sábado, 29 de julho de 2017

O chá


Cheguei aqui com uma mochila abarrotada do período deixado para trás. Todas as coisas importantes estavam ali milimetricamente acomodadas para que eu não tivesse a menor chance de esquecer nenhum detalhe do ocorrido em tanto tempo, lidando em outras paragens, respirando outros ares, conversando com outras pessoas, caminhando em outras calçadas e suspirando por outros amores. Veio tudo, amigos, inimigos, desafetos, ternuras, familiares, conhecidos e desconhecidos. Deixei um canto para eles, vai que eu me lembre de alguém por quem passei, mas não tive a oportunidade de me fazer presente.
Eu cheguei à casa nova antes com a tal bagagem que pesava menos nos meus ombros do que na minha alma e por este motivo eu a abandonei em um canto, porque eu esperava que dela viesse o apoio de que eu necessitaria mais cedo ou mais tarde, talvez quando houvesse passado a euforia, ou quando meu sorriso cansasse, ou ainda quando o sol já me queimasse e o vento me açoitasse. Quiçá quando eu sentisse certa saudade ou quisesse lembrar-me de como tudo era ou foi, me atrapalhando até no verbo.
Minhas digitais vieram no caminhão e tiveram uma sorte mais organizada porque os objetos já encerravam em si suas estórias bastando coloca-los no lugar para que algazarra se iniciasse e, depois de certa balbúrdia tudo se acomodou em seus devidos lugares, deixando assim o ambiente pronto para receber as emoções novas que se avizinhavam.
Assim que os amanheceres começaram resolvi abrir todas as possibilidades de socorro que eu havia embalado tão cuidadosamente e me surpreendi ao verificar que o alforje se encontrava vazio. Todos os vínculos que ali prendi não existiam mais me fazendo forçar a vista para compreender que estes, a quem era dedicado, não se atrelaram a mim.
Agora, perseguindo este vácuo encontrei um caminho cheio de conexões acessíveis, parecendo fitas de cetim multicoloridas balançando nas ruas, nas avenidas, na beira do mar, na minha calçada e janelas, acenando para os tempos de esquecimento. Foi neste clima que aconteceu aquele chá de praia em uma grande mesa onde especialidades se acomodavam ao centro e o chá era servido aquecendo nossas almas, alargando as risadas. O bornal da vida se encontra aprumado e desta vez com seu enredo bem enlaçado.

Na ponta dos pés


O tempo está tão calado que o céu se confunde com o mar e assim eles dois concluem que se misturar no horizonte talvez seja uma boa ideia, porque parece sempre que tudo está sendo levado com força para os cantos que certa dose de pasmaceira é uma opção não pensada no dia a dia, mas se for colocada em prática, se dará a perspectiva de um planeta diferente. De inquieto se torna estático deixando fluir apenas uma réstia de luz, um ou outro ponto de sombra, conchas e andarilhos da beirada estancam suas atividades e o nadinha de brisa não desfaz o retrato onde a placidez é a pegada da hora.
A majestade do oceano cabe quase que totalmente onde se esfumam suas espumas alardeando que o dia veio com ares de amor, trançando tudo o que aparece na natureza, indo e vindo apenas no movimento das profundezas que também se recolhe, parecendo prever algo que possa acontecer neste lugar deserto, nesta praia aliviada, neste mar solitário e refém do que acontece no entorno.
Mais adiante algumas pegadas ainda frescas vão sumindo à medida que o mar as alcança, apagando a energia que emanava de um ou mais pés que por ali vagueavam. Algumas palmilhas se foram apressadas concluir o percurso, outras mais erráticas faziam voltas de lá para cá como que procurando seu destino ou sua força, outras se afundaram na areia parecendo que um chumbo de tristeza as embocou e assim outras mais diversas e leves pareciam pegadas de criança de tão miúdas. E assim o mar com toda a tranquilidade foi retirando dos seus donos suas marcas.
Pelo descrito até aqui não estava no “script” o encontro de encantadores e minúsculos pés femininos com o seu par na beirada deste mar, que obviamente se preparou para a cena. E assim, na ponta dos pés, alguém se ergueu para alcançar o olhar do seu amado, lhe enlaçou em seus braços, ergueu seu rosto e assim esta manhã inacreditável foi selada com um beijo de amor de praia.

A carcaça


Fiquei com pena dele ali caído, enferrujado, esburacado e sem proveito no seu propósito de vida que sempre foi navegar em tantos mares quanto pudesse, levando dentro de si criaturas que não viviam sem ele, que ali passavam seus dias de folguedo, que dormitavam na espreita dos anzóis lançados, que varavam noites na vigília da safra que a estação prometia. Jaz, assim, encostado, sem o embalo das ondas que o acolheram por um período bem longo, se tem a certeza.
Dá para ver que seu casco, que navegou com arrogância por tantas ondas, se encontra muito avariado, quase que totalmente desfeito de sua feição inicial sugerindo que talvez ele tenha submergido em algum tempo e ficado por lá, entre conchas, peixes grandes, pequenas e grandes marés. Deixou-se carcomer com resignação, porque as avarias estão em todo o seu volume e em alguns lugares mais que outros. Esburacam-se suas laterais talvez por conta de uma força férrea de espécies de peixes que ali queriam se achegar para verem nascer suas crias, fugir dos seus predadores e com certa paz  o casco arruinado colaboraria para salvar suas vidas. Mas, assim que sua missão no fundo do mar acabou achou-se com leveza suficiente para voltar a ver a natureza em que nasceu.
Escolheu esta ponta de praia para ter, enfim, sua estrutura totalmente desfeita perto da água e das rochas que de certo modo o protegem, achando ele que nunca é tarde demais. Um escudo que não o deixa voltar ao fundo porque agora está cumprindo com o seu destino, consentindo que se fique à mostra o rastro do seu reinado, finalizando com sua proa e pompa arreganhando seu fim com um leve sorriso. O tempo de vida útil se esvaiu, mas surge agora um personagem na beira da praia que irá suscitar muitas estórias sobre sua imobilidade arruinada, encantando velhos, jovens e crianças.

domingo, 23 de julho de 2017

Meus lábios


Mordi os lábios naquele dia porque não sabia direito se eu me ofendia com o que me foi sugerido, se achava graça, se considerava simplesmente ridícula a assertiva, se ignorava o sem noção ou ainda se saia correndo. Decidi que o melhor seria dar uma parada, mordendo a mim mesma para que pudesse sair assim a melhor resposta para o descalabro ora em frente e do qual eu não podia me furtar. A situação merecia uma resposta que fosse pensada com todos os detalhes durante umas vinte e quatro horas – pelo menos – com todas as alternativas ensaiadas frente ao espelho, porque se isso pudesse ter sido feito, com certeza o retorno que eu poderia dar, seria a perfeição em resposta.
Mas, naquela hora, o requinte não se apresentou a mim e consegui apenas um lance momentâneo onde consegui colocar a certeza de uma posição gelada como o tempo, distante como os sonhos e com viés certeiro para a nulidade do proposto. Melhor que enjambrar discursos a respeito é cravar o fim da ilusão. Imponente a pauta saiu do ar, mas não de mim, e, assim me arrastei até um lugar seguro para então olhar em perspectiva, talvez ignorar, talvez me ofender, talvez me irritar, talvez não me importar. Tudo podia.
E veio do fundo do meu coração o melhor de tudo. Deixar o assunto flutuar como se houvesse um fantasma rondando o passeio, como se de repente não houvesse mais luz naquele dia com mil brilhos, como se do nada tudo o que unia tomasse chá de sumiço, o que parecia ser mostrou-se falso, o colorido exuberante se esvaiu do entorno, o sol se escondeu com vergonha, o próximo ficou distante e o abismo se meteu ali com muita propriedade sabendo eu, assim de cara, que o pior sempre esta por vir se fores crédula.

sábado, 22 de julho de 2017

Preces


Acendi três velas, todas parecendo iguais, mas certamente que para cada chama que ardia, um propósito se avizinhava, mesmo sutil, assim como é a vida, ou melhor, assim como eu a vejo, cautelosa apesar de a primeira vista ser arrebatadora, às vezes vulgar ou em outra partida bem agitada. Nada disso eu queria para aquela circunstância em que aquietar o que parecia impossível era a minha meta. Definido então o propósito com objetivo acentuado, a urgência na prece existia para que assim eu pudesse separar o que muito embaralhada estava, vez ou outra.
Dediquei a primeira chama, que por qualquer motivo se aparteou para um lado só, a verdade que agora se impunha como fato concreto e do qual eu não conseguia mais fugir. O normal é amanhecer já sonhando o dia, a fantasia concretizada de pisar meus pés nus na areia fina da praia como se ali fosse apenas o muro da minha casa e não este portal oceânico de possibilidades naturais que praticamente me engolem. A pequena chama além de alumiar muito tenuemente minha proposta, aquece e muito, meu coração, este coitado todo enredado em si e que enaltece a prece.
A segunda flama já vem mostrando a que veio porque ocupa com muita circunstância todo o pequeno espaço que lhe foi dedicado, mostrando assim que no quesito oportunidade, a vela não se fez de rogada. Espalhou-se mostrando que neste território quem manda é ela e assim, fiquei um pouco tímida, porque esta daí me alembrava de que seria dedicada a algum amor platônico, a alguma paquera meio que esquecida e que em vão eu tentava ressuscitar sem sucesso algum. Vai ver que é, por este motivo, que ela fica exatamente no meio, tipo, não sei se vou, não sei se fico.
O terceiro lume se verte mais para a esquerda, se apequena em sua luz, surge com mais fraqueza como se de fato se arrependesse de algo, ou, mais claramente, como se não tivesse mais forças para manter-se de pé, de fazer da trinca religiosa uma alternativa para se chegar a Deus com mais facilidade. O lume derradeiro parece cansado, opaco no seu destino e de certa forma sente que se apequena frente ao tanto que precisa dar, mas, como toda prece se oferece com generosidade.

segunda-feira, 17 de julho de 2017

Sedução


É muito fácil acreditar em palavras que podem ter uma mínima sequencia e que por qualquer tom mais habilidoso vai encontrar em nossas rimas a conjugação perfeita, a continuação do parágrafo bem encaixada, a resposta para a pergunta ora formulada criando deste jeito uma prosa complexa e sedutora. No escuro da identidade todos os sorrisos são de orelha a orelha, todas as discussões são relevantes e quase todo assédio pode passar despercebido se o critério continuar sendo o de se deixar levar.
Volta e meia o encanto aparece no secreto aconchego da parafernália que ilusoriamente esconde as quimeras sem identidade, com um traço obscuro, travestida de boas doses de charme, de falar o que o outro quer ouvir, de sorrir sem achar graça, de colorir a conversa com pantomimas hilárias disfarçando assim o oculto das intenções.
É na solidão dos teclados, nas caminhadas a esmo, na mania de ficar com os olhos pregados ao longe, que as armadilhas são assentadas como tijolo de vidro, sem de fato serem apreendidas a olho nu, porque no espaço é onde elas se assentam melhor. Falsos ardis incluem a disseminação de sentimentos vários, de duvidas, de se ficar com dois corações, de não saber se fica ou vai embora, se acredita ou ri da bobagem, se sente raiva pelo insólito ou vira as costas e segue seu caminho sem olhar para os lados.
Mais fácil seria dar uma olhada despretensiosa por cima do ombro e verificar se este veleiro com bandeira falsa não é apenas uma canoa com casco avariado que recebeu uma tinta fresca e entre uma marola e outra sua estrutura vai adernando. O falso jogo jogado sempre vem com perna de anão e pode se achegar dando pinta de ser o que não é e se os incautos prestarem mais atenção perceberão que seu conteúdo evapora-se no primeiro suspiro de dúvida, esquivando-se para outro canto, escurecendo o sumiço para a impermanência da ilusão, que por hora, está dominada.

domingo, 16 de julho de 2017

Neblina


A praia acordou hoje monocromática deixando os moradores com a sensação inusitada de pairar por entre as sombras úmidas desta atmosfera que se arregala sobre a paisagem, não importando que tudo se esconda entre sombras, que os mandantes do humor do praieiro – sol e mar – fiquem escondidos por um bom tempo. Resta aos caminhantes adivinhar o que pode acontecer em cada virada de esquina podendo muitos até se perder ou aproveitar o instável para fugir de si, dos outros, da vida quem sabe.

Parece assim, que as águas se revoltaram de certo modo por estarem ali, sempre à disposição, sempre a vista, sempre por perto, sempre de plantão e então se evadiram, condensando no ar um pouco de si, causando este sombreamento e também se divertindo com a falta de vista de poucos passos de muitos.

Uma fantasia ilustre a de se partir em dois, deixando que um pedaço dos mares se transforme em um vapor e possa assim ficar muito perto da superfície, fustigando com incógnita, as ruas, as casas, as árvores, as estradas e talvez sugerindo que neste dia imagens normais tenham que ser refeitas. Não há garantia do caminho a chegar, não obedece aos instintos porque estes se perderam na escuridão do tempo, mesmo esfregando os olhos não se desanuvia nenhum norte.

A natureza muito sábia está dando um puxão de orelhas para quem faz tudo igual todo santo dia e agora, com o caos da meia luz instalado surge em cada quebrada o desconhecido inquietante, o vácuo do futuro, a ansiedade de não reconhecer o destino, o pesadelo de se perder porque assim tudo o que parece ser não é. Os perigos inexistentes em dias de sol agora se acumulam em cada esquina, em cada rua a ser atravessada, em cada poste que se jura nunca haver estado ali, a faixa de segurança fica incerta, os vizinhos de passeio passam ao largo e a manhã marítima continua contando seus mistérios.

terça-feira, 11 de julho de 2017

Enredada - fábulas


Fui andando por ali imaginando que talvez fosse interessante ir de ponto a ponto, porém, percebi que não seria possível, uma vez que este viés que se apresentou a mim sem que eu desejasse, se arrodeava de tantas voltas e atalhos que difícil seguir em frente, de cabeça erguida e sem olhar para os lados. Prestar atenção na caminhada era o que se propunha este mapa. Um mapa frágil, aliás, que não faz muito sentido porque todos os mapas se dão o desfrute de serem heroicos, certeiros e prestativos para quem está perdido, principalmente. Mas não esse, bordado com uma tênue linha de seda fabricada pelos interiores do pessoal de tantas patas e muito laborioso.

Apurei a percepção que ora se demonstrava ilusória e assim eu fui tateando naquelas tantas dobras, tantos pedaços interceptados, tantos desvios repentinos, tantas caminhadas alongadas e sem propósito aparentemente, que me deixaram apreensiva de seguir em frente, mais não fosse por me dar certo cansaço.

A fadiga que me assoma de repente vem a calhar com estes rumos desvairados, apontando para tantos lados e com tanto risco de me grudar em um destes fios como se um inseto fosse, como se de uma hora para outra me tornasse alimento, como se assim, do nada, resolvessem acabar com a minha raça neste enredo inusitado aonde me joguei cegamente. Como percebi que este curioso ardil tinha em si vários objetivos, resolvi pensar para qual destino eu iria me atirar.

Então, subitamente entendi que, havia aos meus pés uma teia perfeitamente engendrada para eu pudesse optar pelos três caminhos que ela me apontava e se oferecia sedutoramente, sendo um deles uma casa bem confortável onde poderia me ater e criar assim o meu próprio mundo onde avistaria o universo como um todo, onde talvez estas cordas elásticas me levassem e me trouxessem de volta alguns sonhos e assim eu pudesse partilhar esta vida que ora se impõe. Sem pensar escolhi o encadeamento que me trouxesse tudo o que eu sempre tive em mim e assim, passar tudo a limpo.

domingo, 9 de julho de 2017

Sereia


Acomodou-se naquele dia lindo na beira do mar a quem sempre se arremete quando o imaginário se torna obsessivo e que mesmo sem dar-se conta, a transformação de todo o seu ser já aconteceu, mesmo que ela não queira. Parece bruxaria ou magia, não sabe bem, porém a necessidade de instalar-se com aquele feitio olhando o mar é uma força poderosa que arrasta todas as suas vontades.

Primeiro, percebe que além do tipo físico que se transmudou depois de chegar ali no umbral, também os seus instintos se alteraram, se tornando ela muito envaidecida de si, sua voz normalmente desafinada tornou-se maviosa ao iniciar uma cantoria um pouco sem sentido. A cabeleira também sofreu certo destaque espalhando tantos cachos ao redor dos seus ombros que ficava difícil enxergarem sua feição e, não havia também, nenhuma vestimenta, apenas uma forma que se enroscava lânguida junto à espuma das ondas.

Assim, de longe, poderia ser uma miragem, uma ilusão, destas que acomete quem se encontra solitário, sentindo falta de alguém mais próximo, talvez um alô de filhos, netos, parentes enfim. Um mito pode aparecer na mente que vagueia no fantástico, se travestindo de algum personagem para que de metáfora em metáfora atraia para si o que tanto lhe faz falta.

Esta figuração de uma fábula na beira do mar, que mitologicamente cantava lindamente para desviar navios de suas rotas, pode servir como um segredo para, em se fazendo diferente, sedutora, linda e disponível poderá trazer de volta as promessas e afetos, desde aqueles todos que após a despedida tiveram amnésia dos laços de amizade, como aquelas tantas conversas prometidas que acabaram se esvanecendo, também os encontros prometidos em reza que perderam rapidamente o seu tom cristão e os acenos de calçada que caíram como fruta madura.

sábado, 8 de julho de 2017

Passo em falso


Dei de cara com este caminho que, em um primeiro momento, me deu a impressão de ser idílico, com uma deslumbrante paisagem a lhe cercar, sendo por isso mesmo por demais convidativo o ingresso de pés descalços nesta madeira porosa, com uma aspereza deliciosa, quente do sol, mas nem tanto, soando como um convite imperdível para seguir alguns passos adiante. Meu olhar atravessava sua utilidade planando no que vinha depois, e, com certo sentido de ilusão de tempo e espaço meus olhos se fixaram longe, ao invés de ater-se no que de bem perto acontecia, ou prometia.

A primorosa construção se acomoda praticamente no vácuo da paisagem, auferindo de certo modo um caminho de ilusão, um passadiço que tem logo ali determinada a suspensa da sua passada e com uma probabilidade muito grande de, ao seguir com o olhar ao longe, pisar em falso e em seguida submergir na paisagem plena e realística ou no liquido da vida e não nos sonhos.  

Uma fantasia interessante se pensarmos que, acabando este caminho, poderemos afundar na incógnita de nossa vida inteira, cair de pé na esperança e não somente na quimera, e assim, seria como se esse palmilhar que se apresenta viesse dar o recado da percepção de estancar a sangria da história e dos acontecimentos, o fim de uma era, o fim de um ciclo, do riso, da vontade, da iniciativa.

Olhando com mais vagar, me salta aos olhos que poderá haver outro propósito esta travessa em que, de primeira, percebo não haver corrimão, nem apoio para quem ali se achegar trôpego de sofrimento, cego de amor ou ódio ou sabe-se lá, para dar um fim em tudo. Ele pode estar configurado para uma forte e delicada sustentação para que o norte surja como um milagre para aquele futuro que se alinha lá, bem longe, no horizonte das vidas, e assim se rume para aquele futuro que se avizinha sem cair no fim do curso e na profundeza da incógnita.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Tapete de folhas


Arremessaram assim, como quem não quer nada, este tapete de folhas na minha calçada imaginária, me ferindo os olhos por seu estapafúrdio colorido que se encarregou de arremeter a imagem, no mesmo instante, para o meu pensamento e de lá não mais quis sair. Entreverado nos meus aforismos que por si só se atrapalham, veio ele, dono de si e de mim colocando tal cor nas minhas manhãs cinzentas e assim me iludindo sobre o matiz da vida.

Com toda esta movimentação e assédio em torno da peça, resolvi que em minha fantasia ele não mais iria ficar e assim o coloquei em realidade, bem defronte a mim e fui, com muito cuidado, com ele em mãos, posicionando-o em vários recantos da casa para ensaiar uma dança, somente nossa, e verificar qual o seu melhor abrigo.

Na entrada da casa, do lado de fora, nem pensar, porque haveria de logo perder suas cores ao ver a movimentação inoportuna dos meses de verão, mais não seja o de receber um bom olho gordo de tão lindo que ele é. Já dentro da sala, na entrada, também não, ora se ele poderá se prestar a receber tudo o que vem da rua, se misturando em sua textura impecável outras espécies menos brejeiras.

Arrastei-o para o centro da sala, mas não ficou legal porque havia os outros compadres dele que não gostaram da companhia, talvez porque sua tonalidade é afrontosa e meu chão pede paciência e cores clássicas, além de não haver combinação nenhuma entre eles.

Levei-o para a cozinha, em frente a pia onde passo tanto tempo na alquimia dos alimentos, onde o espaço é pequeno e na medida dele, mas ao ver-lhe deitado no chão, pensei o quanto do dia que o pisotearia sem dó nem piedade e claramente veria a sua tonalidade se esvanecer. Não, este tapete de folhas fomenta a vida só de olhar, não terá seu fim no espaço em que se mata a fome.

Rumei para o espaço mágico que me acolhe boa parte do dia, olhando ao longe, dando tratos à bola na invenção, pensando um pouco de tudo e também tudo de nada, onde eu fujo de mim e ao mesmo tempo me encontro, onde enxergo o mundo e me arvoro de ignorá-lo solenemente. Sim, é aqui nesta parede frente a mim que o magnifico tapete de folhas coloridas com escândalo irá se assentar.

sábado, 1 de julho de 2017

A maleta


Ela pegou aquela maleta pequena que ficava embaixo da cama da avó e, por isso mesmo, ela pressentia que já havia algum conteúdo dentro, uma vez que já estava um pouco pesada, sem ela sequer ter separado suas coisas. Olhou no entorno e, com surpresa, verificou que não havia nada para juntar porque assim, de repente, quando na cabeça lhe surgiu a ideia de se evadir, preocupou-se de certo modo com a bagagem e dentro da cabeça dela havia tanta coisa para levar que talvez nem desse para executar seu plano, intempestivo de certo modo.

Não desistiu de continuar procurando suas tralhas porque com certeza elas estavam ali, em algum lugar certamente, só que por algum motivo a menina não as enxergava, ou melhor, não se apresentaram para serem despachadas na sacola de couro velho seus alfarrábios, suas canetas hidrocor, seus blocos de anotações, seus sapatos rotos, suas mantas, seus vestidos e todos aqueles “allstar”  sujinhos de tanto andarem por ai. Nadinha se alistou para se incorporar a esta aventura, mais não seja para cobrir seus pés na caminhada, aquecer as noites geladas que estão por vir, e, muito pior, nem uma ponta de lápis com papel para que consiga assim registrar sua vida de ora em diante.

Voluntariosa que a menina era decidiu que sua partida não seria efêmera nem de sua imaginação – como acontecia tantas outras vezes – desta vez, seria de verdade e, então percebeu que a falta de “coisas” para levar era apenas um sinal, um alerta para que agora levasse apenas a si mesma e aquela velha mala de couro vazia como companheira.

E deste modo alcançou o umbral desejado, o caminho desconhecido que sempre lhe seduziu, mas que a coragem nunca a deixou trilhar, ali estava ela, de frente para o nada com tudo a ser feito e por isso mesmo começou imediatamente a costura de sua nova vida.

De cara, abriu a velha mala que, mesmo vazia, e talvez por isso mesmo, tanto conteúdo portava e que provavelmente sua avó foi quem ali depositou com tanto amor muitas das ocasiões de quando muito pequena era. A menina pensou que este propósito só podia ser para lembra-la que somos quem nos criou e ali, muito organizadas estavam as suas melhores lembranças, suas experiências mal sucedidas, seus sucessos, seus familiares, seus carinhos distribuídos e recebidos, seus folguedos de criança, suas amizades, sua família, suas bonecas, sua poltrona de leitura, suas bicicletas. E foi assim que a menina descobriu que em uma mala vazia estava toda a sua vida.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...