domingo, 30 de março de 2014

Abraço


Não havia contagem que suportasse a espera do encontro que se repetia, com certa alternância de data, e, por isso mesmo, se tornava tão temerário. E era sempre a mesma coisa, coração pulsando, adrenalina fustigando o corpo e maltratando as veias que quase se arrebentavam de tanto esforço.

Na cabeça, ora, na cabeça, somente bobagens, muito confete e uma fila enganchada de possibilidades que vistas a olho nu mostrava a realidade com aquela cara irreverente e dúbia, mas não nesta feição e nem nesta hora. Esta, não se formava por gosto, mas por ter nascido com aquele formato.  Mas, não tinha jeito, sempre havia aquela mania de pensar o bem, de promover energias boas e ter a confiança de que tudo anda.
As horas não passavam no ritmo delas, mas, sim, em um compasso muito particular, uma contagem acelerada de mil olhadas no relógio, de passadas para lá e cá e outras tantas manias mais de deixar qualquer um a beira de um espasmo. Até aquele momento não foi percebido o perigo, apesar de ele ter dado as caras desde o início e, então, irritada, a vida resolveu intervir e de um soco colocou de maneira bem singular uma lembrança recente e o desconforto gelou seu ânimo, esfriando o galope desordenado da expectativa e assim se instalou, moderadamente uma tranqüilidade.
Como não quer nada, a clareza veio dar o seu pitaco e trouxe à tona aquele abraço não completado, o doce empurrão que farfalharam seus cabelos e, assim, de maneira imperceptível apresentou-se ao momento acentuada falta de conexão. Os braços caíram com tristeza ao longo do corpo e o olhar, abrumado, afastava de vez todas as possibilidades.

sábado, 29 de março de 2014

Tijolos


O projeto, nas entrelinhas, se apresentou de repente, tão de repente que o formato das coisas já assentadas se mostrou em uma desordem incomum para quem já havia percorrido e superado tantos caminhos. Mas parecia, assim, num olhar mais acurado, que talvez pudesse vir a ser uma situação onde vazios seriam preenchidos e lugares compartilhados com possibilidades infinitas de rearranjo e de substituição.
Desta forma a caminhada iniciou-se, um pouco afobada no começo, porque logo surgiu a dificuldade de montar o quebra-cabeça que se compunha de várias circunstâncias, algumas mais pesadas, outras obtusas e muitas delas em situação tão irregular que custava a crer que fosse se encaixar no movimento conjeturado.

A estrutura desmontada e esquecida roubava a cena cada vez que se apresentava, uma vez que a intenção era refazer caminhos perdidos, conectar sentimentos díspares que ressurgiam com voracidade se alinhando com sede de aproximação. Algumas vezes o desencontro traía impiedosamente a intenção, porém, a curiosidade e o sentimento de estar vivo era mais forte e a construção não parava. Apenas dava um tempo para a calma reinar e a respiração abrandar.
E assim foi sendo feita a passagem, com cada peça se encaixando uma na outra, selada pela mistura composta de sensibilidade, de alegria, de riso infantil, de olhar brejeiro com intenções não reveladas. Para fazer a liga, lágrimas de riso da piada repentina. Desenhada a ponte tijolo a tijolo ladrilhada com os entretons da espera e da vontade de acertar.

sábado, 15 de março de 2014

Chance




Sempre que a Chance encosta-se a mim, olho no entorno perturbada, querendo me certificar que é comigo mesma que ela está falando. Mais desconfiada ainda rastreio a vista de cima a baixo, porque, de certa forma ela pode surgir de várias formas e é bom estar preparado, se bem que, nunca se está.
Tem vezes que ela aparece promissora, sorridente, tão cheia de armadilhas secretas, que fica difícil identificar à primeira vista o que vem junto com este pacote ofertado sem se ter pedido. Como as esquisitices nunca estão a olho nu, a trabalheira é dobrada na busca da verdadeira ocasião.

Preste mais atenção se a Chance inicia a conversa com o parágrafo da bajulação em primeiro plano, formando e descrevendo você com conceitos exacerbados e pior ainda, te elevando aos céus como personagem idílica ou caracterizando todas as suas ações como perfeitas. Do encosto se sai leve como uma pluma, cogitando múltiplas oportunidades, andando como cabra cega e não acreditando na boa sorte. Esta abordagem é certeira para carregar você ao inferno e ao paraíso, concomitantemente, uma vez que a intenção é chegar ao seu ponto fraco, aquele, que nem a gente sabe que tem e muito menos qual é.

Muitas vezes ela se aproxima como quem não quer nada, só espiar em você ou soprar alguma oportunidade não aventada, um demônio que ronda nossa vida, se acercando sempre sem se mostrar inteiramente. Esta característica é a mais sutil e mais difícil de domar, e a derrapagem na arapuca vem célere, acolhendo as ofertas sem analisar o que está por trás e, mais ainda, o que pode vir pela frente. Aí, sem chance.

sábado, 8 de março de 2014

Caquinhos



Era um dia lindo, azul perfeito e eu não percebi uma nuvem escura bem a esquerda da minha janela, no horizonte. Que bobagem, quem ligaria para qualquer sinal em céu de brigadeiro, onde se ouve o som da calma em ventos outonais e se respira o perfume das folhas resvalando ao chão, se despedindo languidamente do amor que as manteve nas estações anteriores. A seiva que por ora se esvai com promessa de voltar.
Eu estava confiante e firme, lembro bem, com meu espírito elevado em elucubrações românticas com a feição de quem é amada e o único pensamento que borbulhava nas minhas antenas nesta manhã memorável, era a faceirice. O sorriso tenho certeza, ficou branco como cal de uma hora para outra, se alinhando ao tempo que se esbranquiçava lentamente, mandando para longe o vermelho do sol de verão. Ocorreu-me, naquele momento, certa inquietude, um arrepio e uma quentura fora do normal no corpo todo, mas eu estava afoita e certeira demais para me aguçar em insinuações mal formuladas.

Segui em passo firme com as convicções empoleiradas nos ombros, uma vez que elas não cabiam mais em nenhuma pasta que eu pudesse carregar.  Todas elas vinham com anotações várias, para que eu as mantivesse atualizadas e também de fácil acesso para esclarecer qualquer conversa. Certezas convencem.
De súbito, precisei sacar meu talento para fazer frente ao que se impunha, sacudi os ombros, corri em busca da agenda, escarafunchei minha bolsa e dei tratos à bola. Dei alguns passos e, desconfortável, percebi que tudo o que eu tinha estava no chão, partido em mil caquinhos multifacetados refletindo o mundo. Uma sucata pronta para se transformar.

quarta-feira, 5 de março de 2014

Cantorias no parque – a parábola


O Café do  Parque deitou-se mansamente à beira do lago da Redenção trazendo um charme absoluto para as margens verdejantes do parque mais inusitado de Porto Alegre. Por muitas voltas que se dê em seu entorno, seremos sempre surpreendidos pelo inesperado.

Assim foi com a dupla Claus&Vanessa que, como quem não quer nada, iniciaram as cantorias no Parque, em banquinho e violão, em um tablado ao ar livre, compartilhando com a exuberante natureza todos os seus sonhos. O agrado dos freqüentadores veio como uma das muitas surpresas deste lugar de todas as tribos. Chegou para ficar, todo domingo, conferindo o som.

A cantoria da dupla foi se espalhando pelos gramados e tantas raízes, tomando conta da copa das árvores e calando todos os pássaros. Havia certo alvoroço da bicharada, na chegada do domingo, pois pensavam: lá vem nosso diapasão.

Ao anoitecer, quando todas as gritarias de domingo se esvaíam lentamente do parque, era chegada a hora dos primeiros acordes eletrônicos da dupla que ali estava para cantar e encantar. Os famosos gatos da Redenção aumentavam seu olhar e brilho se enroscando nos arredores sendo imitados pelas carpas que apenas fluíam em seu nado, talvez para poder ouvir plenamente, a dupla cantante.

E era a hora da chegada dos fãs, em fila indiana, na porta do Café, meninas e meninos querendo parecer a dupla, quiçá, o amor dos dois.O som leve, solto e romântico sobrevoa todos os caminhos e recantos da Redenção deixando a natureza surpreendida e calma e agora, mais do que nunca as cantorias do Parque da Redenção fazem parte da natureza.

segunda-feira, 3 de março de 2014

ABISMO


Nunca pensei que haveria de cair no mesmo erro, de falsear o pé e me ver na beira do abismo, com todos os gigantes olhos me olhando de baixo para cima, rindo da minha cara e de dedo em riste parecendo dizer, eu te avisei.
Claro, que se eu tive algum vislumbre de lucidez, ele se fora na instantaneidade que a novidade te dá e a esperança fornece, pois a cada dia em que o sol nasce tudo se transforma e lá vamos nós como guerreiros ensangüentados e maltrapilhos em busca da ilusão, do oásis, que com certeza fica logo ali, pensamos repetidamente. Logo ali.

Mil coisas me passaram na cabeça e a primeira delas é que os tempos de calma haviam chegado e assim cavalgava acelerada na minha maturidade e me orgulhava da minha clareza e todo dia a folha branca que me aparecia era preenchida. Então, estou andando bem a par e passo.
O desaviso me rasgou por inteira, lavrando o que eu tinha de melhor, deitando por terra a confiança que eu acreditava viver e neste momento, tenho as pontas dos pés beirando o vazio do mundo.

Um vazio, infelizmente, preenchido pela prepotência mascarada de elegância onde nas entrelinhas surgem a falsa modéstia, a inveja e o falso poder. Um espaço oco recheado de artimanhas torpes e deboches muito bem articulados.
Meus pés deslizavam com suavidade para baixo e para cima, deitando seixos na fundura do precipício e com meu corpo oscilando ao vento naquela beirada, ouvi alguém me chamar, surpresa, me equilibrando, dei meia volta. Este alguém era eu.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...