sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Solitários



Na primeira vez me chamou a atenção um pé de sapato solitário perdido na beira do mar. Era de homem, e devia estar no fundo do oceano algum tempo, a confirmar seu aspecto, e me dei em conta de pensar em mil achados para o perdido. Jazia entre areias, mariscos mortos e tatuíras idem. Era um pé de sapato de couro preto com grossa sola borrachuda.

Poderia ter sido de algum macho marinheiro ou pirata de atanhos que talvez o tenha atirado em uma briga na cabeça de outro combatente. De pronto, me pareceu ouvir as passadas fortes do homem autoritário que se fazia atender através de seus passos pesados que o calçado abrutalhado lhe conferiu. O sapato, por incrível que pareça, não estava rôto, estava revestido uniformemente de uma camada de musgo marinho, ainda verde, com uma visão cabeluda, levemente sinistra.

Talvez tenha escapado do pé de seu dono em uma farra etílica, numa briga do macharedo por um rabo de saia, ou jogado ao mar pela mulher traída que o surpreendeu agarrado em outra cintura. Pode ter ocorrido em uma tempestade de alto mar e o sapato se desgarrou de seu corpo. Ou o corpo se esvaneceu restando apenas o heróico calçado.

Solitário na beira da praia veio dar o seu recado a quem o visse.

Da segunda vez foram os pedais que me alertaram na beira da estrada para um sapato feminino caído no asfalto. Um salto alto, bico fino, preto e com laço dourado. Novo ainda. Sapato delicado deve ter tido sua última noite calçando a senhorita fogosa e faceira que em passos de dança comemorou a noitada. Depois, rodou em doce passeio na Barra Forte do amado, a quem enlaçava delicadamente a cintura para se equilibrar. As duas pernas para o mesmo lado como convém a uma dama, e scarpin brilhando ao luar. Não foi percebido o desgarrar-se do acessório que por ali ficou pela sua própria conta, brilhando mais tarde, à luz do sol.

Dois pés perdidos no mundo. Macho e fêmea que nunca se encontrarão.

Desencontros relativos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Vera,
foi muito gostoso ler a crônica. As imagens das palavras escritas vieram facilmente. E deu para imaginar mais...
Maria Rosa

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