quinta-feira, 31 de março de 2022

Nutrição, uma fábula

Andei aqui e ali procurando nada, buscando a incógnita, o difícil e talvez impossível modo de agilizar as faltas que me rondavam e que chegaram sem avisar, mansamente, sem pressa como quem sabe roubar, como quem tem dentro de si a eficácia de escamotear as coisas importantes, tanto assim que o desfalque não foi percebido, de pronto. 

De surpresa foram chegando os convidados com codinome de fraude, não desejados e muito menos apontados em lista nenhuma que se pudesse conferir tornando o acontecimento apenas um circulo de desconhecidos começando pela modorra que se instalou calando a voz de todos que andavam por ali livremente, com sua cantoria, palavra e sorriso sendo distribuída generosamente, afinal, a energia não havia sido atacada cruelmente por atores invisíveis a olho nu. 

Deste modo a vista escureceu, o coração bateu devagar, os cabelos rarearam, a pele murchou, os ossos afinaram e a voz sumiu. Não havia mais o raiar do sol fumegante que adentrava a janela todo dia uma vez que as cortinas estavam cerradas por absoluta falta de alento para erguê-las e assim foram se passando os dias deste cerco desprezível de atores que se arrastam pelos cantos não dando a cara a ver causando danos como se fosse apenas um subterfúgio assustador para deitar ao chão a vida ali instalada. 

Finalmente ficou a descoberto o par e passo do mal feito e assim que foi identificado iniciou-se a batalha com os melhores soldados da natureza arregimentados com o poder da estratégia, conhecimento e eficiência, acomodados no lastro do amor e dedicação, e deste modo airoso entraram em campo os atores com toda a chance de vencer a batalha do inimigo oculto.

quinta-feira, 24 de março de 2022

Coração sem luz

 

Revolvendo papéis, alguns inutilmente guardados, amarelado pelo tempo, amarfanhado, alguns solenemente manchados de lágrima e na sequencia alisado com pudor sendo dobrado com cuidado por aparente arrependimento, quiçá de um tempo que não volta mais ou de alguém que se foi para sempre ou se distraiu e errou a trilha, deixando um rastro de tristeza e secura na alma. 

O certo é que estavam ali, na minha frente, neste cofre antigo de madeira e com uma chave inútil que mais parecia um enfeite medieval do que propriamente uma tranca. Foi com esta surpresa encaixotada há algum tempo que me deparei com aparente segredo guardado que, de tanto tempo empilhado demonstrava claramente que a obscuridade do tempo o contaminou deixando a pilha misteriosa inerte e sem vida. 

Fui fazendo com cuidado uma seleção do que aparecia ali tentando descobrir qual o sentido de terem sido abandonados à própria sorte e ficado sem uma réstia de luz que mantivesse um mínimo de energia para armazenar com dignidade lembranças que ali foram depositadas, mas, esquecidas, se tornando agora inerte parecendo um coração metálico e sem sentido. 

Remexendo um pouco mais surgiu do fundo da pilha inglória um bilhete que foi conservado em formato de um coração e sua cor estava em vermelho vivo parecendo então que ali poderia haver resquício de experiências que independente do tempo passado se cristalizaram como um fio de esperança deixando o restante do acervo com um reflexo de vida pulsando.

domingo, 20 de março de 2022

Outono

 

Ele nunca chega de mansinho, sempre vem trombeteando seu dia e hora de tomar posse para poder pulverizar com seu manto diáfano as diabruras da estação outonal que sucede ao fragoroso verão que de certo modo destrambelha corações e mentes sem pudor. 

Vem com muita disposição de organizar a natureza a seu bel prazer, porque, afinal, ele será o guia, por certo período, dos humores da estação que está sobre seu comando, tendo que suportar com galhardia os erros das previsões já que tem certa preferência de brincar de esconde esconde com quem acha que o conhece e assim vai preparando as surpresas para o período. 

O cochicho dos seus pares que ainda estão sob o efeito da modorra calorenta do verão, colega que o antecedeu, é se vão dar a largada com disposição e juntos, ou se cada um deles vai se adiantar com sua performance dia após dia. A dúvida desperta neles a perspectiva de traquinagem junto ao seu comandante deixando em aberto se a ordem vai ser cumprida. 

Assim, neste dia em que irão iniciar os trabalhos o mar poderá acordar revoltado, com a cara de inverno, e não com o semblante tranquilo que costuma acompanhar a estação meditativa que prima por uma sequencia temporal escalonada como ondas suaves, sol com sua luz difusa, uma brisa arrefecida comparecendo com alegria, as folhas e flores vagarosamente perdendo sua energia vital atrasando um pouco o tempo de se juntar ao solo para cumprir outra missão.

Pode acontecer que num repente os pares do Outono revelem uma energia descomunal e juntos decidem em seu primeiro dia se unir e levantar todas as possibilidades da estação no mesmo dia, começando com o nascer do sol que entra em campo com cor e quentura adiantadamente desmaiada, as árvores e flores se jogam logo no chão queimando etapa e o vento se afasta para outras paragens onde sopra intermitente, deixando a chuva volumosa se espraiar com vontade. O primeiro dia do pacifico Outono surgiu animado.


domingo, 13 de março de 2022

Silêncio

É sempre o tempo que vem me avisar que ora em diante as coisas terão outro jeito, outro ritmo, outra luz e um olhar que fatalmente vai sofrer uma metamorfose geral e por este motivo fútil coloco a postos olhos e ouvidos para enfrentar a inversão de tudo que anda ou para por aqui, a começar pelo clima, este cara temperamental e dado a paixonites, muitas vezes contrárias ao que se espera. 

De uma maneira geral o Rei Sol se acomodou em sua luz que anda resvalando com preguiça nos amanheceres mais gelados e a brisa trêmula fica sem saber para que lado se dirigir e, por vezes, desistindo de se movimentar por sentir que as coisas entrarão sem duvida em modo lento onde praticamente tudo perdeu força, perdeu terreno, perdeu ímpeto. 

A resposta para este modo de coisas, para este jeito aparvalhado dos dias é um monumental silêncio que se torna agora o principal sujeito no entorno por ter ele sido desdenhado com voraz audácia pelo alarido contumaz de uns e outros, ocasionando um verdadeiro entulho engavetado que promoverá verdadeira inversão na busca da desocupação do espaço. 

Todo dia somos convidados a receber em nossa casa o sigilo, este cara simplório, quase transparente e tão tímido que quase não se percebe a presença. Entra de mansinho com pés de lã na busca de uma conquista quase inglória nos gogós balbuciantes de uma lorota ou outra. Apresenta-se como um rei e comanda a mente com um olho invisível, certeiro e precioso. Por mim sempre será bem recebido e agraciado com muda reverência e esforço para gelar o som, limpar a área de alarido fazendo certa graça com o ar soturno instalado com critério e paciência afastando os invasores da calma.

sexta-feira, 11 de março de 2022

Conto marítimo

 

Acontece sempre a mesma coisa com as andantes Amarílis e sua irmã mais nova quando o sol desponta na linha do horizonte, exatamente no limite entre o céu e a terra para onde se deita o olhar sonolento. De mãos dadas, na maior parte do tempo, parece a quem as observa, que existe uma aura de receio ou medo talvez, de se perder entre as areias fugazes dos cômoros itinerantes, ou tropeçar nas tocas escondidas que, por ora, usufruem de relativa tranquilidade no diligente ir e vir em meio às espumas da beira do mar. 

Seguem sôfregas tendo a frente uma variada lista de aventuras, algumas desejadas, outras apenas cogitadas e outras ainda incógnitas e é este motivo que as deslumbra desde o amanhecer até o ultimo suspiro do sol em seu reinado diário sendo que tudo isso acontece por elas terem dentro de si o espírito curioso que acaba sendo o sal da vida delas. 

O passeio sempre inicia junto à imensidão do mar tendo o cuidado de observar se o dito cujo está de bom ou mau humor. Este detalhe permanece sempre como uma interrogação porque as duas sabem que o clima junto com seus comparsas, as nuvens, o vento, o sol e a chuva podem repentinamente se aliar e iniciar uma revolta na previsão meteorológica, talvez até, imaginam elas, para exercer certo deboche a esta rotina das duas irmãs de se colocarem a pé mal a primeira luz surge. 

Neste dia ensolarado e quente, já na rua, Amarílis foi tomada por um sentimento de aventura praticamente se desvencilhando, sem perceber, da viração receosa a qual tanto preza em dias comuns e observou que não era um dia banal e lá se foram as duas de mãos dadas enfrentar um caminho que invade o oceano com coragem e determinação, apesar do vai e vem de ondas profundas, que – neste dia – não causaram nenhum temor àquelas duas que simplesmente engataram a marcha parecendo ter asas nos pés. 

A distração de suas cabeças sonhadoras as cegou e assim não perceberam às suas costas a transformação do então céu de brigadeiro em uma ameaça real da turminha formadora de nuvens que adora brincar de quem vai assustar mais, derrubando o clima ameno e enredando aquela passarela no mar revolto. 

Se os olhos não conseguiram enxergar o que estava por vir, os ouvidos se fizeram atentos para o surdo barulho do vento revoltando as águas até então pacíficas, descabelando os longos fios de cabelo de Amarílis e jogando ao longe o chapéu da irmã. Ao resolver aparar as asas nos pés e corrigir o olhar para o entorno verificaram que já se encontravam frente ao abrigo da plataforma e assim foram rapidamente resgatadas pelos pescadores frequentadores diários do lugar. Amarílis e sua irmã caíram das nuvens ao confirmar a distração fora do “script”.....

sábado, 5 de março de 2022

Alegoria

 

Encontrei aquele rolo no meio dos meus guardados, aqueles que vieram de longe aportar por aqui para todo o sempre exatamente como determinei com extrema arrogância tempos atrás, porém, não me importo porque eu me lembro de haver determinado esta sina e ai de mim se não a cumprisse ou se por motivo quaisquer não fizesse valer a promessa de mim para mim.  

O dito cujo é apenas uma imagem grampeada de tantas alegorias que me arrodeiam e me provocam nos ganchos do espaço volátil em que me encontro, tanto os perdidos como os achados. Eu reconheço que se trata de apenas uma ilustração, uma das tantas que parece saber de antemão que eu as tratarei com muito cuidado e as colocarei na prateleira permanente do meu imaginário que - caprichoso - se deleita ao realizar o armazenamento improvável. 

Talvez a figuração, assim de pronto, não pareça certeira ou com alguma probabilidade de se encaixar junto a mim com um significado real, mas ao analisar com olhos de lince eu encontrei dentro de mim algo que poderia ser representado por esta enovelada figura que se exibe em uma demonstração sinistra e provocativa. 

Vai ver que foi por esta intuição de aproveitamento que eu a guardei. Quem sabe a sinistra imagem vai me lembrar de algo importante, algo que devo estar enredada provavelmente sem saber e talvez por isso eu a arrecadei. Talvez por isso eu achasse por bem me parecer com ela de tempos em tempos. Talvez por isso hoje ela se atravesse frente a mim surgindo da galeria volúvel para me provocar, para inquirir se ainda me pareço com o encordoado, se já não é tempo de me libertar destes barbantes que me seguram. Ou, pior, que sugere que eu vá sempre por ali, exatamente de onde quero me safar.

 

 

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...