sábado, 28 de setembro de 2013

Da alma



Num arremesso mal dado, justo neste dia cinzento, meu corpo se desmantelou e fugiu de mim deixando apenas a mente a funcionar. Vi o molambo se afastar irado, composto apenas de braços e pernas desconjuntadas no andar, me deixando com o sentimento de haver me tornado uma alma penada.
Aproveitei a separação para exercitar o desapego de tudo o que me faz ficar desanimada e saí à cata do que vale a pena buscar me dando conta que só olhando o entorno com a alma posso encontrar uma verdade mais ou menos.

Flanando sem rumo acompanhei indivíduos nus de propósitos dignos mas se esmerando no cumprimento da agenda que os faz correr ao camarim teatral diversas vezes ao dia, mudando as máscaras e as fantasias, se travestindo de dramáticos com códigos muito particulares, acreditando serem reais personagens de si.
A esta altura meu anfiteatro estava abarrotado de notáveis que se entreolhavam e alguns deles foram percebendo que se assemelhavam aos outros na malandragem ao tratar o próximo. Com coragem evadi do recinto as vilanias e aportei generosidade e coerência em boas doses para que no futuro eu não corra mais o risco de maltratar minha carne em excessivas concessões.

Desci dali aflita para reencontrar meu corpo físico fugido quando o avistei, muito bem humorado, sem a minha cabeça sempre culpada a lhe perseguir, a lhe ameaçar com fantasmas noturnos e lhe açoitar os músculos com ferro desde que nasce o dia. Sorri benevolente e me aproximei delicadamente, percebendo a seguir que a fuga desbragada tinha surtido efeito e ele parecia feliz por ver sua alma refeita se incorporar a si.
Conceder não mais.

domingo, 22 de setembro de 2013

Sorte


Concentrei-me no que ia fazer com redobrado cuidado esperando que no tabuleiro do dia aparecessem os caminhos mais claramente, uma vez que ando em dúvida do que é certo ou errado, me confundindo um pouco na assistência do que ocorre.
Mesmo assim joguei em dados a sorte e estes rolaram divertidos um para cada lado me deixando mais indecisa ainda, porém feliz pela oportunidade que se apresentava. As chances de hoje que me aparecem não são exatamente as que eu escolheria, portanto, melhor pensar no que está mais de acordo comigo e assim avoada, resolvo brincar de procurar e achar.

Chegando mais perto do rumo apontado para entender a casualidade que resultou do lançamento, dei de cara com pedaços de mim arruinados no meio do caminho e fui catando com pressa sem pensar muito, porém atenta ao significado.  
Com este saco da desdita cheio resolvi depurar cada item e pensei que eles me levariam a um novo agora.

Dada a partida.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Rompante


Acordei com o olho arregalado como uma flecha cravada na maresia glacial, mas, como sempre faço, confirmei que viva estava e coloquei pernas e braços para fora da cama no ar frio e dei uma olhada na vida para ver se ela ainda estava ali, se ela me chamava para alguma coisa ou se eu poderia, talvez, me enrolar bem quentinha e descansar em paz. Nada, na porta, com a xícara de porcelana transbordando em café fumegante, ela sorriu e me disse que estava mais do que na hora de  fazer-lhe companhia.

Mal humorada tive que aceitar o santo café que sempre funciona como um pontapé na traseira me jogando do outro lado da linha e, quase sempre, no lado em que eu não desejo estar por nada do mundo. Fiquei perguntando para ela porque esta insistência em me fazer dar socos ao vento, e, às vezes, não acertando nem o próprio. Não me respondeu e continuou a apontar o horizonte como objetivo. Dela, evidentemente.
Percebi então que em alguns infernais momentos ela me persegue e me arrasta  sem trocar uma idéia e sem me encarar uma única vez. Arrogante, me leva na afoiteza  me jogando em campo minado, em bandas onde grassa promessa não cumprida e acordos maculados, mais parecendo uma trincheira de inimigos sobrepostos sem noção e com rentabilidade zero nos quesitos que eu mais prezo.

Dona de si continua me empurrando para frente e eu imagino que ela saiba para onde está me tocando, mas por mais que eu aprume as ventas e foque o olhar percebo que o destino apontado é lugar nenhum.

A esta altura ela está me arrastando  com força pela mão, mas eu, em um rompante de coragem e combate troco o figurino do dia já traçado e me aventuro.

Treino pesado.

sábado, 14 de setembro de 2013

Moucos


Jurei que haveria uma última vez e até marquei no calendário a data. Já havia me comprometido comigo mesma de que me afastaria da situação outras vezes, mas sempre tinha aquela pressão do Inferno que me fazia desistir, deixar para lá, relevar. Eu penso sempre, afinal de contas, que é  interessante dar uma chance ao mundo uma  vez que as coisas podem se acomodar por si mesmas, e então abonava a luta.
Eu lembro que sempre que acontecia o inominável eu pensava que devia ter paciência e buscar as soluções que nem estavam sob o meu poder e muito menos ao meu alcance. Altaneira por ali seguia,  porém, acabrunhada comigo mesmo por não conseguir abraçar minha intuição me traindo por medo.
Fico pensando que medo será esse que me leva a perceber o pior e, teimosamente não  enxergar, me colocando em acontecimentos de arrasta-corrente sem fim, embarafustada em meio a conjunturas soberbas sem um arremate decente.

Que talento é esse que eu tenho de travar na hora em que eu mais preciso  fortalecer a discussão,  buscando e não encontrando todas as palavras na ponta da língua, e por este motivo,  corro atrás daquele raciocínio lógico e não encontro uma vírgula sequer para me salvar.
Todos os sinais que pontuam minha escrita e me acompanham barulhentamente  todos os dias da minha vida no teclado reverberando minhas noites assombradas, na última hora,  se fazem de moucos e não me apontam a redenção.

Sendo assim, saltei os obstáculos.

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Pietra


 
Meu filho aos vinte e quatro anos se formou e aventurou-se  na busca de novos ares para viver e encontrou um clima quente, ensolarado e carente de profissionais. Por lá ficou. Bem longe. Os filhos são da vida e, portanto, abençoei a iniciativa, guardando numa caixinha no canto do coração a saudade e a falta que sinto dele e que sempre aperta mais.
Vai daí, que um dia atendi alegremente o celular já sabendo que era ele, apesar de estar entupida no trânsito. Foi quando meu filho respondeu ao meu entusiasmo :  VOVÓ !!!!!, uma noticia dada bem de acordo com seu jeito irreverente. Atravessei o carro na rua para poder chorar à vontade e dar os merecidos parabéns pela felicidade dos pais e agradecer pela vinda da baby.

Deste dia em diante, durante nove meses,  todas minhas reuniões com clientes estavam pautadas no mês de nascimento da minha neta sem nenhuma negociação. Chegou o dia e lá estava eu, olhando aquela menina comprida, magrela, de grandes olhos azuis e características emocionantes dos pais.
Acompanhar de longe uma criança crescer é instigante e muito vai da imaginação e de ficar perguntando isso e aquilo para poder avançar no retrato. As lembranças vão ajudando a montar os quadros do tempo passando, uma vez que dentro de mim reverberam as ocasiões especiais de nossos encontros. Ela adorava gibis sem nem saber ler e então, apontava quadro por quadro e eu ia lendo para ela. Deitada sobre mim, na rede, acabava roncando em poucos minutos. E eu também.

Chegando uma vez em minha terra, ela dormiu  comigo e eu tive uma insônia abençoada lhe observando a respiração regular, o corpo descansado e quase inerte. Mais tranqüila ao ver que tudo corria bem, descansei um pouco para ter a alegria de ao abrir os olhos encontrar aquela menina ao meu lado. Sempre será a maior emoção da minha vida. Na seqüência, arroz com ovo, visita às livrarias, teatrinho para crianças e então tive certeza: o paraíso é aqui na terra.
E a vida anda e muda e entram as conversas pelo Skype, telefone e visitas à lonjura daquele lugar que foram permitindo ver minha neta crescer aos saltos e acompanhar a sua fala se modificando e sua voz cada vez mais se tornando de uma menina.

Agora ela completa 11 anos e é uma mocinha digital, nos falamos pelo Instagram e lá vou eu me surpreendendo a cada dia com a conversa dela, conhecendo suas amigas do peito e tudo que envolve esta idade.
Esqueci de contar que quando ela nasceu criei uma gavetinha azul em um lugar especial da minha mente, inventando uma chave secreta, para que nunca eu a perca de vista.

Lembrança, uma chave de ouro.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A criatura


Desde tempos eu lhe observava a atitude e alguma coisa me passava um certo mal estar, um frio na espinha que me sinalizava um ambiente dúbio, incerto e não me parecia sedutor estar ali, tentar trocar o que fosse, conhecimento, energia de trabalho, informação relevante, ou,  um pouco de doçura.
Piegas eu sou demais e a vida não dá mole, te empurra para o precipício só para testar se tens mesmo garrão ou força na panturrilha para não se agachar ou, pior ainda, desabar.
A alienação fica clara na vista que vaga intermitente no ambiente sem pousar em nada que seja ressaltante. A mente se oculta dentro de si e me dá dó visualizar o sofrimento do espectro em conflito, uma alma perdida em sabe-se qual planeta. Segue quebrando protocolo sem perceber que já se tornou um macaco em loja de cristais.

Sigo firme, encilhada no momento e na espera do vômito difícil daquele que somente consegue resolver alguma coisa depredando um pouco, ou muito, do outro. Some-se a isto um certo fervor em seguir somente o que já foi criado parecendo que não há condições próprias para fazer acontecer o seu de maneira mais inusitada.
Não me sobra alternativa a não ser ficar esperando o desfecho da morte anunciada e acabo me divertindo com o embaraço, mais não fosse o detalhe de que falta de educação me incomoda muito.

Tic-tac dos sem noção.



domingo, 1 de setembro de 2013

Busca


Corri de fora a fora para ver se encontrava algo que me fizesse ficar, algum sinal expressivo de que valia à pena continuar por ali. Dissequei as gavetas há tanto tempo fechadas que até as traças se espantaram e largaram fora rapidinho.

 
Ansiosa, escarafunchei as pastas que encontrei assim como foram revistas todas as fotografias amareladas e os retratos em moldura expostos, rapidamente,  tiveram uma nova feição na prateleira. 

Joguei-me dentro dos armários, visualizando todas as roupas e me coloquei dentro delas para ver se fazia sentido elas estarem ali à minha espera. Rolei por debaixo da cama parando  na mureta de onde podia ver a cidade que dormia e, mesmo com este raro silêncio da urbe, não encontrei a razão.
Na louca busca, entre um andar e outro, encontrei  fantasmas que me assombravam, porém, corajosamente, relevei sua importância e acabei percorrendo cada cômodo, silenciosamente, reverenciando as lembranças que eu ainda podia ter como um recurso para  sobreviver.

Em algumas paredes surpreendi marcas provenientes das colagens de tempos antigos  porque nunca permiti que os obreiros as retirassem completamente. Mudo a cor, mas as rupturas no cimento balizam um tempo em que ali se cravavam bilhetes carinhosos do dia a dia e que, agora, diante dos meus olhos, figuram como  pretextos aos quais reluto em me render.
Está difícil se encantar por estes caminhos que se apropriaram de mim e  da minha vida, e, por este motivo,  continuo na busca de evidências que me auxiliem na escolha de ficar ou ir embora, sem me dar por vencida.

Pendurada, me vejo morta de paixão na perseguição do meu eu.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...