quinta-feira, 26 de junho de 2014

Os dois


Eles vieram a mim bem juntinhos, como eu queria, se parecendo muito fisicamente e desde sempre um completava o outro. O mais velho já parecia intuir a fragilidade da vida, dos caminhos já prescritos e por esse motivo se adiantou muito ao caminhar, ao falar corretamente e eu agora tenho certeza que ele já sabia que não podia perder tempo em tropeçar nas letras e saiu articulando suas histórias ainda bem pequeno.  

O olhar era surpreendente com uma cor azul tão intensa e profunda que me deixava inquieta me fazendo tomar uma distância daquele olhar que – hoje eu sei – parecia estar sempre se despedindo ou talvez pedindo perdão pelo que seria nosso futuro tão curto juntos.

Era criança apressada, tinha insônia, vagava pela casa a noite, via televisão que naquela época era preto e branco, via novelas e as entendia se apaixonava na pré-escola como se adulto fosse fazendo a corte como antigamente, ofertando uma rosa, fazendo uma declaração e querendo sempre ter a companhia da menina objeto de sua paixão. Ninguém entendia, mas ele sim. 

Entrava sempre na casa dos avós com sorriso e um “Oi Vó” e bem resoluto já ia se chegando aos brinquedos, sempre com o irmão a tiracolo. Hora montando lego, fazendo cidades com os “toquinhos” que eram de minha infância, rolando no chão com o meu pai que virava um cavalinho, um gato ou um cachorro, o que fosse que aqueles dois meninos inventassem. 

Com o irmão menor se colocou como intérprete e traduzia todas as suas palavras, interpretava o muxoxo de desagrado assim como suas lágrimas, me alertando o que se passava na alma do irmão. Até o olhar do pequeno era revelado em palavras me fazendo correr para consertar meu desaviso ou acudir na sua mágoa ou necessidade. Tantas e tantas vezes me voltei ao pequeno para perguntar algo mas a resposta veio do irmão mais velho com o olhar complacente e  sorriso cúmplice do menor. 

E chegou o dia em que ele partiu afoito e sem aviso, deixando um vácuo em nossas almas que até hoje persiste apesar do empenho em celebrar a convivência de um anjo em nossas vidas, mesmo que por tão pouco tempo. Daniel era o nome dele.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Nivelando


Ao invés de eu me deparar em uma encruzilhada, ela é quem veio ao meu encontro, bem desaforada e pedante me cobrando a decisão tardia que eu sabia que me rondava, porém eu a ignorava e fazia de conta que não tinha medo e, orgulhosa, fazia questão de não enxergar a exigência, me transmutando de louca ao perceber a força do empuxo.  

Às vezes eu não tenho nenhum lugar em vista para ir, parecendo que o meu gosto por qualquer coisa se foi junto com o verão e agora, o inverno chega e congela-me no tempo com crueldade, assim como todos os meus desejos, minhas obrigações, meu afetos, meus inimigos e meus interesses. Todos na prateleira.  

Então, lembro vagamente que sou organizada e decido encarar todas estas situações que se enfileiraram na estante, de certa forma rindo de mim, e com galhardia vou dando a cara a tapa, mesmo que tudo já tenha acontecido.  

Reviver o tabefe é imprescindível porque ele me acorda e distancia o pensamento em relação aquela mentira que me foi jogada sem a menor cerimônia e que eu, boba, acreditei. Resolvo me olhar no espelho e a vermelhidão na face acusa o comentário do teu próprio lado e a confusão se estabelece uma vez que a confiança se abala. Consigo agora enxergar todas as armadilhas que me travaram o passo e que neste momento se enfrentam comigo porque, hoje, percebi que paralisada estava. 

Algumas marcas ficam para sempre, o que de certa forma é bom, pois se assemelham a pedrinhas soltas no caminho andado e assim podemos olhar para trás e ver nossa trajetória, misturando os lances heróicos e os de covardia formando uma passagem ladrilhada de alegria e tristeza, de amor e traição, de sucessos e fracassos, todos eles sempre se alternando numa trilha sem fim.

terça-feira, 17 de junho de 2014

Trama


 
Ando pensando em que fiação me embrulhei uma vez que nos últimos tempos somente aquelas tecidas para entrar no mar estão no meu foco, pois são elas que se jogam com coragem mar adentro, buscando o alimento da galera que vive com os pés na areia e olho no horizonte, perscrutando as ondas do oceano na expectativa que aquele dia será o melhor e que com esta lua e neste horário de sol a arrecadação da natureza lhe trará as melhores noticias, e assim, no final do dia, todos comentarão como o trabalho deu certo, como a vida foi generosa. De barriga cheia fica tudo mais fácil de aceitar e também de imaginar.

Gosto de pensar que de propósito esquecem que as redes trazem segredos à beira mar, uma vez que tudo vem por ali, chacoalhando suas águas de costa a costa misturando-se em areias e bichos, reluzindo o galope de cavalos marinhos enlevados na paixão com as sereias que não calam sua voz de intencional conquista.  

Mas é do gosto também verificar que as postagens nas águas podem ser físicas, representando tantos dramas nas areias silenciosas e circunspectas, como aquele brinco solitário que pousou fundo no mar gelado de inverno, depois do incontido amor no areal, do chinelo aventureiro customizado de corações que perdeu a corrida na manhã luminosa e se foi para o fundão do oceano, deixando em um pé só quem lhe perseguia. Um pouco de horror faz parte, quando se tira da rede a cabeça do peixe que anuncia com olhos esbugalhados o relacionamento degolado e junto a ele, encostada, a barbatana pontuda avisando que a desfeita dói. 

É dali que felizmente podem surgir mensagens carinhosas fechadas em vidros antigos, podendo ser uma declaração de amor de um tímido, ou a busca do amor inconfesso de alhures que de repente se encorajou e tomou as ondas do mar como seu correio. Para se certificar, somente quebrando quem o aprisionou e jogou longe, parecendo-me que se aberta a missiva, se invalida a magia se não for a pessoa certa.

domingo, 15 de junho de 2014

Desfeita


 
Sou toda feita, e ando sempre na mão para que tudo ande certinho e acredito que, por isso mesmo, às vezes, tudo anda errado parecendo que alguém levanta as orelhas e me faz um gesto de deboche, como se eu fosse uma loquaz solitária que apenas reverbera o que vem de dentro como lava de vulcão que, imponderável, garganteia para fora sua indignação. 

É verdade, de fato ando em linhas volteadas buscando um ponto ali e outro acolá para poder dar sentido ao não entendido, e muito pior, apreender o esquisito sem se deixar contaminar. Talvez seja necessário dar vida a loucura do outro que se agiganta buscando o seqüestro de pessoas como eu, desavisadas para sempre, e totalmente perdidas quando se amontoam tantas condições.  

No baralho das opções, aparentemente, dou a volta na contramão parecendo querer enxergar melhor o que passou e com certa lascívia revolvo o acontecido e busco sistematicamente a razão. Teimosa, decido que preciso abrir espaço e acabo me rompendo a alma por tanto relevar, por tanto querer pensar que a loucura é sadia e que eu apenas estou passando uma fase. 

Entristeço demais ao perceber que esta fase está longe de acabar e que talvez ela vá evoluir e me arrastar até o fim dos meus dias, me deixando em retalhos de preto e branco, o que não é uma coisa totalmente ruim, pois assim eu gostaria de ser. 

A onda avassaladora não tem precedente e então me rendo, uma vez que as epístolas desatadas, as expressões sem sentido ou lógica e as palavras de efeito não mais conseguem domar a força do desfazer.

quinta-feira, 12 de junho de 2014

Dia dos namorados



Sou namoradeira e estou sempre enganchada no amor pendendo muito a humores do dia uma vez que são muitas as nuances do meu afeto que perpassam rapidamente do claro para o escuro, do riso ao choro sempre muito bem acompanhado pela inconstância da vida. Esta, que todo dia vem contaminar a mistura que não pedi e às vezes nem desejei.  Sentimentos são implacáveis e certeiros para derrubar o combinado, enganar a esperança e derreter a boa vontade. Nesta barafunda, tenho alguns pretendentes. 
 
O Céu com seu azul gritante eleva o espírito e sempre me faz pensar que é com ele que eu quero ficar, uma vez que me abraça com uma amplitude universal, abriga todas as minhas ansiedades sobre si e me possibilita exercitar um olhar perspicaz aos acontecimentos e nas feituras do destino o que torna o meu envolvimento com ele e a vida muito intenso. 
 
O Sol é outro pretendente e devo confessar: com muitas chances de me conquistar uma vez que adoro deitar-me ao seu calor, aprecio demais que alumie meus passeios, que deite sua luz dentro de minha casa criando desenhos de sombra luz e calor que além de esquentar meu corpo deixa minha alma ardente. É com ele que lanço um olhar abusado ao abrir um livro, é ele que me incita a escrever no Diário os meus desejos inconfessáveis e, no final, sempre me atende quando lhe peço que enfraqueça sua intensidade luminosa para me acobertar na escrita que pede meia luz para que minha mente se engrandeça. 
 
Mas O Vento vem com tudo, como lhe é peculiar, e balança meu coração por ele ser o meu contrário, por gostar de bagunçar o que já está proposto fazendo barulho infernal para quem aprecia o silêncio como eu. Talvez por isso ele me atraia muito e me leva a ouvir as grandes tempestades, as ondas da maré rugindo no fundo do meu coração sempre apertado e fustiga a natureza com intenção de me chamar a atenção e, deste modo, desarruma tudo o que está organizado e com destino certo. Voluntarioso, me deixa sempre na incerta. 
 
Mas de todos quem ganhou meu coração foi O Amor, porque ele reúne e compartilha todas as sensações de tumulto e de calmaria, é ele que me faz abrir os olhos toda manhã e mesmo que eu esteja cega durante o dia ele vai me ajudando a enxergar o que não está à minha frente. Sem nenhum pudor ou culpa é com ele que me deito e levanto todo dia tendo sempre o cuidado de não o ferir, não o relevar, não o tratar mal e muito menos o ignorar.

sábado, 7 de junho de 2014

Inspirar


Deve ser efeito de alguma coisa que colocaram no ar de inverno que me levou a inspirar os frios matinais e devolver à atmosfera um longo suspiro carregado de fantasias que não tem lugar neste momento. Então, ficam planando com meiguice, se colocando muito precisamente na minha quimera, assaltando-me de surpresa com sua lembrança em pleno dia e nos lugares mais inusitados. 

E vai longe o tempo que agora se apresenta revestido de novo em folha como se não houvesse passado minuto a minuto contado desde então, e no dia que segue lento e preguiçoso só enxergo todas as cores me desafiando a compor o retrato que busco em meu interior em vã intenção. 

Por ora é o que se apresenta e resolvo aproveitar a loucura e vagar sem destino na imaginação percebendo que se não o fizer deste modo outros o farão e deste jeito dificilmente serei protagonista de mim. Melhor então me posicionar bem e observar os motivos que me levam a perceber que em dado momento tudo se parece de um jeito e no outro tudo se transforma do avesso, como se fosse uma roupa que possui melhor textura se for usada em seu adverso. Os personagens da vida real se manifestam da mesma forma, confundindo-me em cega credulidade para então me abater no desengano. 

Na continuidade da observação acurada vou tentando emparelhar o agüentado e o recente, diminuindo suas diferenças na pretensão que caminhem juntos tal qual a mão habilidosa que trança um bordado com diversas linhas e texturas na intenção de que se combinem ao perpassar por sobre o tecido o desenho de pontos e nós que tem a missão de aclarar a face do momento.  

Sem surpresa me defronto com um quadro vigoroso que retrata alguns pedaços de mim espalhados e  suturados com pressa  entre o que foi e o que está por vir e então, declino das minhas intenções.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...