domingo, 31 de julho de 2016

Desapego


Pensei que seria fácil me desapegar, afinal, ninguém nasce com um bate papo diário e o leva vida afora. Nascemos sem nem saber falar então fico sempre pensando que o que não se trouxe de berço, podemos descartar, ou esquecer, ou dizer que é irrelevante. E assim segui meu rumo tentando apagar todas aquelas letras que em todo momento me chegavam, me mostrando algo alegre e triste, íntimo demais para ser verdade, engraçado e ridículo e ao mesmo tempo voraz, invadindo a minha rotina.  Aliás, uma associação que não faz parte de mim. Pensei melhor e acho que foi por força do hábito responder, ser curiosa e não saber dizer não. Devia ter dito que iria consultar o oráculo ou qualquer outra coisa bem estapafúrdia. Mas não.

Voltei a chave e fui escarafunchar as gavetas dos últimos dias e lá encontrei novidades, assuntos novos, desafio literário e critica interessantes, relatos do dia a dia, mas também uma pergunta que para mim não fazia o menor sentido. Olhei mais fundo e enxerguei que meus olhos se avivaram, ficaram mais abertos para o dia, fiquei mais sagaz, mais ágil e esperta na interpretação de quase tudo. Quase.

Também olhei para os lados com mais paciência observando os caminhos que todo dia variavam, respirei profundamente porque é urgente levar apenas vento ao cérebro para que ele possa devolver ideias geniais, curas milagrosas, resoluções para a vida que se reinicia ou que inicia a terminar.

Tentei entender do que eu sentia falta, o que havia se perdido neste espaço de tempo, este momento que criei para não me alarmar, este ambiente que eu montei para relembrar e então celebrar todas as minhas passadas até aqui e planejar as próximas.  

Em que lugar ou circunstância surgiu todo este assunto, em que momento brotou esta interferência ousada e em que hora do dia me atinei de tudo. Devo ter ficado surda ao me transferir e assim não escutei o alarme de perigo, me amofinei, fiquei apreensiva, perdi a cautela. Então acabei chegando à conclusão de que o meu mal foi a ilusão. 

segunda-feira, 25 de julho de 2016

A parada


Quando vi a neblina pensei no meu coração que de vez em quando perde a cor, pulsa bem devagar, quase para. Não dou muita confiança para ele porque se ele está cansado eu compreendo. Então achei por bem deixa-lo quieto, não o envolver na coisarada da vida de todo dia e resolvi andar sozinha sem ele.

Devo dizer que foi interessante a proposta porque acabei ficando meio boba, passando por cima dos desaforos, me fazendo de desentendida no escárnio, trocando de lugar quando a companhia não me favorecia, calando ao invés de retrucar, deixando desarrumado o que urgia organizar, sorrindo ao invés de chorar, desviando os olhos para não ver, olhando com apuro para não esquecer, decidindo então não me importar.

Dar-se por vencido pode ser a chance de se renovar, de resistir ao óbvio e não buscar mais respostas, explicações, considerações infinitas sobre o mesmo tema. É enveredar por outra picada, revolver outras mudas, admirar-se com outros fatos, sujar os pés com outras terras, ser mordido por outros bichos, descansar em outros pomares.

Derrotada na intenção e com o coração na marcha lenta posso reescrever minhas metas, chafurdar em outras letras, fazer novos relatórios, inventar outros problemas, posso até deixar de resolver o que me tira a força, me ater ao improvável, me concentrar na surpresa, me colocar de frente ao desconhecido, falar bobagens.

Vou misturar tudo, os pensamentos que não vão combinar com as ações, a mesa do café com utensílios dispostos que nada tem a ver um com o outro, criar um clima novo, embaralhar o que está predestinado, bagunçar as regras, movimentar a rotina, escolher o diferente para poder esquecer o que se arrasta.


Dei uma espiada no meu coração para ver se ele estava aquecido e retinto de sangue, se pulsava afinal. Nada. Parece que aprovou minhas medidas.

sábado, 16 de julho de 2016

Páginas do tempo


Ele disse que me conhecia. Olhei para trás e não o vi. O passado não faz parte do meu dia a dia, apesar de ser com as pedrinhas colocadas por mim neste caminho que cheguei até aqui. Mas, é só isso. O passado me faz, ou me fez quem sou sem drama. Gosto de estar presente e de olhar para frente.

A declaração me deixou com os pensamentos presos por lá, e de lá não consigo mais sair. Ando escarafunchando a época para ver se o reencontro e consigo vislumbrar a conversa e nada. Não sei se ele era alto, se era bonito, se era conversador ou se era sério, se trabalhava ou era vagabundo, se me fazia rir ou chorar, se me fez bem ou me fez sofrer. A cor dos seus olhos também não lembro, nem do timbre da sua voz, nem seu cheiro e assim como eu, neste momento, ele está preso na masmorra que ele próprio abriu ao lembrar-se de mim.

Continuando no passeio mal parado e colocando em foco o caleidoscópio de uma vida, que não foi pouca até agora, posso lembrar-me de como era meu cabelo, no que eu trabalhava, se eu estava feliz ou infeliz ou se atravessava os dias de qualquer jeito. A idade do meu filho, meus amigos, meu dia a dia. Eu fazia natação e era craque. Eu tinha muitos amigos e realizava convescotes na minha casa bem seguidamente. Tudo eu lembro. Ele não estava lá porque se estivesse, eu recordaria.

E assim estou indo ano após ano para trás. Percebi alguns caminhos fechados na minha memória que se nega a trazer à tona acontecimentos, até posso adivinhar por que. Lembrar dói, abre ferida, sangra. Será que ele está lá em uma destas trilhas enfunadas e obscuras que se negam a se abrir para mim? Porque seria então... Talvez ele tenha sido apenas um sopro ameno em um dia, e assim, fugaz se esvaiu porque não era a melhor ocasião de ficar. Ou porque não era para ser. Ou se desviou do momento para atender outra demanda e se esqueceu de mim e desta maneira o portal se fechou e agora não tenho mais acesso.

Ávida, virei a página do tempo e encontrei muitas folhas em branco.... 

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...