domingo, 27 de novembro de 2011

Lata de tinta



Eufórica abri a porta de sopetão para vasculhar cada canto tão desejado mas fui surpreendida de frente, não com os ventos nem a maresia, mas com um odor que me deixou nas patas de trás, volteando para lá e cá rapidamente, me parecendo que eu não tinha saída.

Mas tinha, evidentemente.

Dei uma geral no sonho realizado composto de pedra sobre pedra mas dali em frente meu semblante se anuviou e eu só enxergava os buracos na parede, a tinta envelhecida, o mau trato daqui e dali, a torneira trocada as pressas por uma tão simples, mas tão simples que me machuca a mão cada vez que tenho de usá-la.

Continuei na empreitada investigativa de cima a baixo com meu senso crítico exacerbado quando resolvi levantar o olhar para a paisagem eterna que eu vislumbro daqui e fui então me derramando para fora ao invés de rastejar.

Não demorou muito para que o lugar fosse coberto de branco exalando bons cheiros e levando embora para outro destino, que não o meu, aqueles buracos, parafusos, frestas e paredes rescendentes de outro, com sombras de outra vida, com cheiros de outra era.

Agora uma nova história será contada e novas marcas serão impressas nestas paredes que haverão de se moldar ao novo personagem, como um velho cinto de couro, que de tanto ser usado fica na feição do dono.

Uma simples lata de tinta branca.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

É lá



Nunca pensei que haveria de encontrar lugar tão perfeito, um canto tão a minha cara e na minha mente, mesmo vazio, cheio de expectativas encantadoras para viver. E também, morrer.

Em manhã luminosa, saboreando um café diante da paisagem, a respiração fraca e um tanto suspensa, os braços perdem forças se alongando junto ao corpo e, ao mesmo tempo, meu olhar enevoado se fecha para o mundo.

Quem sabe ao deitar-me com o barulho das ondas ao fundo, não consiga nem acordar porque meus anjos, na calada da noite, vieram me avisar que estava na hora de fazer aquela viagem com hora marcada para todos, mas nunca sabemos quando será.

Talvez, na tardinha sentada em frente à natureza, sorvendo um vinho, eu feche os olhos para a apreciar o momento, e não os abra mais.

Poderá ser também um momento criativo, com meus dedos batendo vigorosamente as teclas do meu computador quando, num repente de sono tardio e estranho, me deixo encostar a cabeça nos braços, e, na seqüência, não mais a levante.

A poltrona da leitura poderá ser a última testemunha. Ao abraçar meu corpo cansado, resolve que seria esta hora, a derradeira. Docemente caio num sono profundo e me vou para o outro lado.

Todos os delírios de uma partida serena.

Que Deus me ouça.

domingo, 20 de novembro de 2011

Seis meses



Desta feita não tem pegar ou largar porque o destino traçado por Deus não deu escolha ao vivente. Pensando bem no tempo, se longo ou curto, se escasso ou abundante se oferecendo a nós com generosidade, desfrutar é a pedida da hora.

Se uma pessoa tivesses seis meses de vida quantas opções ela teria no dia a dia, com o amanhecer batendo como um sino, avisando a contagem regressiva.

Se fosse eu, em primeiro lugar trataria de esquecer de morrer e daria espaço a vida que de fato a gente nem sabe direito como é, uma vez que nossa existência é a luta pela sobrevivência, pelos teres, haveres e dizeres.

O mar seria o meu objeto de desejo e para ele eu iria me dirigir sem pestanejar porque suas profundezas e segredos aliados a sua indomabilidade me fariam sentir a pulsação da vida na deslembrança do tempo passando.

Talvez todos os gostos viessem acompanhados de um ingrediente extra que jamais teria percebido quando tinha todo o tempo do mundo ou a incógnita da data fatal.

Os olhos veriam as minúcias de cores e matizes carregando a imaginação lotada de paisagens reais e irreais que toma tanto tempo que não o vemos correr.

O corpo invadido nem sentiria a intermitência e os engasgos do bucho uma vez que a mente estaria muito ocupada em viver.

Pensando na vida, ironicamente, no rumo da morte.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Apimentada



Pequena e rechonchuda a menina sardenta com um “bucles” na ponta da cabeça, cachos vermelhos lhe emoldurando o rosto e uma teia de sardas da cor ferrugem tatuando o corpo, gostava de ser independente se aventurando bem cedo em longas caminhadas, sozinha e determinada, coisa inusitada para uma criança.

Às vezes um pouco séria demais para a idade, dava a impressão que havia um tormento escondido e desajeitado sem concessão da vida para aflorar, ou quem sabe, uma decisão interna desafortunada que por vezes lhe sombreava o semblante. A verdade é que aquela criança salpicada tinha pressa e urgência norteando com alarido os acontecimentos. Apimentada em suas relações de afeto, tinha enorme facilidade de animar e reunir gente ao seu redor, sendo fiel aos amigos uma vida inteira

Em criança, o divertimento era escolher as cores que “combinavam” com aquele estilo “foguinho” para deixá-la sempre mais e mais linda sem perder o estilo apimentado da personalidade que a caracterizou tão bem na sua trajetória pela vida.

A garota ferrugem aceita o convite do anjo que lhe bate a porta, mesmo tendo ainda muito do que se despedir.

domingo, 13 de novembro de 2011

Lambança



A lambança, termo bem antigóide que relembra lavação de roupa suja e que muita vezes é – ou era – usada para cornetear desavenças políticas tem tido uma versão que eu chamaria “da hora”. O e-mail.

Bela ferramenta essa que nos aprisiona em uma cadeira com os olhos cravados na tela, dedos fincados no teclado jorrando freneticamente o conteúdo que ao ser enviado não tem volta. Sem arrependimentos, portanto.

A ferramenta de comunicação que nos une a muitos e poucos, dependendo de como nos comportamos com ela, é uma arma poderosa de lambança porque a palavra escrita é lida e interpretada de maneira única e singular por cada um de nós.

Então veja lá com que vírgulas vais separar tuas idéias e que sina vais dar a pontuação que divide tuas frases. Não vá apartar o certo do errado nem acrescentar algum assunto mal visto que poderá levantar suspeita, porque a suspeita é a amiga íntima da paranóia que derruba amizades, grupos e comunidades.

A comunicação deveria servir para aproximar pessoas, porém, se nem a conversa o faz, imagine palavras digitadas em maus momentos quando a tela recebe letrinhas enredadas umas nas outras sem reclamar da agitação.

E lá vem o receptor da mensagem com a cabeça virada ler o que lhe chegou.

Justo naquela hora que estava relaxado e contente, feliz e agradecido pelo dia findo, lhe chega de sopetão: a cobrança da conta esquecida no fundo da gaveta, a doença de um amigo querido, uma reunião bem chata na sexta-feira, a previsão de chuva no feriadão, um aviso de banco que é vírus, uma citação do Serasa impossível, uma sugestão de namoro de alguém que nem conheces, um comentário anônimo no blog.

Um vírus humano que não tem cura.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...