um momento qualquer o desaviso acontece e me defronto sem poder fugir com os esquecidos, aqueles, que tiveram uma rápida passagem pelos temas que eu prezo e que assim como se acercaram se foram mata adentro, deixando a trilha pública com tantos lapsos na pisada e confusão de direção que me fez sentir que deveria ser naquele dia mesmo que eu me dedicaria a fazer os consertos, pontuais como merece o meu destino de letras. 

Deslembrados é uma ótima palavra que eu encontrei em algum canto do dicionário  secreto que eu utilizo, com ar de que talvez a dita cuja não exista, ou não esteja correta ou o que o valha. Pensei duas vezes e depois de escrita e composta com primor, ela fez - pelo menos para mim - todo o sentido. 

Foi com esta intenção que comecei a buscar o exato momento em que foi efetivado o desvio das falas e as letras começaram a se confundir entre si parecendo me chamar à atenção para que me desse conta que o diapasão do conteúdo estava fora de tom. Ao perceber os desvios dei-me conta - um pouco tardiamente - do que poderia vir a acontecer com toda a caligrafia já impressa, somando tantos parágrafos, pontos e vírgulas pensados e grafados com convicção. Rapidamente me autorizei a quebrar o círculo dos interesseiros e corrigi o rumo deixando apenas o vácuo como lembrança.


terça-feira, 6 de abril de 2021

A seu tempo

  

Sem nenhum assombro debrucei-me nos tantos assuntos que se ofereciam a mim como se fosse eu a única que poderia deslindar o que houvesse, e, deste jeito bem confuso comecei a vasculhar o que poderia haver de tão mais importante do que eu ficar a deriva e a mercê de um tempinho só para mim, hábito maravilhoso, um dos muitos que eu adquiri neste meu desterro natural nas cercanias do oceano. 

Com alegria de criança parti para examinar a luz que pairava sobre a cidade esvaziada e assim pude perceber que nas ruas e calçadas com pouco movimento ou nenhum surgia alegremente a flor do campo, a macega, o inço, o carrapato que com pertinaz atitude retomava seu lugar ao sol. Assim verdejaram os passeios e as ruas que concordaram com o silêncio imperioso ativando ainda mais seu vão entre as pedras que já se aprumava para receber a vestimenta de inverno: o delicioso e bem vindo musgo. 

Feita esta checagem junto à natureza apurei o ouvido e me dei conta que o Silêncio decidiu aportar nos arredores deixando que apenas a bicharada se manifestasse havendo certa caluda nas conversas vazias, motivo pelo qual me enredei mais a cuidar para que não se propagasse o falatório mambembe, a gritaria e os modos de verão que permeia as ruas, as calçadas invadindo o valha-me Deus. Assentei-me com vagar para os assuntos que a mim vieram pedir ajuda e me dei por satisfeita rumando por entre as folhas caídas para a beira do mar onde a bicharada residente igualmente ocupou a sua morada de origem com o destino acertando tudo a seu tempo.

 

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...