Resgatei do fundo do armário
aquele sapato roto que eu havia escondido na mais alta prateleira e que possuía
um formato antiquado, surrado, que o deixava fora de combate aos meus pés no
alcance da rua. Ao examinar o calçado com mais detalhe lembrei de sua serventia
em tempos antigos e decidi que o deixaria ao sol para tirar a umidade
entranhada pelo tempo em que esteve no cativeiro, passaria uma graxa incolor
que o deixaria luzidio e bonito mesmo estando com desgaste, trocaria os cordões
de amarração e os ilhoses, além de forrar com papelão sua palmilha esburacada.
Fiquei reflexiva ao vê-lo ao
pé da cama a postos para receber meus pés cansados, aquele antigo calçado que
havia me conduzido, secretamente eu acredito, a lugares que oportunizaram
encontros que me fizeram ficar diferente, mais pensante em tantas coisas, mais
equilibrada em outras e igualmente em tantas outras ocasiões, sem rumo. Lugares
estes que releguei a um canto escuro sem jamais revisitar.
Foi assim que um tanto
indefesa em relação a qual passeio escolher, meus pés mergulharam naquela
estrutura amassada que rescindia a conforto, deslizando suavemente para um
interior que se mostrou delicado e morno. Me encorajei e engatei a marcha, quando
percebi com espanto que neste exato momento eu estava calçando aquele sapato
como se fosse a primeira vez, com sua estrutura nova, a lona que compunha o
artefato estava em perfeito estado, os pespontos tradicionais intactos, cordões
com ponta de alumínio brilhando ao sol assim como seus ilhoses e o par parecia
muito seguro para onde me levar.
Me veio à mente que estava
havendo ali, naquele instante um resgate de emoções em relação a história
relegada de forma involuntária em outro tempo e agora estes fatos esquecidos
atiçaram minha intuição que, aos poucos, me carregou a um reencontro do meu
íntimo.
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