sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Vestígio


Não pensei muito naquele dia porque eu tinha urgência, muita coisa me esperava após o bater de portas que hoje percebi que vieram muito silentes, quase imperceptíveis, e então deste jeito e assim, as janelas, as frestas, os buracos, os vãos, se mostraram a mim travestidos de novas oportunidades parecendo ali, naquela hora, que zombavam de mim por ter sido tão cega.

Eles se apresentaram como pontos de luz difusa, uma claridade que nunca havia visto, com reflexos parecendo cristais que se dirigiam a tantos nortes que me deu uma quentura na alma, que eu tenho certeza, somente oportunidades genuínas poderão te remeter.

Ser cega, às vezes, somente se parece com não ter a noção exata de quem está em frente. Parece tão fácil conhecer o que está ali, mas basta um ponto para que o castelo de cartas desmorone, e assim, a intenção sempre camuflada apenas confere a linha dura que estava sendo imposta e desta forma se consolida uma arte que não é o direito, mas sim o avesso.

Então, pensei que eu poderia agora pensar dentro de um espaço com aberturas que me fizesse crescer, que me desse oportunidade de saber mais e melhor, de olhar e ver sempre outra coisa, não me entrevar ou me deixar comandar por inúmeros. Vou libertar-me de falsas frinchas que pretensamente apontam para um todo, mas inequivocamente estão com os dardos apontados em outra direção.

Olhar com mais vagar todo o dia a mesma paisagem e ver diferente. Ter na cabeça o propósito de enxergar tudo, mesmo sem avistar o norte, costurar tanto o lado avesso que ele pareça direito, esmurrar o vento na diversão, acreditar que sempre é para valer e então, de agora em diante vou passar sem deixar vestígio que não combine comigo.

quinta-feira, 29 de setembro de 2016

Closet


Circulei com audácia por entre panos dobrados e achincalhados porque era naquele monte enredado, colorido, arrevesado, que eu deveria me ater naquele momento, e enxergar a tarefa apontada para mim como uma garrucha prestes a detonar. A primeira coisa que eu me determinei a fazer foi espalhar pelos arredores do cômodo - pequeno - as peças que assim, neste formato, perderam de fato seu brilho, seu estilo, seu glamour e assim relegadas ao chão, algumas foram pisoteadas sem dó nem piedade. Havia uma certa pressa em organizar, em colocar os pontos nos is, em separar o joio do trigo e triunfar no final do jogo jogado pela vida que se atrevia a encarar de fato a mudança.

A organização não primou pelos materiais, mas sim pelo significado, e ahhhhh significar é tudo o que se mais quer, o desejo de se apresentar frente ao outro com relevância, a audácia de ser importante entre outros mais e, claro, o ponto alto é ser indispensável. Caindo em mim, fragorosamente, dei-me a perceber que os tantos amontoados se configuravam apenas como panos, por estarem assim espalhados no chão, dando um viés de sem serventia aparente, desqualificados e sem propósito. A constatação me fez sentir que este era o momento em que o espaço pedia passagem aos berros e eu ali, com os braços estirados ao lado do meu corpo, relutava em conhecer a verdade.

E assim, um pouco desatinada e sem saber como cumprir com a tarefa, me joguei furiosamente ao acumulado de vestes que compunham meu figurino desde alguns anos, a bem da verdade. Então foi bem bom lembrar quando a minha fome de variação se extinguiu, se escafedeu, foi pro saco e entrou triunfal a resolução da hora que constava em ter o manequim conservado para que para sempre pudesse vestir todos aqueles trapos.

Para grande alivio fui intercalando o arremate do acervo com sorrisos de despedida para algumas peças que já se acumulavam em montículos com destino certo. Agora, não preciso mais me perguntar com que roupa eu vou, mas sim decidir qual modelito eu “carrego bem.”

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Logo mais


De certo que ali não havia muito movimento naquela hora, porém, de qualquer modo, era isso o que me atraia, talvez. Em contrapartida com os movimentos da vida urbana, assistir os andamentos do pacato lugar, era sempre uma aventura, que eu não cansava de usufruir. Fosse de longe ou de perto, ali estavam os meus olhos descobrindo os novos formatos que saltavam à vista mais acurada, mas só daqueles que se embrenham no mundo interior com tempo firme ou avesso. São tempos em que se assobiam trilhas de uma nova estação, de mudança na natureza e assim também o meu dial reverso para outras antenas.

Mas não foi com esta intenção que passei a escutar o derramo, me ative por considerar algo que me chamou a atenção e fiquei imaginando que não seria prudente sublevar meus pensamentos. E então vieram a mim como se fosse um show de várias orquestras, o som estridente de suspeitas conversas dos asas de telha que por ali se revolteavam. E ensurdeci ao ouvir toda aquela gralha, apurei os ouvidos e passei a entender a grande charanga de todas as espécies que se alternavam em bandos por entre os muros, os galhos, as telhas, os postes e os fios de luz que constavam do meu quadrado. Pequeno, na verdade.

Continuei amoitada agora com os olhos em riste me dirigindo às garças silentes que se abandavam para os lados de cá do mar se arriscando e voando baixo no riacho. Pareceu-me que brincavam ou faziam estripulias longe do seu natural espaço que ruge sem cessar. Elas são donas da beira da água junto com outros vários pássaros que passam o dia na maior calma, mas com a aterrorizante sina de abicar sua comida, farta por ora, porque ali também impera a ordem do dia: todo mundo trabalhando para seu sustento, eu inclusive.

Na outra ponta as enigmáticas conchas se postam por ali desprovidas de quem deram a luz, jazem descarnadas, recortadas pelas pedras e areias do mar, quebradas por redes de pescadores, de tarrafas brincalhonas que arrastam para este canto seco, dando assim um fim ao seu roteiro. Algumas estão fatiadas, outras permanecem inteiras ou apartadas de sua metade. Mesma confusão da vida delas que não depende de seus próprios pés para selar seu destino, mas sim com o mar na sua supremacia natural.

Uma inquietação passou por mim, leve como a traição, fugaz no propósito, porém clara na finalidade. Antevi que a sombra da praia não virá mais das nuvens benditas que brincam o dia inteiro entre sombrear e acalorar, mas sim de coloridos quarda sóis enredados um no outro, a gritaria da natureza será substituída pela corneta do sorveteiro vibrando para aturdir, o imenso vazio será tomado pelos corpos em volume excêntrico nas areias, os pássaros sumirão em bandos, as garças correrão a se esconder, as conchas milagrosamente se enterrarão rapidamente antes de serem pisoteadas, a bicharada inquilina do quebra mar se afundará de medo. Então percebi: o verão vai chegar.

domingo, 25 de setembro de 2016

Uma brecha


As circunstâncias estavam muito favoráveis e talvez fosse necessário mudar o rumo do que até agora foi feito, apesar de que sempre que se engata a marcha, impossível desacelerar, depois de sempre sorrir, impossível chorar, depois de gastar-se em atenção constante, emudecer parece trágico, depois de sempre relevar, subir o tom é ficar sem voz, depois de nunca se melindrar, ajustar as razões parece agressão. E as desculpas para lá de esfarrapadas iam sepultando as intenções de mudança.

Mas era por ali que o começar aconteceria, uma vez que tantos fatos se apresentassem com uma verve indecorosa que era impossível não lhe dar atenção. E foi nesse caminho de observação que o tudo ou nada se oferecia e não havia meio termo porque o tempo passara, e tudo já estava desarrumado como sendo um aviso para o desembarque.

Assim também se tornara inválido trocar de lugar os fatos porque enviesados já estavam, em alguns o foco se apagara e em outros a luz constava exuberante, talvez porque aqueles continham uma história mais virulenta, mais aguerrida em consolidar-se. Pelos lados, ocasiões de somenos importância que jaziam na espreita coroados pela luz difusa deste breve resvalo na impotência.


Parece estranho tentar reverter ditas verdades, mas a premência está fixada na limpeza de tudo o que ainda se mantem de pé, os lances que não fazem sentido, que não favorecem que não acrescentam que não trazem alegria. O pano da faxina conduz a mão ao invés de ser o contrário, porque de tudo estar tão claro agora os acontecimentos se descolam daquela via, se extraviam estonteados por não terem mais propósito, se jogam desmilinguidos por não terem significação na exorbitância e no desatino. Tudo vai sendo relegado ao efêmero que capricha na depuração e agora restam insólitas palavras soltas, frases sem nexo, sofreres sem propósito, desgostos desativados. Uma brecha para não ser mais preenchida.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

Linha cruzada


Um alô! simplório abre uma porta radiofônica e muitas vezes entra uma linha cruzada sinistra e deste jeito se estabelece uma conversa de loucos como tantas por aí, se entrelaçando misteriosas e desconexas para o não convidado, que busca entender aquele diálogo que surge no meio de um dia em que a intenção era buscar uma conversa alhures com alguém, que inclusive já aguardava a ligação. Mas o destino foi mais forte e levou para longe o propósito.

Emudecer de curiosidade e ficar ouvindo o que os outros falam como se fosse premente estar ali, coloca na vista uma onda magnética de indiscrição e medo. Sem nem respirar, o intruso engole as estórias alheias e os mexericos obviamente incompreensíveis para quem está de fora. Telefonemas anônimos eram comuns e a paixão platônica surgia através do timbre de voz e assim se derretiam as fronteiras do cuidado e arrombava os contos absurdos fazendo reféns do fio condutor da conversa alheia.

A baliza de intersecção de conversas evoluiu com a destreza e descaramento inominável tornando desconhecidos, alvo e pontaria, unidos e separados, ativos e reféns, que negligenciam o propósito da troca, que escarnecem da realidade se formando uma massa crítica para o que vier. Sem acordo, sem proposta e com a única bandeira de si.

Por onde anda a verve que reúne uns tantos em torno de vários e que, para que haja entendimento, cada um tem a sua vez de se posicionar, de falar com as mãos, de vociferar com os olhos, de pensar em segredo, de respeitar sem se imiscuir, de gingar o corpo todo fornecendo assim a teatralidade do conchavo, refrescando as ideias, alegrando o convívio, articulando novos temas.

Em nenhuma praça os encontros misturam o apoteótico da razão com a vivacidade do discutir, do dilacerar argumentos com tanta abundância que os posiciona em mergulhos profundos de oportunidades. Várias leituras para tantos temas. 

segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Perdida


Fui andando sem olhar para trás porque estava cansada de conversar com a minha cabeça que não me auxilia e às vezes acho que está mais para miolo mole. Então olhei para frente, para o nada e é para lá que eu vou. Nem sei o que fica para trás, mas vou fazer considerações como o dia de bobeira que me permite ficar ausente da vida, catando o que não fazer para poder mais tarde juntar tudo em um ramalhete de vagabundagem.

No rol insuspeito que estava se considerando o tal por eu finalmente ter-lhe dado atenção e achando que qualquer coisa que viesse a tona agora teria serventia, se enganou, não era esta a minha intenção. Eu queria comemorar minhas falhas olhando-as de frente e apreciando que sem medo tudo fica mais fácil, mais completo e nítido.

De repente ficou muito divertido perceber que esqueci coisas importantes, dando-me conta de que havia um quê de causa e efeito inconsciente. Os acusadores neurônios da culpa se movem sem serem notados e sempre dão uma mãozinha sem consequências maiores. Então começa a varrer a consciência tantas outras derrapadas que soaram insignificantes de certa forma, mas hoje, começam a bobear na minha frente como sendo burradas apenas.


Andei mais um pouco no delírio dos erros e fui crendo que foram muitos e agora todos pareciam ninharia.  Uma falha se eterniza no momento em que é lembrada como um fardo, costurado com as linhas da culpa e assim esta mochila exagerada na feição e carga se insere como se ao nosso corpo pertencesse. Afinal, o andar desta carruagem e da martelagem na causa antiga leva à exaustão emergindo das impossibilidades a absolvição, que finalmente oxigena o ramalhete. 

sábado, 17 de setembro de 2016

Cinco minutos


Os dias são recheados de cinco minutos e andamos com este refrão contante sem nem ao menos pensar no que estamos nos impondo e a pegada é no escuro. Parece que naquela montanha imaginaria de minutos somos empurrados a fazer o que nunca ninguém fez, a realizar a primeira tarefa do dia mais rapidamente do que de costume, a pular aquela reflexão porque a premência nos rouba a alma, porque se não for agora, não será.

E de tempos em tempos vamos formando nosso dia, sem olhar nem para frente nem para trás, apenas tendo em mente que a fila anda e que ninguém espera sua vez chegar. O movimento é sem apuro e deste jeito fica difícil imaginar que muita coisa que se apresenta vai ficar sem resposta, sem nem uma vaga ideia do propósito real de tantas requisições. Cinco minutos aparecem como facas no pescoço, ou como uma corda que pressiona o impulso parecendo muito despretensioso.

Os minutos muitas vezes vêm bombear a urgência diária, mas não se tem aferição do porque de tanta inquisição para um momento em que nada urge. Nos somados segundos em que o sol acaricia o mundo e rosna um bafão nas terras mais minguantes não é o momento mais assertivo de não pensar. O tranco tem de aparecer porque o momento prima neste sentido.

E sempre naquele momento em que se debate a forma ou o gosto do realizar rápido, seja uma felicidade, seja um pecado, seja uma bobagem. A coragem está ali bem assertiva marcando com força a celeridade que estabelece uma linha tênue onde o tudo e o nada podem acontecer. Não tem meio termo quando a fobia aparece.

Então, no calor do desejo de em nada pensar, no rompante momento em se livrar e deixar fluir o seu melhor sem amarras, de não deixar que nada interfira, de pensar que a vida é isso, os cinco minutos se transformam em caudaloso medidor do tempo onde acontece uma bobagem, uma gafe, um risco.

quarta-feira, 14 de setembro de 2016

Casinha de praia


Aquele caminhão surgiu do nada na janela em que costumo me postar para ver o dia acender seu fogo matinal, vindo agora bem rápido para o meu lado, brincando de esconde-esconde com algumas árvores que ali estão bem na minha frente. Da janela, espichei o pescoço para a passarinhada que conversava animada, tal marocas combinando as estripulias do dia, tenho certeza. Surpreendi-me, pois o tal caminhão trazia em seu dorso espetacular uma casa de madeira que resfolegava em rangidos de um lado a outro, parecendo que poderia desabar em mil pedaços, se espatifar no chão ou as duas coisas combinadas, tal o sacolejo.

Não pude deixar de sorrir ao ver tal cena e mais surpresa ao constatar que o caminhão enveredava para a beira da praia e lá se foi por uma trilha tão angulosa quanto a cena. Fiquei pensando em que lugar do mundo esta casinha iria parar, o que pensavam seus moradores ao enviar por tão frágil transporte uma moradia nova, que merecia ser colocada em um terreno com o melhor ângulo solar e assim ter fincados bem firmes no chão, seus alicerces. Estas estacas comprovariam que o abrigo foi construído com todo prumo  para resistir aos arrestos do vento, as brigas familiares, a fumaça do fogão, ao sol causticante e as chuvas torrenciais. Ele deveria estar preparado para tudo isso, pensava.

Mas depois, refleti que poderia haver outra opção para o meu divagar. Vai ver que foi construída em cima do inusitado transporte justamente para não ter fundações, conseguindo desta maneira aprofundar um caráter itinerante. Talvez não lhe aprouvesse assentar seu piso com afinco porque em determinadas temporadas seria por demais pretencioso desejar ficar. Tanto por querer, como por não poder. Simplesmente.

Com a imagem ainda na retina percebi que a fragilidade da cena tinha tudo a ver com o desejo de pousar com suavidade no solo, como se tivesse receio de feri-lo, de não apertar muito suas paredes para poder deixar entrar a brisa marinha que por vocação iria enfunar as cortinas. Não fazer junta forte nos cantos para que ali possam se abrigar reluzentes caracóis vindos da ressaca marítima, muito bem combinados com a sutil presença de minúsculos pontos de areia fina que se abrigam por um momento das ventanias. Deixar as portas mal assentadas para que por elas passe a luz em dias ensolarados, possuir janelas sem tramela para que se abram e fechem ao sabor do horário que a natureza dita. A vida é assim, aparece sempre cambaleando e nos dando alternativas.

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Intimidade


Pensei em toda a intimidade que cerca sem piedade tudo e todos a cada momento, mais ou menos especial, e destaquei que, quando menos se espera, ela se vai, fica sem serventia, sem a cola imprescindível que conecta assuntos dos mais diversos.

As oportunidades de se estabelecer uma relação que se aproxima naquela exata hora em que se imprime a necessidade, surgem do nada, muitas vezes em solitário pensar ou em meio à multidão onde todos falam ao mesmo tempo, ou falam nada com nada, ou pior ainda, falam bobagens, ou nem falam ou cada um fala por si.

Então fiquei ali, mal sentada, na expectativa de corroborar com tantas necessidades de expressão que se somavam ao tempo acumulado, ao monte de palavras que andavam soltas, mas agora se conectavam dentro de mim e ansiavam por demonstrar sua força em investigar, em saber por onde, em tentar resolver, em perguntar e talvez, ensaiar aquela proposta que mora em mim.

O desajeito se firmava e a eloquência inverossímil me flechava como pontos mortíferos a se pensar na única oportunidade que ali se apresentava. Quebrar um silêncio era tão importante quanto calar antes da hora, quanto vociferar na hora errada, abandonar a causa sem nem ter entrado nela. Senti o meu sonho se apresentar com audácia na minha garganta, e, como toda fantasia vinha enfeitada de dúvidas, carregada de inspiração e enlouquecida para mostrar a cara e encarar a reação. Assim é quando se entra na claraboia da intimidade. Tudo, aparentemente, tem o mérito.

Mas, para mim, em se entrando na ocasião mal lembrada, premia completar a lição aprendida a duras penas. Ansiada por tão espúrias metáforas e carente de arrebentar o impreciso, nesta hora tudo parecia um deleite ao meu arroubo de leniência, meu fraquejar por não dar conta de ter uma voz mais alta e uma boca tão leve que soletrasse meus argumentos como se uma valsa dançasse.

Infeliz, dei-me conta que não era a voz que me faltava, nem os tantos argumentos insanos que a mim pareciam válidos, mas que somente a mim se apresentavam. O lacre para indenizar a dita conversa morava na familiaridade que naquele momento estava indisponível.

domingo, 4 de setembro de 2016

Primeira vez


Dei-me conta que ando sentindo um gosto de novo ritmo quase a todo o momento, todo dia, toda semana, o que me eleva o pensamento a imaginar que no nosso dia a dia sempre tem uma experiência nova e que, atrapalhados em passar para a próxima etapa, nem percebemos. Aliás, eu não percebia.

A natureza é a primeira a nos mostrar que o dia nasce sempre diferente, com novas cores, outra temperatura, e nunca um dia é igual ao outro. O vento é, de longe, o mais sagaz porque cabe a ele movimentar as aguas, as sementes, as flores, sacudir com força tudo o que se passa em sua frente nos dias de fúria, ou, em dias de melhor humor, deixar a natureza acalmada e atenta ao vicejar de suas entranhas.

A rotina é um aspecto que tangencia a forma de enxergarmos as micro mudanças, e, sem percebê-las deveras, seguimos à outra pauta, que deverá nos deixar com um alivio na consciência, com a sensação de produtividade intensa – mesmo que assim não seja – porque a forma de lidar com tudo tem de ser mais aparente do que de forma conclusiva. E assim somos levados no roldão da objetividade como se uma massa disforme fizesse de nós apenas um elemento a mais.

Todas as manhãs, nossos rostos se iluminam com outras luzes, marcas novas surgem e outras desaparecem, nosso olhar por vezes acorda opaco e sem brilho parecendo que nossa alma barrenta naquele dia transborda por ali, sem que possamos impedir. Surpreende-nos como uma estreia amanhecermos com um olhar mais vazio, reparando nele como um dia malfadado, esquecendo então de tantas ocasiões em que o brilho inusitado nos empurrou para fora, sequiosos das novidades.

Agora, consigo ver tantas coisas que se descortinam com suavidade diante de mim. O nascer do sol com nuvens purpúreas  está sempre na minha janela, desde o momento em que começa a brilhar, e, desta forma sou abençoada pelos seus raios cálidos já nas minhas primitivas horas. Da mesma forma, a iniciada paisagem em que deito meu olhar é sempre o mar, que toda a manha me distrai na análise compulsiva de suas cores, suas ondas, suas espumas, sua raiva, sua calma, sua sujeira que vem do fundo revoltado ou sua alma transparente, como se neste dia lhe aprouvesse ser superficial, por pura teimosia.

O tempo vai evolando um aroma de mistério na balbúrdia dos pássaros, na corrida da matilha endiabrada, no relincho do cavalo embretado que soa alto na minha passagem. É a primeira vez que fico velha, e, aparentemente, neste alvorecer da marcha que se encurta sem prescrição, ando dando-me conta de tantos e múltiplos detalhes de tudo. 

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...