sábado, 29 de abril de 2017

Barquinho


O mar não estava para brincadeira nesta manhã com as ondas lambendo, não somente a beira de praia, mas se arvorando de mar revolto, chegando às dunas, afugentando pescadores, homens e mulheres solitários que tem a companhia do oceano todos os dias e mesmo assim rejeitam com sabedoria a alcunha. Mesmo com estas águas que inundam até o pensamento percebi em um córrego que corre para o mar - como se ao encontro de algum amor perdido fosse - um barquinho de papel que navegava sôfrego. Afinei o olhar e dei-me conta que ele foi confeccionado com papel jornal, e todas as letras originais vagavam em pedaços dobrados, dando certo sentimento de confusão ao tentar decifrar quais assuntos foram jogados deste jeito misterioso e também infantil, aos meus olhos.

Primeiro, me deram as caras as manchetes que estavam nas abas mais abertas e talvez por este motivo interessei-me em saber o que o autor do inusitado artefato escolheu para navegar em águas de riacho para depois encontrar-se com o mar, fatalmente. Um mar que hoje não está pra ninguém, nem a peixada se arrisca em suas ondas tal a dança vertiginosa que anda ensaiando com seu parceiro ventania.

Resolvi chegar mais perto para matar a curiosidade e ler quais foram as folhas escolhidas pelo autor da brincadeira e que estava fazendo esta bagunça no meu dia. Para minha surpresa ali não haviam palavras encadeadas, não estava impressa nenhuma noticia, nenhum fato relevante que viesse a fazer parte da história, nenhum alerta da maré, nenhum prognostico para o tempo e muito menos alguém projetando no horóscopo minha sina na terra.

Ao encalhar em alguns galhos, como se ousasse um refresco antes de se tornar apenas papel molhado jogado ao mar, consegui ler alguma coisa de sua feição como: não se amofine, esqueça, lembre, corra, pare, olhe, feche os olhos, fale, cale, ignore, tome conhecimento, ou...seja você.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Sorriso no chão


Assim, de passagem, não me dei o desfrute de reparar naquele sorriso caído no chão, escarlate como sangue querendo dizer não sei o quê. Como não aparece escancarado, pode ter sido jogado ao chão antes que se abrisse e quiçá o dono do mesmo achou por bem tirá-lo da cara por sentir-se afrontado com a alegria rouge que dele emanava, mesmo com certo sentido amoitado.

Mas, voltei no caminho e me deixei levar pelos detalhes da figuração que me espelhou uma coisa sendo outra e, com que facilidade me ocorreu tantas estórias para uma mesma questão. Neste sorriso que prendeu meu olhar, eu vi que de fato era um rosto sem a composição de face completa, pois não tinha olhos, nem nariz, nem sobrancelha e, claro, sem expressão. Mas ao mesmo tempo a figura quase surreal me trouxe tantas suposições que acabei imaginando que o dono desta tristeza pudesse voltar atrás e resgatar os lábios tão negligentemente abandonados na rua.

Ele pode ter ouvido tantas promessas falsas, tantas conversas sem ponderação, tantas noticias sem sentido, tantas piadas de mau gosto que houve por bem desfazer-se de sua boca, assim ela não lhe engana em nenhum momento de desatenção. Agora talvez ele se sinta mais aliviado porque com um semblante que não se atraiçoe fica mais simples enfrentar o dia a dia, mais prático não responder perguntas, mais interessante somente ouvir, mais charmoso sorrir, pedir e conquistar com os olhos. Os diálogos terão que ter mais tempo para serem travados uma vez que a acústica da discussão se evadiu e não irá reverberar respostas prontas, hilárias, aborrecíveis ou malévolas. O silêncio vai enterrar o que não tem proveito.

A brisa soprou com suavidade e fechei os olhos para senti-la. Ao abri-los  procurei o fio da meada da minha estória e me defrontei com uma linda folha da cor do outono em um piso de cimento. Que coisa!

terça-feira, 25 de abril de 2017

Frio


Começa devagarinho, como deve ser, vai gelando os pés e as mãos e depois avança vagarosamente tomando de assalto nosso corpo que andou nos últimos tempos sem nenhuma vergonha na cara, despido, andando por ai como se pouca roupa frente ao olhar do próximo diminuísse a temperatura.

Agora vai se achegando, e, como não quer nada, adentra pela janela semiaberta aquela brisa fria da manhã que atiça os sentidos, arrepia nossas entranhas e faz com que nos abracemos a nós mesmos com delicadeza e depois corramos para lançar mão do agasalho. Este, quanto mais largo e esfarrapado, melhor, porque aquece nosso coração e nossas lembranças. Vai que ele foi tricotado por alguém muito querido que não mais se encontre ao alcance dos olhos ou, talvez, ainda rescenda ao cheiro da pessoa amada que se enlaçou a você quando decidiu dar outro rumo na vida, deixando para trás, nas felpas enroscadas do velho casaco, sua marca e seu cheiro que agora age como se fosse o amaciante daqueles momentos em que se aqueceram juntos.

As mantas são tiradas do armário com presteza porque são elas que vão incorporar o termômetro da friagem, da ventania e da chuva. Vão se enrolando em nós conforme sua textura e cor aquecem e resfriam conforme o sol aparece e some quase sempre do nada. Elas gostam de se diversificar em cores acompanhando o humor dos seus donos que as enlaçam em nós românticos nos pescoços e ombros, aquecendo a fala e o abraço.

As mãos que órfãs estão de carinho, recebem vistosas luvas, talvez para fazer um alarido de socorro demonstrando ao povo que elas estão precisando de calor humano. Os pés enregelados bailam a mesma dança ficando mais difícil toda a manhã abandonar seus companheiros de sono, seu cobertor de pena de ganso, seu lençol térmico, suas meias ou os pés do seu amor que delicadamente, toda a noite, se envolve na quentura que o frio sempre traz.

sábado, 22 de abril de 2017

Caminhada


Dia denso quando o mar reflete o seu cinza outonal por toda a parte e me parece que a natureza responde ao chamado do soberano, mais não seja porque a orla gaúcha se acomete de muitos efeitos enquanto a estação quente não se aproxima, ou, melhor dizendo, quando as estações amenas tem a primazia junto aos seus moradores. A atmosfera e o vento inexistente se dão as mãos e tudo na beira da praia conspira para prover uma caminhada lenta, de pés descalços nas areias frias como se a gente fosse criança ainda. Este é o poder do mar gelado para quem lhe tem como companhia ao alcance dos olhos e dos pés.

O oceano recuou e suas ondas vez ou outra vem brincar bem perto das dunas, fazendo um jogo de corrida em alguns trechos, voltando ao leito dando risada da traquinice e embolando os bichos de praia que não andam com a preocupação de adernar por ora, mas com a invasão aquífera rolaram de volta ao curso.

No percurso que fico seguindo acabo jogando meus pensamentos mais revoltos nas areias da beira mar, talvez com a má intenção de vê-los se perderem por ai, como se fossem despojos de navios, carcaças de peixes, linhas e redes de pesca enroladas em trastes arremessados ao mar, e agora, vagam sem destino.

Vou jogando, de primeira, tudo o que o dia a dia me coloca pela frente, simplesmente por estar distraída, por não ter tido em meus olhos o filtro correto para o que aparece de fato e não o que pretende ser. Na sequencia, vejo afundar como se areia movediça fosse, estes sinais.

Ao levantar os olhos para o horizonte, lá estão os dois – nuvens e oceano – partilhando da mesma cor e calma, em comum acordo, sem nenhum dos dois disputar a melhor beleza evidenciando que esvaziar a mente significa que se pode, por um período, deixar a existência monocromática.

quinta-feira, 20 de abril de 2017

Mentira


Palavra sonora que tem uma aura maquiavélica e talvez por parecer tão agressiva se dita em alta voz, não é gritada aos berros nos quatro cantos do mundo, quando por qualquer motivo alguém se vê alvo da mesma. Tem alma subversiva e por se tratar de uma atitude antiética adora navegar em mares escuros tendo em sua mira aqueles que andam por perto, que talvez, de jeito ingênuo confiem na humanidade ou dão a corda até que a criatura se traia na abordagem ou na contação dos fatos que, para uns terão uma versão e para outros, outra. Assim é o mentiroso.

A mentira é praticada com muita habituidade no dia a dia. Ela se acomoda em todo lugar com muito ou pouca gente, com audiência ou nenhuma e sua sobrevivência depende da hipocrisia de muitos que acham, por bem, enganar pela palavra, talvez na tentativa de conquistar o outro propondo deste jeito uma invenção, um modo atravessado na análise dos fatos.

Talvez exista uma teoria da mentira que tenha o propósito de acomodar muitos assuntos que geram polêmica e assim desviar o foco para outro lado, para fatos distorcidos ou para o embuste deslavado.  É preciso ser convincente no engano e para que o dito cujo obtenha sucesso, o gestual faz a diferença, como um olhar abismado frente à indagação, e mais mil detalhes corporais que irão denunciar o  golpe.

Ser alvo de um mentiroso não é ruim não, porque a mentira tem esta vantagem: perna curta, como diz o dito popular, mas eu já acho que a metáfora não procede. Penso que o incauto enganador acaba se atrapalhando com sua versão do tema e ao proliferar no seu entorno suas ilações vai esquecendo-se de como pontuou a sua hipócrita investida inicial.

quarta-feira, 19 de abril de 2017

O apartamento


Fazia bem um tempinho que eu havia, de certa forma, abandonado àquele local para poder renovar meus votos de vida boa em outro lugar, quando por força da roda da existência, que insiste em trazer de volta certas coisas, como uma maré revolta, voltei ao espaço. Desde o momento em que se aprontou a necessidade de voltar, meus sentidos e principalmente meu espirito, se agitou, meu coração bateu descompassado e as lembranças se acotovelaram na minha cabeça, cada uma querendo ter prioridade na minha escolha para parar um pouco o mundo e deixar-me levar.

Tudo estava igual tal qual deixei, e vê-lo novamente vazio deu-me uma oportunidade de poder escutar quase tudo o que houve durante tantos anos entre aquelas paredes. A saída havia sido com tal cara de libertação para o novo que não deitei a visão para guardar nada, fechei a porta rapidamente e lá me fui com meus trastes sem olhar para trás, sem fazer nenhuma prece e principalmente sem pieguices. Fui e pronto. Está virada a chave. Com duas voltas. Confirmei então que não havia mesmo precisão de fazer odes ao abandono porque ao reentrar ali percebi que a alvenaria havia guardado com delicadeza os traços da estória de anos e assim, ecoaram as conversas, os risos, o choro, as expectativas, o ir e vir, os abraços, os carinhos e todos os sons de época nos acantonados vãos do lugar. Meus olhos dançaram uma valsa linda, acompanhada por um sorriso meu, de orelha a orelha.

Como um filme retro, assisti nitidamente a jovem que eu era que galgava aqueles lances de escada como se voasse, que não vivia olhando para frente nem para trás, mas sim para o dia, para saber se haveria sol para me bronzear, para fazer o roteiro de quantas voltas teria que dar no meu no dia para cumprir com o leva e traz maravilhoso de filho pequeno e mais cem mil outras coisas que se tem que fazer quando se é jovem, porque o amanhã está muito longe.

Percebi que nunca em tempo algum as paredes se despojarão de todos os acontecimentos que aquela casa acolheu nesta linha do tempo, muito pelo contrário, serão elas que sempre irão emanar as energias positivas que nunca se deixaram esburacar por ocasiões mais obscuras. Não importa com quais cores serão demarcados os pilares, como os móveis serão distribuídos. O novo habitante se proverá do alto astral que o apartamento reflete a partir da luz do sol e das historias incríveis que se sobrepõem e se acomodam entre quatro paredes.

sábado, 15 de abril de 2017

Riponga


Ao levantar-me pela manhã olhei-me no espelho, coisa que nunca faço, para não precisar confirmar o que a noite de anos para frente me trouxe, mas algo me chamou a atenção ao passar pelo maldito. Tinha um reflexo de muitas cores, luzes em vários ângulos e uma caricatura enfeitada com diversos acessórios que meus olhos demoraram um pouco a perceber do que se tratava. Olhei com mais vagar e dei-me conta que minha estampa denunciava sentimentos que me abordaram neste nascer do sol. Todos controversos, todos querendo gritar e dizer a que vieram todos me alertando, todos exagerados e no fim, todos se engajando.

Encarando-me de frente vi refletida com surpresa um tipo popular de anos de minha juventude, mas percebi que naqueles tempos eu não tinha este perfil completo, apenas toques, um quê mais colorido, um deslize ou outro na linguagem, um ou outro acessório que me denunciasse. No geral eu me dava uma pinta de riponga, mas não no todo.

Esta denúncia do espelho levou-me a encarar que um personagem completo acabara de nascer advindo de alguma memória fragmentada de que os acontecimentos aqui no meu entorno nasceram na escuridão da noite, resolveram me assombrar no alumbrar do dia e para me proteger resultei nesta figura mítica, talvez para me fazer encarar o que anda por outros caminhos ao meu lado sem que eu perceba.

Vai dai que achei por bem analisar o que a figura que detém tantos acessórios em um rosto só pode configurar-se, alguns deles, em denúncia, como de fato a historia o comprova. Senão vejamos. O olhar se mostra anuviado por um matiz que não consegue mostrar ao mundo sua verdadeira face parecendo que o propósito é enxergar o que lhe vem pela frente em cores róseas e mais tranquilo para aceitar o que de escuro viceja por aí.

Nas orelhas outro desaviso, porque pesadas se encontram de tantos badulaques, acho que por conta de deixar o fundo do ouvido mouco para que não se ouça o alarido desta vivenda que reúne tantos em comum. Comuns do espaço físico, mas jamais no modo de se comportar, diga-se de passagem.

Concentro-me agora na faixa que cinge a fronte e me dá a impressão que ela ali se instalou como se fosse para segurar todos os pensamentos fortuitos de reclamação, de abrir a boca para denunciar que um canteiro de flores e temperos é sagrado, que o descanso à noite pede silêncio e que, ao fim e ao cabo, apenas o bom senso pode se arvorar de razão. A fumaça expelida da boca da riponga me pareceu ser apenas um desabafo em tristeza profunda.

sexta-feira, 14 de abril de 2017

A Paixão de Cristo


E assim ele ressurgiu com pompa e circunstância após tantos desprazeres, tanta vista do mal feito, tantos ataques a sua própria carne e, de quebra, a traição rodando as beiradas de sua vida peregrina. Se difícil foi a caminhada, imagina em que proporção se demonstra sua trilha final, eivada de desconversas, de amores e ódios se digladiando por todos os muros que na ocasião separavam o tudo e o todo.

Eis diante de Deus Pai um corpo com a carne dilacerada, com veios de sangue que lhe cegam o olhar, com uma magreza de causar dó e assim também os filamentos de tortura que não estancam enquanto vivo ele é. A fronte, que deveria simbolizar a ternura infinita pelos seres humanos se dilacera em mil veios rubros de tristeza, outros tantos canais de tortura que um tanto sem jeito vão se acomodando pelo rosto todo, só para lhe dar a feição correta do sofrimento, mas em nenhum momento se apartando dela. Por entre todas as feridas ele podia ver que sua missão estava cumprida e seu corpo oferecido em sacrifício é a paga pelos pecados da humanidade.

E como se assim não bastasse, o corpo que se esvaía da vida estava ladeado por dois seres que de algum modo não seguiram a cartilha que lhes foi oferecida, enquanto ainda havia salvação da alma. No entorno ecoava blasfêmias de todo o tipo, mas apenas um dos transgressores pendurados aproveitou a última oportunidade para a redenção, neste momento de partida.

Talvez houvesse nesta alma desviada algum conhecimento de quem era o pregador que instava à sua frente, concedendo-lhe a absolvição para poder então viver uma vida eterna, apesar de que o seu caminho para chegar até aqui, na cruz,  foi feito através de sofrimentos e enganos causados ao próximo.  Quem sabe este súbito arrependimento se esconde no mais recôndito espaço de sua mente, quando, ao invés de correr para ladroagem resolveu estancar o passo ao pé da montanha e ouvir as palavras do Peregrino que era seguido por milhares de fiéis. A semente foi plantada na alma do pecador, brotando no último instante para que o Filho de Deus fosse reconhecido e mais uma vez, em um último suspiro, buscasse a absolvição.

Este fim de caminho foi costurado com fios resistentes como a personalidade de Cristo que em sua passagem predestinada a salvar  a humanidade, ora permite que sua vida seja ceifada, embora prometendo que voltaria. E então, no terceiro dia após sua morte, vestido com brancas vestes e com todas as suas feridas cicatrizadas, ele rasga a atmosfera e sobe para se sentar a direita de Deus Pai. Aleluia.

quinta-feira, 13 de abril de 2017

A pimenta


Picou-me a língua e em seguida seguiu seu rumo, universo digestivo adentro, afoita, parecendo que veio a estar ali em completo acaso, não parando sequer para perguntar se era bem vinda, se foi mordida, se foi espetada, se foi fatiada, se foi engolida inteira. Assim se transforma um tempero que parece ter vida própria tal a sua galhardia e petulância. Este condimento com múltiplas metamorfoses - da panela e da semântica – se remete a ser muitas coisas, além de salpicar a saliva de muitos, além de ter uma cor berrante e um formato célebre que vilipendia e debocha da metáfora.

Linda, vibrante e atrevida, vem sempre fantasiada de pote de mágoa maldoso para temperar uma comida, e, quem não souber o que aquela peça especifica tem de ardor, pode errar a dose e deste jeito bem singular arruinar os segredos da mesa farta, colocar em fogo a boca de muitos ou fazer regurgitar quem com ela não tem intimidade. Ela é assim, intempestiva ao chegar, alarmante ao se mostrar e fatal ao paladar de quem não lhe teme, melhor dizendo, quem não lhe conhece a fundo.

Ela fica bem em qualquer circunstância, espetada em um garfo pronta para o abate, largadas languidamente em uma tábua se oferecendo com paixão aos seus consumidores, se jogando junto a outros ingredientes, mas sempre querendo liderar a disputa do paladar, ser a estrela dos comes e bebes, ser a lembrança – com certeza! – em todas as línguas e ser motivo de lágrimas vertidas por sua conta e risco, além - é claro – da sede que acomete seu admirador.

Mas, quem não lhe conhece direito, não adere aos seus ardis apimentados, não suporta seu cheiro na comida, não aguenta sua interferência entre outras especiarias, saca seu desempenho com outra serventia. Talvez a cor vermelha ative o cérebro para instâncias mais quentes fora da mesa de jantar, o ardor que transita em sua textura sugere alguma mudança, e por fim, a sua fama em apimentar sentimentos, sensações, comportamentos e o que mais de infernal houver, ali está ela com uma personalidade dupla, pronta para ser.

terça-feira, 11 de abril de 2017

A dança


A saia rodada inspirava uma dança qualquer, um rodopiar desconexo, sem música, um vai e vem de passadas que, por demais gastas de arrastar chinelas, se descalçaram e agora viraram apenas pés nus, aproveitando qualquer chão, deixando entrever muito pouco do movimento que ajeita os pensamentos de liberdade, de colocar em polvorosa o corpo e tudo o mais que lhe habita.

No compasso, um ritmo silencioso e transparente que se entrega à natureza clamando para que venha fazer parte desta cena fortuita e cheia de mistérios, de enlaces bem costurados, de olhares fechados, de vestes roçagantes e peito aberto. No descampado, se realizam todas as cadências de uma terra solitária, sem o arroubo de carmines, com um céu em conluio com o alvoroço dos ventos e cores lúgubres que acolhem a dançarina que se arremete e chama para si a maestria da natureza a lhe fazer companhia.

A fronte se esconde desatenta do entorno e apenas a lógica do movimento acelera o tempo que se prevê casual na transparência da roda da saia de múltiplas camadas, antecedendo um levíssimo modo de baile.

A natureza, cheia de personalidade agreste, emoldura a cena, meneando com finura os tules, os brocados, os laços de fita agitando demais o figurino, que sutil conspira para jazer em roda velada a cabeleira, que encobre o rosto silente que ali se encontra apenas para se transformar em acompanhante do modelito franjado que lhe espreme a cintura.

É nesta hora que a dança interna acontece. As ideias rodopiam e se acumulam uma sobre a outra em delicadas camadas de assunto, tendo como moldura o cenário que exibe uma palheta de cores criada para não distrair.

segunda-feira, 10 de abril de 2017




Seria bom pensar que este tempo que anda mais organizado e para muitos, silencioso, que o corpo se voltasse a práticas menos densas, com uma ginga suave que balance os minutos sem sofreguidão, que pareça que as horas sagradas do dia se estabeleçam com perfeição engatilhando os segundos que passam com as tarefas que se tem pela frente. Tudo em um ritmo abençoado de recolhimento, como manda a cartilha divina.

No entrevero do dia, um olhar para dentro de si, buscando enxergar o que ninguém vê e, talvez, nem o próprio dono da alma que após a virada de chave na vida, anda molenga, um pouco sem serventia aparente, curtindo o estágio de ensimesmar-se para depois da experiência projetar ao mundo estórias pouco contadas, frases sem efeito e com resultado difícil desalentando quem busca o entendimento por si só.

Aquietar o pensamento se torna tarefa hercúlea porque, aparentemente, ele se encontra com a mudez do tempo presente e, mancomunados se enlaçam e se calam. Ninguém pode ouvir o que não está sendo dito, e assim a função de elevar apenas o pensamento ao infinito acontece de maneira lúdica trazendo para o ambiente apenas a oração, que se desprende do íntimo, tornando-se uma substância em si.

Entende-se este tempo, que termina logo ali, como um período de natureza purificadora onde o simbolismo se movimenta através da reza, do fechar de olhos, da percepção da magia, da fumaça etérea, do significado de recolher-se em contemplação aspirando essências milagrosas. Um gesto simplório de apequenar-se frente ao tamanho da história dos mundos e da fé.

segunda-feira, 3 de abril de 2017

Prisão


Os grilhões são imperceptíveis a olho nu e quiçá se lhe fincar uma visão mais inquisidora, uma busca com mais detalhe desta que pode ser apenas uma sensação e que, independente do olhar que se faz refém de si mesmo, ou das circunstâncias, sente na pele o furor dos grilhões, das algemas, aldravas, pregos e parafusos que parecem reais, mas na verdade simulam com maestria os sentimentos. Os aprisionados nas masmorras da vida sangram em seus cárceres privados mesmo que em desaviso, mesmo que não possuam a percepção de haver sucumbido ao chamado de tantos, e muitos, neste mundo de população com perfil de algoz.

Os calabouços de uma existência estão todas por ai, soltas e com certo chamariz para quem se aprouver de instar em tantas esferas que não lhe apetecem de fato, mas que, por tantos motivos, lhe sugerem que este é o melhor caminho. Cegamente se trilha então, os modos de vida aparentes que são tão ordinários a todos que fica difícil mesmo não acreditar que existem outros modos perfeitos de se levar a vida.

Não brota em nenhum momento à cachola entreverada de assuntos, seja qual for que existe, sim, uma aldrava que tem em si o desempenho de ser alvissareira, de ter em sua montagem um segredo de liberdade, uma maneira sutil de permitir que assim que aprouver ao prisioneiro, conquistará sua liberdade.

E então quem sabe voltar um pouco àquelas ideias de ter um arbítrio para os próximos passos, uma atitude que se confunda com certa essência de ser em si, um desejo de se tornar alguém que de fato exista para os outros e não este fantasma que paira solitário na vida, refém de um passado e que de certa forma se conceba no limbo da duvida.

E se desse para compreender que seria possível tornar-se um motivo ao invés de ser apenas um pulo, uma ponte, um qualquer, que sirva de investida para que tantos outros se instalem em algum espaço, ou em outro lado, ou outro viés. Murmúrios de um xilindró que não possui de enlaça, muro, cerca ou qualquer tipo de impedimento para andar na vida em frente.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...