domingo, 28 de março de 2021

Lembrar para esquecer

A trilha que surgiu em minha frente era feita de pedrinhas de brilhante me chamando a atenção espalhafatosa para o que eu poderia, ou deveria encontrar, assim que colocasse meu pé no caminho luminoso e impecável. Apurei meus sentidos e foquei naquela aparição auspiciosa uma vez que meus calcanhares andam para sempre metidos nas areias e conchas da beira mar e ter à frente um convite ladrilhado era por demais tentador enveredar por ali. 

De mansinho, como quem não quer nada e com algum receio de pisotear tanto asseio no lugar, resolvi detalhar o que me aparecia sob esta luz radiante apontada com grande estardalhaço e não me arrependi pelo entusiasmo porque ali estavam encapsuladas de cristal as melhores lembranças que eu poderia imaginar e com esta surpresa, voltei no caminho para não macular o que tão bem havia sido guardado na minha mente. 

Na volta me interessei em saber o que havia sido ocultado de mim neste surpreendente acontecimento vindo de alhures da minha alma se postando frente a mim, me desafiando a perscrutar o que havia para lembrar para depois esquecer. Os encaixes perfeitos do acarpeto estava construído por uma massa disforme espremida entre os fatos e os unia de maneira muito fortuita e quase invisível, porém, o meu olhar interno que não arrefece de modo algum sentiu que havia por ali uma armadilha demonstrando de modo fingido que ali se consagrava o caminho da luz.  Esqueci-me de lembrar que para que houvesse a construção de um caminho de pedrinhas de brilhante foi usada muita lama, muita terra, muito pedregulho, muito inço muito bem temperado com lagrima e sorriso invertido.

terça-feira, 23 de março de 2021

Outono

Este ano ele veio diferente e, tenho certeza, apenas para os meus olhos uma vez que me desfiz de todas as lentes agregadas do mundo que tiveram audácia de se instalar rastejando como erva daninha por entre todas as frestas assim que meu olhar vaga por ai sem destino certo. Junto com esta mania de ter para mim o fervor de enxergar o que realmente parecer ser, segui na curiosidade do que estava vindo a mim com tanta paciência, com tantos matizes em aberto e uma beleza descomunal. 

Nesta base litorânea onde o comando se concentra na natureza - não tem para ninguém - porque a força do vento e das águas seguem unânimes em proporcionar espetáculos de tanta luz e cor que – apesar de certa apreensão - seguem se igualando a grande força da natureza que nos rege querendo ou não. 

Nesta temporada me da impressão que o andamento do clima arrefeceu o avanço de rapidamente se desvencilhar de suas folhas, caules, galharada e frutos secos que se despedem – todos os anos – de seus pátrios donos. Hoje, porém, parecem querer se agarrar por mais um tempinho à seiva protetora que os trouxe até este momento. 

Tudo se acalma neste propósito que se retrai e aguarda melhor momento para deixar seus genitores e assim a folha que já perdeu sua seiva se pinta de roxo, amarelo, vermelho e azul e antes de lançar-se à brisa praiana como seu destino atávico mira para todos os lados procurando o lugar mais aprazível de deixar-se levar, enquanto isso demonstra sua generosidade em se mostrar perfeita em sua mutação, apenas com leve atraso para encantar o olhar. 

Igualmente concentradas as sementes que terão o impulso da ventania aguarda um vento mais louco que lhe arranque de sua morada frutífera e lhe envie para outros cantos da terra que aguardam com paciência a transformação que virá na sequencia. Apesar de ansiosas pelo próximo ciclo de vida de flor e fruto, deixa ficar na observação da calmaria restante mais um momento, criando forças para seguir em frente e renascer logo ali, quando o sol e o vento mudarem de direção e a luz for propícia.

quinta-feira, 18 de março de 2021

Letras de fogo

 

Cravei tudo o que eu pensava em letras de fogo para que nunca mais as esquecesse de e se, por algum momento tardio ou sem retaguarda, eu as reviva invoco que sua luz e queimação me saltem aos olhos e mirem novamente a história que mereceu esta atitude intempestiva e escandalosa. Não me importa se ela é demasiada ou se estapafúrdia, o que realmente me fez pensar em adotar esta tramoia nas telas é para provar para mim mesma que se deve ficar em alerta máximo, porque de qualquer lado, em qualquer instante menos improvável pode surgir aquele malfeito, aquela traição que mereceu estar ali, gravada para sempre e sem chance de reformulação. 

Para me divertir sarcástica e maldosamente abri a galeria dos fatos que por força da minha organização mental de anos hoje se acomodam mui ordenadamente em gavetas imaginárias as quais possuo a chave com o segredo gerido pela lembrança, sentimento, alegria, tristeza, amor e desamor. Existem muitas mais para acionar, porém algumas eu realmente nem faço questão porque já as abri algum tempo atrás, limpei criteriosamente o que devia e dei o assunto por encerrado, pois entendi que sequer merecem estar em letras de fogo, tal a injuria. 

Diante da imensidão do mar, meu interlocutor de todas as horas e imagem de fundo para o que vem e para o que vai me dei alguns minutos para investigar as tais gavetas que ainda insistiam em abrir o lacre da memória e se apresentar sem compostura perante mim, como se relevantes fossem ou como se já não estivessem em processo de extinção definitiva no meu coração. 

Muito interessante se apresentar recapado com a pior vestimenta querendo entrar disfarçadamente na minha vida por entre os muros escusos da difusão indiscriminada do telefone sem fio. Com um sorriso cínico no canto da minha boca que mais parecia um esgar forçado ignorei a missiva invasiva colocando o autor em modo de fogo demonstrando que meu jeito mudou para melhor.

domingo, 14 de março de 2021

Paradeira

A luz e a cor se confundem nesta manhã que teima em não avançar o tempo como deveria, dando uma impressão que por vontade própria estancou o passar dos minutos e assim, obedientes, a natureza do entorno acompanhou o recado intuitivo do brilho deixando as cores matinais de fora de qualquer nuance avassaladora. A mensagem veio em boa hora nesta sonolenta manhã baixando a guarda até da passarada que pia baixinho e na espreita. 

Resolvi empacar tudo o que eu estava fazendo me incluindo deste jeito na brincadeira dos astros que por aqui dominam com sabedoria impecável a contagem do dia a dia, não havendo possibilidade de mudança no roteiro que acontece desde sempre. 

Aproveitei este tempo para melhor azeitar minhas ideias que fazem um esforço estapafúrdio para se alinhar diariamente ao que passa pela frente, mas, neste dia, a missiva era clara como as ondas do pré-outono havendo um grande conluio para que apenas os olhos se movessem e com criterioso cuidado uma vez que a sensação era de que algo sutil e misterioso estava por vir naturalmente. 

Atenta e calada finalmente me deparei com uma paisagem igualmente na espera com suas areias praianas, os bichinhos minúsculos que as frequenta, as conchas largadas por estarem sem serventia estava sendo realinhada com grande ajuste no matiz tradicional havendo uma seleção renovadora para novos amanheceres, apontando para um novo tempo em que já se pode sentir seus aromas pairando neste ar acuado à proposito. 

Não demorou quase nada para que finalmente a manhã seguisse seu ritmo normal onde a pincelada de luz e cor redefiniu magistralmente o retrato da natureza dando por encerrado seu trabalho naquele dia especial junto ao céu que nos protege.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Espuma branca

 

Tropecei naquele lugar o que me pareceu ser mais uma obra do acaso, ou das pernas cambaleantes que insistem em se movimentar, ou do olhar que nem tem mais tanta força para enxergar o óbvio preferindo andar rastejando pelas tramelas da vidraça, pelos cantos da casa ou se estendendo, bem longe, até onde a vista alcança trazendo para dentro de si o que de mais precioso existe para retratar e rememorar quando for necessário. 

Porém, não havia como negar que o chão me chamava à chincha me fazendo baixar a vista e verificar que o lugar era amplo e não tinha paredes aparentes, mas, observando melhor havia uma tênue e quase invisível demarcação no perfil tão plano e acabei por pensar que seria obra da natureza que finalmente teve uma folga e pode, ora em diante, manifestar-se através dos seus desenhos naturais e a seu modo, sem interferência de pés sujos. 

Como o deslize me obrigou a ter mais cuidado na passada, firmei o corpo para que ele não me traísse e enveredei o olhar para escrutinar o que surgiu de repente no solo, imaginando que alguém ou algo queria me passar um recado, ou quem sabe até me segredar o inconfessável e não estava encontrando o modo correto e assim me estancou o passo. 

Por ali me assentei e pude então perceber que o desenho balizado era quase invisível o que deu ares de uma sugestão, quem sabe aquele lugar me estava convidando para que eu completasse o riscado e fixasse ali alguns modelos de colóquio invariável, talvez estivesse sugerindo que neste espaço as palavras escritas tenham um traço marcado pela natureza, banhadas pela luz do sol que as fixa e da lua que as atenua, seja em sua caligrafia, seja em seu significado e concluí, finalmente, que ali se sagrava um lugar perfeito para todo dia escrever uma mensagem que tivesse um destino etéreo e tão suave como a espuma branca do quebra mar.

sexta-feira, 5 de março de 2021

Renovação dos votos

 

Guardei com muito cuidado os votos que criei para mim e, somente isso, para que eu pudesse sempre que fosse necessário lhes dar uma espiada para constatar se ainda eram válidos neste tempo que parece correr em alguns momentos, em outros dá uma pinta de estancar, frear, dar um tempo nele mesmo, talvez cansado, perdido ou ignorado. 

Desta feita ao observar com bastante cuidado, descobrindo-os da capa preta que lhes assentei por pura brincadeira de esconde-esconde de promessas, ou mesmo, para não insistir de, a todo o momento, bater os olhos nas minhas próprias regras, me deparei com surpresa que elas estavam desacomodadas com algumas prioridades igualadas, outras relegadas a segundo plano e outras bem acima do que eu chamaria de importante o que me pôs a pensar motivos ou motivo. 

Deixei os votos desalinhados desabafarem comigo sua alternância esperando que dali viesse a resposta que eu almejava encontrar, afinal, me dediquei muito na formulação dos mesmos em determinado período e não me lembro de haver esquecido de algum, mesmo que eu não lhe pusesse os olhos todos os dias e mesmo que, ao abrir minha janela para o mar, eu compreendesse o que viria primeiro, porém, confesso haver ignorado muitas ocasiões para onde as setas me apontavam e, ruidosamente, rumava ao outro lado, me divertindo bastante. 

Continuei na espera de algum sinal que viesse de dentro de mim, que me gritasse que agora os votos se rebelaram entre si e fizeram o trocadilho da importância por si mesmo, não se dando conta que era comigo que deveriam falar primeiro, com a autora deste nascedouro de intenções. 

Depois de um tempo olhando para esta escala desarrumada resolvi apenas pensar e analisar com cuidado o que havia acontecido e se eu por ventura havia me enganado na ordem do dia, digamos assim. Com atenção e cuidado fui trazendo um por um para perto de mim e arregalei os olhos ao perceber que no momento em que os inscrevi no mural da vida pulei por cima de verdades que jamais mudariam ou trocariam de lugar em sua forma de ser e por este motivo banal a realidade se acomodou novamente. 

segunda-feira, 1 de março de 2021

A horta

 

Meu vizinho me cedeu um pedaço do terreno dele já adubado e preparado para plantar o que me desse na telha o que me levou imediatamente a pensamentos metafóricos uma vez que me lembrei daquele ditado ou mantra, ou anuncio comercial que diz “em se plantando tudo dá” e dei tratos à bola rapidamente e percebi que alimento seria uma boa ideia. Nada contra as flores que enfeitam e perfumam o jardim além de suavizar o olhar de quem lhe põe os olhos, todas as manhãs, acompanhando também o voejar dos insetos que se fartam entre elas. 

Porém, junto a este pensamento de estrear uma horta num pedaço de chão adubado não pude deixar de imaginar que estarei curvada na tarefa, com mãos e pés grudados na terra, respirando húmus, cheiro de tempero recém-plantado e olhos vidrados no vai e vem de cascudos, minhocas, lesmas e caracóis felizes por ter encontrado por ali um campinho só deles. Acho que até ficaram me observando e fresteando quais raízes iriam adentrar o solo para que eles pudessem fazer a sua parte, refrescando a terra no calor, deixando que a água excessiva se vá terra adentro na busca de outros cantos para encharcar. 

Imaginei minha total liberdade de ficar a deriva junto ao sol da manhã, e assim como minhas mãos e ferramentas tratarão de dar vida a quem ainda é semente ou raiz minha fala será direcionada a brisa leve praiana com destino já tratado de pousar letra por letra em meu caderno de anotações que anda largado por ai não sei bem onde, mas apreendo que se encontre levemente amarrotado e revirado como a terra que está pronta para dar vida. Ao fincar mãos e pés na terra muda o meu sentimento e, ora em diante o verbo que possui tanta nuance será conjugado com toda a sua significância, indo do regular ao intransitivo.

Uma rua

  Estanquei o passo ao me defrontar com aquela esquina, uma vez que ela tinha matizes diversos e contrastava com o que havia na minha memóri...