domingo, 31 de agosto de 2025

Contas a pagar

 


Neste domingo ensolarado um certo incomodo me levou a não mostrar a cara além do meu quadrado, e, atropelada por este motivo bobo me lancei a examinar as minhas contas que estão todas arrumadas por assunto, dia, mês e ano em um gavetão que escondo embaixo da escada. Para minha surpresa assim que abri o lugar dos guardados a montanha de papel que eu esperava vislumbrar não estava exatamente onde as deixei me causando um certo calor e uma leve tontura de susto ao perceber que a gaveta dos quitados estava vazia.

Ativei minha memória afiadíssima aliás – desnecessário dizer o motivo – e comecei a lembrar quais dados participaram desta organização primorosa dos meus recibos da vida e que tive o pendor de deixá-los organizados e, deste modo fortuito, ter a oportunidade de revê-los. Fui puxando o fio para entender quais assuntos que eu pretendia me debruçar e estranhamente percebi que nenhum deles envolvia montante algum. Me dirigi a um móvel que possui muitos escaninhos, tal qual a minha alma, para verificar se por um lapso de organização eu havia depositado o que procurava por ali.

Ao abrir o primeiro compartimento me deparei com uma anotação que se referia a um bilhete do meu pai que prometia me dar uma bicicleta em mais um menos um ano. Lembrei comovida que esta divida havia sido quitada com honra por ele e, assim, recebi minha bicicleta nova de um tamanho para uma menina maior. Sorri e o guardei de volta.

Passei ao segundo escaninho e lá estava o meu diploma de formatura da Aula de Datilografia pendurado na parede de uma pequena peça em minha casa de infância que minha mãe havia montado para mim, constando de uma grande escrivaninha, uma maquina de escrever e um rádio de pilha. Foi ali que passei meu tempo de menina pequena, maior e já mocinha não cessando nunca de agilizar meus dedos em simples folhas de papel e cadernos. O incômodo da manhã me pôs de joelhos frente a Deus que me deu a Vida.

 

 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Luz difusa

 


Perdi o gosto por tanta coisa que tudo se confundiu dentro de mim e anda bem difícil que eu consiga entabular aquela conversa interminável comigo mesmo frente ao espelho havendo, para mim, duas certezas: já sei a resposta ou invento alguma coisa para acabar com a fala desabrida naquele momento. Aproveito e coloco no meio deste diálogo de si para si algum cinismo, uma piada boba, um comentário filosófico retirado do boteco da esquina fazendo assim um retrato falado das minhas invenções diárias.

Resolvi então listar as coisas que eram importantes para mim e que me deixaram como se tivesse havido um bafo de maresia e o resultado foi o deserto da minha alma aflorado e imperceptível a olho nu. Agora tenho a opção de sair da frente do espelho utilizando artimanhas de que disponho quando uma grande inapetência me invade.

Não demorou nem um minuto para aparecer frente a mim aquela amizade de tantos anos que a distância empanou no tempo deixando perdido o que restava da intimidade, das risadas, dos passos acelerados e convivência com intuito lúdico e travesso assim acontecendo sem se perceber, tal qual a brisa repentina vinda não se sabe bem de onde.

Na sequência deste raciocínio surgiu a figura de um lugar que até hoje reverbera em suas paredes histórias de outro tempo, quando a juventude foi arrefecendo cautelosamente, os laços do entorno perderam força, as falas emudeceram, os braços inertes caíram ao lado do corpo acompanhados por um olhar que tentava enxergar ao longe, muito longe.

Por último ele apareceu e iluminou minha alma deixando um perfume no ar, o tom de voz, a boca ensaiando um sorriso exatamente como devia ser em algum tempo. Mas, assim como tudo o que eu perdi o anseio, este efeito se evaporou na luz do espelho.

Me dei conta que depois desta reflexão meu paladar se apurou, coloquei o espelho atrás de mim, pintei um novo cenário a minha frente e considerei receber uma conversa qualquer, um espaço diferente que pudesse, desta vez, abrigar apenas um abraço em meio ao abajur de luz difusa.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Arriar a vela

 


Pensei muito a respeito deste assunto, se eu devia ou não me arriscar a fazer remoção do entulho que com o passar do tempo vai se avolumando na vida como craca em casco de embarcação, e que, para solucionar, somente arriando as velas, suspender o barco e trabalhar. Ao observar o assunto por esta perspectiva animei-me, porque anda me parecendo que pelo andar da carruagem dos viventes, está se acumulando no entorno do calendário que ora se apressa ora se pasma tanto organismo estranho que somente arriando o modo de vida costumeiro para que haja uma dedicação criteriosa no aparamento. 

Não foi difícil dar baixa nos incômodos que se postam em frente como se fosse grande coisa, como se fosse executar um arrasta quarteirão na rotina, como se achasse que a partir dali tudo muda enquanto que a única certeza é a volta do original, a limpeza do excesso, o brilho do que jamais deveria ter ficado oculto. 

Nesta barcaça sentimental que resolveu aportar na soleira da minha porta como se esta fosse um porto seco decidi - com muito capricho - lavrar o excesso que por certa preguiça ou comiseração deixei entrar limite adentro. Eu sabia que o fútil, o chato, o supérfluo e a antítese se instalaram com facilidade porque deixei as velas flanando em abertura espetacular sob os ventos de verão e me distraí olhando para outro lado. 

O arriamento não chegou por acaso como as chuvas de verão, a calmaria do outono, os ventos da primavera, e o “fog” do inverno. Não, vieram porque por algum motivo oculto as aldravas da vida ficaram abertas e sem proteção facilitando a entrada do não desejado por princípio. 

domingo, 24 de agosto de 2025

Sapato velho

 


Resgatei do fundo do armário aquele sapato roto que eu havia escondido na mais alta prateleira e que possuía um formato antiquado, surrado, que o deixava fora de combate aos meus pés no alcance da rua. Ao examinar o calçado com mais detalhe lembrei de sua serventia em tempos antigos e decidi que o deixaria ao sol para tirar a umidade entranhada pelo tempo em que esteve no cativeiro, passaria uma graxa incolor que o deixaria luzidio e bonito mesmo estando com desgaste, trocaria os cordões de amarração e os ilhoses, além de forrar com papelão sua palmilha esburacada.

Fiquei reflexiva ao vê-lo ao pé da cama a postos para receber meus pés cansados, aquele antigo calçado que havia me conduzido, secretamente eu acredito, a lugares que oportunizaram encontros que me fizeram ficar diferente, mais pensante em tantas coisas, mais equilibrada em outras e igualmente em tantas outras ocasiões, sem rumo. Lugares estes que releguei a um canto escuro sem jamais revisitar.

Foi assim que um tanto indefesa em relação a qual passeio escolher, meus pés mergulharam naquela estrutura amassada que rescindia a conforto, deslizando suavemente para um interior que se mostrou delicado e morno. Me encorajei e engatei a marcha, quando percebi com espanto que neste exato momento eu estava calçando aquele sapato como se fosse a primeira vez, com sua estrutura nova, a lona que compunha o artefato estava em perfeito estado, os pespontos tradicionais intactos, cordões com ponta de alumínio brilhando ao sol assim como seus ilhoses e o par parecia muito seguro para onde me levar.

Me veio à mente que estava havendo ali, naquele instante um resgate de emoções em relação a história relegada de forma involuntária em outro tempo e agora estes fatos esquecidos atiçaram minha intuição que, aos poucos, me carregou a um reencontro do meu íntimo.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Roubo da alma

 


Foi sem sentir que ocorreu a subtração ou pelo menos eu não notava que estavam me tirando algo, surripiando de dentro de mim coisas tão importantes que provavelmente eu não poderia viver sem elas, aliás, nem cogitar ao meu próprio pé de ouvido eu ousaria. Parecia um processo descontrolado ao qual eu não tinha poder para tomar conhecimento real, assim como de modo nenhum poderia interferir. A sensação era de estar dominada por algo muito mais forte do que eu, da minha vontade e da minha capacidade de decidir sobre mim mesma.

Ao perceber este movimento insano com os meus sentimentos, meus valores, minha rotina e o mais profundo da minha alma me coloquei em guarda para ter apenas a possibilidade de observar o que acontecia e assim o tempo andou celeremente fazendo as tais mudanças e eu ali, no meu observatório particular sem entender direito, mas achando interessante aquele descarte de mim mesma sem que eu autorizasse.

Compreendi que o afano se concentrava nos assuntos que me causavam aborrecimento, mas eu não entendia que os pudesse tirar de mim porque os mesmos faziam parte da minha vida, porém ao pensar com mais vagar dei-me conta que estes mesmos que agora estavam em movimento eram justamente assuntos que me revolviam o estomago, que me dilaceravam por dentro, que me tiravam o humor, que me faziam ser quem eu não desejava.

De um momento para o outro, de tanto ficar olhando o que acontecia sem me meter, de ter os olhos abotoados para o que me passava em frente achei por bem olhar o que ficou porque me pareceu que o movimento havia cessado e o pouco que restava, para meu assombro, dentro da minha alma, é o que eu sempre fui.

Ali estava minha essência aflorada, reinando sozinha, deixando à tona minha alma sem conflito com poder de escolha equânime em relação aos acontecimentos da vida inevitáveis. Depois do roubo do excesso, o singular figura com toda a simplicidade e vai desdobrando para mim tudo o que ando querendo fazer e ser, colocando como prioridade as simplicidades do cotidiano que se consegue sem esforço extra, sem ocultar a personalidade, sem disfarces e sem esconderijos.

 


quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Do avesso

 


Ao enfunar minhas narinas na densa maresia desta manhã tive a ideia de trair a rotina e buscar um caminho diferente deste que sigo todos os dias não largando mão das ondas do mar, do vento e do sol, quando este resolve dar o ar de sua graça. Vou enveredar por outra esquina, uma que me traga um tempo que seja de frente para trás, que possua outras cores, outras pessoas, e caminhos diversos do que eu já trilhei até agora.

Antes de bater a porta atrás de mim resolvi que hoje eu iria - hoje mais do que ontem – desvestir-me da realidade que me rodeia, me aborrece, me envelhece, me tira do sério e sequestra meu sorriso. Esqueci o velho Avatar em uma mala antiga porque ele, para mim, não tem serventia e urge, agora, que eu crie uma nova persona para a empreitada que pretendo singrar nesta manhã quente e ensolarada.

Vou virar do avesso para ver se encontro alguma coisa melhor do que anda por fora e por este motivo importante vou procurar uma fantasia que me cubra por um tempo e me transforme numa desconhecida andando pela rua, exibindo um naipe diferente e com poder de gargantear a história inventada como verdadeira fosse, a mania de falar a verdade, o cacoete de engolir em seco, o mutismo na hora de fazer alarido. E foi assim que me joguei em meio ao jogo da vida, este mesmo que ando renegando, que faço salto de altura e driblo o que não encontra guarida em mim. Parti deste jeito mesmo sem data de retorno.

domingo, 17 de agosto de 2025

Perícia

 


Estou achando que tem muita coisa misturada por aqui me confundindo na escolha do que eu quero fazer, o que prefiro olhar, com quem falar, aonde ir e mais mil coisas do meu dia. Por este motivo fútil resolvi inventariar metodicamente os minutos diários que, para meu desespero, ora se aceleram que me perco no tempo, ora se arrastam me fazendo imaginar que nem estou mais aqui, que virei uma estrelinha e fui parar entre as Três Marias que estão sempre me espiando da janela.

Não sei bem direito por onde começar a seleção e, já de cara, me recuso a ir até o meu amigo Mar porque afinal, ele está sempre na minha frente, nos meus olhos e nos meus ouvidos e acaba sendo o mote de tudo, ou quase tudo que resolvo investigar, seja dele mesmo seja de dentro da minha cabeça oca.

Vou dar as costas a ele e aprumar meu passo desta vez rumo a serra que tem seus córregos passando frente a mim, em algumas ocasiões cristalino, em outras manchado, assim como a vida da gente. Olhando para lá percebi que será difícil investigar seus indícios por viverem em delicioso emaranhado.

Me joguei para a rua de lupa em punho e o que me veio foi a vivência dela de todo dia com os idosos a par e passo, os cachorrinhos puxando pela coleira seus donos, o quero-quero berrando a plenos pulmões e como não poderia deixar de ser, ao longe o som de uma eterna serra elétrica, o bati-bum de um carro velho passando pelo pessoal que carrega seus pets em carrinho de bebê. Pronto, pensei, aí estão todos os minutos garimpados.

Foi assim que eu descartei do meu dia o avesso do que eu procurava e gostaria de desfrutar. Entrei na casa deixando a lupa de lado e fiquei animada com a perspectiva de, ali mesmo, tão pertinho, encontrar o motivo real do meu tempo se organizar, ora apressado ora calmo imitando o tic-tac do relógio da casa que conta as batidas minuto a minuto do meu coração.


sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Devaneio

 


Me deparei com uma casa localizada na virada da esquina que exibe uma arquitetura peculiar assim como a sua pintura em tom interessante. A residência é atraente e possui um lindo jardim com mobílias próprias para estarem na intempérie, um ajardinamento impecável onde todas as suas plantas e flores são modernas e crescem vertiginosamente portando cores inventadas pelos peritos em jardinagem, em poda e em florescimento ao receber ingrediente mágico e transformador.

A passarela que conduz a porta principal, imensa, recebeu uma configuração asseada com um gramado sintético brilhando como seda de ponta a ponta, provavelmente para que não haja rebordosa de bichos e insetos se acasalando no solo, atrapalhando o asseio proposto. As árvores todas são nanicas pois receberam a poda para que assim se mantivessem fazendo companhia a todas as flores e arbustos renascidos. A sombra é fornecida por tetos de acrílico de grande resistência e possui a tarefa de proteger o espaço do sol, do vento e da chuva.

Depois deste banho arquitetônico estético voltei para casa, coloquei a chave na fechadura abrindo a porta de par em par, me sentando num cantinho, tendo uma visão ampla de onde eu vivia, como organizei o jardim, as flores, a grama, a sombra e os canais de vento, sol e chuva. Fui além, passando os olhos na mobília, na louça, nos enfeites, nos livros, nos chinelos.

Resolvi fazer uma inspeção iniciando pelo portão da casa, de ferro antigo com arabescos impecáveis e que me causava muito orgulho e, na sequência, deslizava na minha frente a escadaria solene e altaneira. Continuei o passo a passo e me deparei com o ajardinamento de um gramado extenso que, neste momento, após uma breve chuva de verão, recebia o passeio de caracóis, formigas e pequenos habitantes que transitavam pela terra preta e molhada. Mais adiante iniciei o caminho de roseiras, margaridas, orquídeas, onze horas, todas desorganizadamente coloridas ainda brilhantes do molhado da noite. Após um breve devaneio por um lugar estéril refiz meu compromisso com a vida de agora.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Patuá e a Reza

 


Encontrei este Patuá no meio da rua e fiquei pensando como este símbolo da sorte se perdeu nesta inoportuna sarjeta, em meio a areia da praia coberta de folhas secas multicoloridas que imperam no inverno, pinhas minúsculas dos pinheiros abundantes, deixando apenas à vista um brilho exíguo de metal, de cristal, de laços de fita, de correntes delicadas. Sentei na beira da calçada para descansar o lombo e aproveitei para esticar a mão e resgatar aquele Patuá que estava parecendo um entulho surreal sem serventia.

Um pouco incerta e com calculada cerimônia o tratei com reverência, afinal, ali constava vários ícones de bons augúrios que se misturavam ritualisticamente dando a entender que este punhado de mantras enganchados possuía um destino comum, um propósito nobre, um recado em uníssono buscando, quem sabe, chamar a atenção de algumas ou muitas almas que se perderam dentro de si e agora, sem norte, sem energia, sem luz, vagam como singelos fantasmas.

Fiquei imaginando que cada um daqueles símbolos representava uma liquidação, uma reza, um pedido de talvez uma ou muitas impossibilidades que se apresentaram na vida de alguns. Poderia ser uma criança com sonho de ter sorte na vida futura, uma mulher com reza forte para encontrar seu amado, um homem com pedido de proteção para sua família, um idoso implorando um mantra diferente todo dia para lhe dar força na caminhada final.

O Patuá, ao encontrar ali, quase no chão escuro tantas referências, renovou o olhar para além das coisas, chacoalhou a areia da praia do seu corpo emaranhando, soltou seus frágeis arreios dando brilho a todos que ali foram se misturar para se encontrar na Reza.

domingo, 10 de agosto de 2025

Meus pais



Sempre que vejo o rastro de um avião a jato rasgando o céu azul lembro do meu pai e a minha mãe que, sempre juntos, voavam nas asas da “Panair” e da “Varig”, de saudosa memória, havendo sempre aquela caravana da família indo ao Aeroporto Salgado Filho recepciona-los. O grupo era de respeito, com minha avó Aracy capitaneando a “trupe”, meus irmãos e executivos da fábrica. As novidades ora vinham do Nordeste, ora da Europa, com muito conhecimento no reencontro das viagens.

Minha mãe nunca comprou uma roupa de loja e todos os seus “tailleurs” foram primorosamente costurados na famosa máquina de costura Singer. Daquela máquina saiu a vestimenta de todos nós e eu, durante muito tempo, muito mesmo, costumava fazer a minha escolha de figurino a partir da revista alemã “Burda” que minha mãe colecionava causando em mim, até hoje, um sentimento difuso de orgulho, alegria e saudade.

Nesta doce lembrança paira a sombra da saudade que me invade do tempo de ouro vivido na próspera cidade de Montenegro, um lugar organizado, localizado ao pé do Morro São João zelando a cidade que preservava seu casario e estava deitada ao lado do Rio Caí, caudaloso e com um curso que alcançava outras paragens, levando de arrasto o progresso e sua rebeldia de, em tempos de chuva, deitar-se fora da margem. Estripulias a parte, ele é muito amado.

Iniciei este relato com idade avançada, mas no último parágrafo estarei com as minhas reminiscências invertidas chegando até minha “era bebê” veraneando na linda Torres e de lá ouço o roncar de um avião monomotor - sempre ele - dando voltas e mais voltas em cima do nosso Chalé na beira do mar, na Praia Grande, com a correria da minha mãe ao pegar o carro e voar para busca-lo no antigo “campo de aviação”. A chegada era recheada de alegria com meu pai trazendo melancia a bordo. Lembrança antiga, muito antiga, e que hoje faz toda a diferença no meu dia a dia, no meu acordar, no meu olhar o mar.

Ouçam com bons ouvidos “Asas da memória” em

https://www.youtube.com/@RalpVidaEsperanca



sábado, 9 de agosto de 2025

Destino

 


Quando eu percebi aquele homem em meio a um vendaval congelante caminhando na beira do mar, hoje bravio, fiquei pensando porque ele estaria enfrentando este tempo severo com passadas firmes, sempre em frente, sem sequer pestanejar. A caminhada passava a impressão de que havia um propósito, como se o sol estivesse brilhando a pleno, a brisa quente revoltava seus cabelos, as roupas leves o deixavam seguir porque o mar, o sol e o vento lhe favoreciam.

A realidade era diversa e talvez não lhe tenha ocorrido que poderia se dar conta do erro cometido ao se jogar na beira da praia enquanto acontecia uma grande revolta dos seus principais atores e correr de volta para casa, rindo muito da ideia estapafúrdia de imaginar que hoje o destino lhe traria bons ventos. Melhor entrar dentro de casa, ativar a lareira, pegar um cobertor, uma touca de lã e ficar sorvendo um café preto bem quente, de preferência sem nada pensar ou falar.

Refletindo sobre este personagem que se jogou no tempo não se importando com o que poderia acontecer me ocorreu que pode ter havido dentro de si um alerta que o compeliu para dentro do frio e do vento, talvez uma inquietude aterradora, uma promessa, um sofrimento atroz e assim sentiu esta compulsão de fazer estancar o que o corroía por dentro e somente o enfrentamento a intempérie o faria retornar ao aconchego.

Não demorou muito para o clima adverso ser derrubado pelo sol, amainando o vento, baixando suas ondas deixando a beira do mar com suas espumas leves no vai e vem do areal. Percebi que, por qualquer motivo, uma tempestade pode assolar nosso dia, porém, ela não tem o poder de dobrar a espinha, arrancar o coração do peito, extrapolar o sofrimento diário abandonando a nós mesmos. O destino adora um esforço.

sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Desalinho

 


O dia entrou morno, vazio e quieto o que causou espanto e ao mesmo tempo alivio porque eu acabara de decretar para a minha conjugação de ser humano que estaria desalinhada a quem quer que viesse bater na minha porta, na janela ou invadir meu jardim distribuindo palavras ao vento, sorriso falso, companhia fortuita. Nada disso se encontrava no meu radar hoje afinadíssimo e calmo. Vou permanecer alheia, com cara de paisagem, olhando o horizonte se encontrando com o mar que, por estar bem longe, nem perceberá minha presença, assim ficamos combinados que eu vou imaginar que tudo se encontra de acordo com o meu desejo.

Desta feita vou embrenhar-me por aquela picada selvagem de difícil acesso porque penso eu, somente desta forma conseguirei me volatizar junto a este dia. Talvez eu resolva procurar aquela casinha de pau a pique que eu mesma construí anos atrás na beira de um riacho tão transparente e silencioso que ao assentar-me em sua margem uma onda fresca respinga meu corpo elevando meus pensamentos para um lugar que só existe na minha mente e que hoje busca apenas sobrevoar, pairar por aí pela história como uma sombra.

Será neste lugar que irei descarregar os pedregulhos que incautamente recolhi no caminho apenas pela força do hábito de ter de carregar alguma coisa, enchendo os bolsos e os ombros de um peso sem serventia. É certo que estas pedras não vão ajudar a erguer um forno no pátio, nenhum muro de contenção para a bicharada não fugir, nenhuma parede para o poço irá se erguer, nenhuma pedra servirá de contrapeso para o maço de papel em branco que está na minha estante, não irá, tampouco, palmilhar meu caminho de volta. Hoje eu colocarei as pedrinhas roladas em contraponto com a leveza do meu espirito que resolveu evadir-se.

quarta-feira, 6 de agosto de 2025

Virei a chave

 


Cheguei em frente a porta e ao girar a chave esta não funcionou como deveria mesmo sendo minha há séculos e usada todo dia uma vez que sem ela não saio nem entro no recinto, tanto meu corpo físico quanto o que vem dentro dele, com destaque para minha alma, mesmo que ela muitas vezes queira ficar de fora, resiste a entrar com o que catou na rua e, teimosa, muitas vezes bate pé em se alinhar a mim no lugar em que encontro o meu mundo.

Surpresa, incomodada e tudo o mais que eu poderia sentir a respeito do assunto, sentei-me frente a ela e comecei a elucubrar porque motivos ela estava se negando a me dar entrada, logo ela que funciona como meu diapasão do dia, abrindo e fechando o espaço, muitas vezes oportunizando os embates que travo comigo a darem o fora dali antes que surja nova ameaça. Vez ou outra, ao exibir sua autonomia sem precedentes, abre a cancela e permite o refresco da mufa em ”looping”.

De tantas em tantas voltas para frente e para trás, descortinando com maestria o que vem de dentro para fora e vice-versa posso imaginar que tenha havido uma negação, um cansaço de todos os dias ter de prender lembranças que querem se evadir dali para não mais voltar e também, muitas vezes, soltar o restolho do lixo diário de assuntos indevidos que teimam em se imiscuir por aqui em qualquer fresta desconhecida.

Pensei, repensei e retirei o ferrolho com calma e carinho, limpei a engrenagem simples e lindamente enzinabrada, acomodei na alma os percalços do dia, perfilei por ordem de importância as lembranças antigas, passei a flanela nos quadros e retratos, olhei para o mar e virei a chave.

 

 

domingo, 3 de agosto de 2025

A luz da escuridão

 


Acordei no meio da noite dentro de uma escuridão, estremeci de frio e levantei de modo mais afoito do que de costume sendo atravessada pela memória que me carregou nos braços, e pé ante pé, gentilmente, me abriu passagem no chão gelado. A luz humana veio a faltar e assim, a sombra falsa do entorno se apagou e no próximo tempo, sem precisão, a luz da casa vem apenas lembrar.

Saquei o lampião do fundo do armário, cheio de pó, e com a ajuda do céu estrelado o coloquei em ação surgindo um lume que bruxuleava espalhando a claridade tênue calmamente acompanhada pelo odor característico de quem o alimentava, causando uma recordação que engatou a marcha ré e trouxe as imagens da granja, do urinol esmaltado embaixo da cama, o chuveiro gelado na rua, os arreios, o pasto orvalhado, o leite espumando e o pão no forno. Após iluminar as lembranças inesquecíveis de um tempo que não volta mais, uma lufada da brisa escura mitigou sua força.

Neste momento a lua ia alta e me deu tempo de acender a vela que ainda restava no meu descuidado arsenal de luz antiga. Esta apareceu tímida, sem saber ao certo para que lado derreter, estremecendo a chama a partir de qualquer movimento restando impossível deixa-la firme. Pensei um pouco e achei que ela estava parecida comigo nesta noite escura com meu passo incerto, gelada e receosa, porém, o brilho do meu olhar sinalizou que havia por ali uma surpresa.

O que eu encontrei em meio a escuridão atenuada foi a perfeita armação de minha lareira que sorridente aguardava o primeiro fósforo. Não perdi tempo, calcei os chinelos, busquei a caixa de fósforos e a luz mais quente iluminou o ambiente e por entre um e outro estalo da lenha as sombras fantasmagóricas da noite se evadiram para além da minha lembrança. Grandes labaredas formaram novas sombras na casa desenhando novas histórias.

sábado, 2 de agosto de 2025

Bar imaginário

 


Vou sentar nesta mesa de bar que possui várias cadeiras vazias, uma vela enclausurada em vidro e um cinzeiro para que se houver consideração acolha qualquer cinza, desde a mais comum até as que estão em voga e que desconheço. Também pretendo colocar em cada assento que me admira com olhar pedinte, todos os meus pensamentos de agora que transitam sem compostura em uma desordem hermética dentro do meu corpo causando todo tipo de estrago formando uma dor, uma lágrima, uma tosse, um soluço, uma ferida, um desespero. 

Na primeira cadeira encontro a tristeza que me invade e surge solitária como a estrela da manhã que mesmo brilhando com intensidade não consegue reparar o rompimento da mente neste encontro inesperado. Eu a deixarei assentada para quando o bar fechar suas portas não tenha mais para onde se dirigir e assim se extinguirá por si só.

Na segunda cadeira me deparei com o falatório que se apresenta com uma prosa boba, uma conversa sem sentido, palavras fúteis jogadas ao vento como se folhas secas fossem não deixando nenhum rastro e nenhum ruído que as faça ter fundamento. Ali percebi a desconexão que paira no ar e que nenhum vento forte da encosta consegue derrubar.

Ocupei a terceira cadeira esperando que o bar ao abrir suas portas me apresente uma alternativa viável e que me dê esperança de travar uma batalha verbal incluindo palavras onde a frase tem sentido, o adjetivo e o substantivo têm sua personalidade preservada, a pontuação siga o rito e que o texto prescinda de ilustração que represente uma ação. Entrou em cena o desencanto que me entregou um rascunho de nada, me obrigando a fechar o Bar Imaginário.

 

 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Apenas um "Alexander"

 


Fiquei olhando fixamente para aquele nome e não me ocorria de o reconhecer,   mas senti um vento quente passando no recinto, e uma sensação de clima claro, confortável e alegre. Também me senti muito jovem, ruidosa e destemperada. Avancei mais um pouco para dentro de mim e fui catando outras lembranças porque a faina de descobrir o autor da mensagem me trazia um certo bem estar e muita curiosidade, medos à parte de vírus letais que perpassam solenemente pelos céus de hoje.

Junto com estas sensações me veio à boca o gosto do drink “Alexander”, uma bebida que aqueceu a garganta em outra era, poderia  dizer. Junto com este sabor, uma vista geral de barulho, fumaça e muita gente. Algazarra, muito vento, risadas, calor, lindas imagens, muita conversa. Afirmo, porém, que esta recordação me veio em tom difuso e antigo.

Decidi ir mais fundo, esgravatando nas gavetas da alma porque a juventude tomou conta de mim e a esta altura minha pele renovara-se, eu não sentia preocupação a respeito do futuro e a data presente era bem vivida e aceita, como sendo a única coisa a fazer. E, de fato, era. A oportunidade de voltar um pouco ou muito no tempo, traz em si a conveniência de revermos a vida como se fosse um curta de cinema.

Parei para pensar e não somente sentir. Cravei o olhar na tela e senti a pulsação cardíaca subir, empenhada em saber quem se representava naquele nome misterioso. Do nada, ele surge magrinho, cabelo comprido, riso fácil, fala apressada. Descobri.

Banho de mar

  Engatei a marcha da resolução, pisei firme o pé na areia úmida e gelada seguindo com os olhos vidrados na maré vinda de alto mar até morre...