quinta-feira, 3 de abril de 2025

A primeira janela – O conto

 


Amaryllis governava aquela casa antiga com primor tendo ajuda de pessoas que exerciam as tarefas como se fosse um sacerdócio, uma veneração pela preservação, pela ordem, pela boniteza, pela natureza entrando pelos olhos e se afundando em cada canto da casa que rescindia a flores, folhagens e terra fresca. Colchas de crochê finamente elaboradas pelas avós enfeitavam as camas, as poltronas, as mesas de refeição. O assoalho de madeira maciça onde ecoavam as botinhas de couro das meninas, os tamancos do rapaz, o salto alto da dona da casa finalizando com as botinas do esposo eram cobertas por tapetes que abafavam o vai vem dos moradores e a faina diária do casarão.

As aberturas muito antigas - tanto portas quanto janelas – arranhavam estranhamente ao se abrir e fechar parecendo ávida para expor o ambiente externo e trazer para dentro da rotina da casa sua vida de início da manhã. Se entreabre para o mundo, em sussurros, assuntos de todos os tempos, passarada em alvoroço, ruídos da rua na manhã brumosa quando os personagens diários que frequentavam a madrugada vinham dar seu recado. Assim se ouvia o leiteiro, o padeiro, o capataz, o entregador de fruta e o carteiro, este se equilibrando no cesto de muitas missivas dirigida todos os dias àquela casa. Era chegada a hora de se debruçar nos janelões centenários onde figuravam floreiras impecáveis onde em cada palmo de terra exíguo se exibia uma espécie diferente formando um canteiro de flores aéreo ao redor da construção.

Neste momento encontramos Maria Flor que transitava neste ambiente com brejeira curiosidade levando para todo canto sua traquitana de estudo e de brincadeira sendo este ambiente quente, afetuoso e amplo que lhe deixava muito a vontade para expandir sua fantasia de menina. Menina essa mais quieta, de pouca fala, um pouco amuada, de muitos olhares e percepção aguda. Nem sempre lhe seria favorável esta condição, mas naquele tempo ela não tinha conhecimento disso.

Em um memorável dia Amaryllis tomou a mão da menina e a levou para um pequeno quarto no centro da casa, quase escondido, com uma porta monumental, provida de vitrais com desenho feito cetim opaco, o que a deixou paralisada. Uma lindeza só.  Na entrada da porta, à direita, uma mesa pequena detinha um dos raros telefones da época que, para fazer ligações dependia de uma telefonista, anunciando um tempo que, por enquanto, andava devagar.  Feito o registro em sua mente, sentiu um puxão novamente e, ao entrar no recinto sentiu uma clareza não bem identificada. A saleta havia sido arrumada com uma grande escrivaninha em frente a uma janela o qual se destacava lindamente no centro daquela mesa que continha seus alfarrábios de escola,  um armário pequeno e duas gavetas com lápis de escrita e de cor, algumas borrachas e apontador, uma pequena lixeira e um rádio de pilha de longo alcance.

A paisagem que se descortinava da abertura, após os gerânios abundantes do peitoril, era nada mais nada menos do que a entrada da casa de sua avó que todas as tardes vinha lhe chamar para o café da tarde. Neste momento seus cadernos eram empilhados cuidadosamente para assistir as histórias das duas irmãs com uma preciosa xicara de café e torradas com margarina.  Para Maria Flor foi o início da vida entre janelas em que o destino, mansamente, foi apontando, uma vez depois da outra, novas ventanas.

A partir de agora impera a sequência regular dos tantos cenários desfrutados por Maria Flor que, por gosto, precisava ter para si o quadro do mundo exterior sempre a disposição, fosse qual fosse a paisagem, a situação ou a vizinhança. Em um canto da vida aguardava solene e calada a velha mochila de couro guardiã da imperativa e voluntariosa necessidade de se evadir.

A caminhada entre vidraças passou por ruas antigas com o quadro principal topando com um telhado velho, mas não menos interessante. Após, um cenário lúdico com escola de criança em alegre interação, e, mais tarde, bem perto do céu, com o olhar da lua e das estrelas espiando por entre as frestas da veneziana.

Muito depois, a abertura de todas as manhãs veio como um presente da vida e assim surgiu frente a uma nova janela aquele imenso oceano que todos os dias assobia seu segredo, obedece ao vento, se curva à lua, ao sol, a preamar e aos arroubos do alfabeto de Maria Flor.

domingo, 30 de março de 2025

A lágrima

 


Naquele dia eu senti alguma coisa diferente no ar, um sopro que vinha meio fora de sintonia, uma lágrima que escorria do nada, e depois outra seguida de um grande suspiro e um soluçar embargado. Parava para pensar e lembrava que sempre fui assim, choro do e para nada. As lágrimas fazem parte de mim como se fosse qualquer outro órgão que me fornece a capacidade de existir, como se ela fosse alguém que de mim não conseguisse se apartar e também deste jeito tão contumaz opera inconteste para que toda a engrenagem não pare nunca.

A minha lágrima pertence somente a mim, ela não se derrama na minha face e morre no travesseiro, ou na minha roupa de festa, ou na minha pedalada diária porque eu quero, não, ela tem personalidade e vida própria e resolve acontecer simplesmente, como se fosse sua rotina derrubar o que encontra pela frente, variando um pouco sua força e intensidade. Ela também se agranda como um caleidoscópio o vai e vem de tudo e na mesma proporção se ousa diminuta, vez ou outra voluntariosa, nascida para ser.

Meus pensamentos não pertencem a ela, porém ela descobre o que me vai por dentro na instância do sopro inefável da intuição. Ela aposta firme e acerta no que acontece no entorno e, sagaz, já se apruma para marejar assim que os ventos da vida dão solavancos, assim que o mundo se sacode em palpos de aranha por não poder resolver o que ele mesmo criou, assim como entre tantas coisas para acontecer de ruim, justamente naquele dia ensolarado, com tudo para dar certo, tudo dá errado.

Minha lágrima tem poderes absolutos e se verte abundantemente mesmo que eu esteja ainda tentando disfarçar, olhar para outro lado, não me deixar contaminar. Ela vem me dizer que a minha tristeza, deve sim, se deixar derramar pelo mundo porque o sal da vida tentará curar na ardência os infortúnios de agora e, quem sabe, de tantas outras feridas.

Então ando sempre assim, marejada e com a visão turva. Com certo medo vou tateando nas paredes para não pisar em falso, me segurando de certo modo e muito falsamente nos corrimões da vida, me policiando para não dar credito a quem não merece e assim de lágrima em lágrima penso que elas regarão a tristeza de muitos como um bálsamo.

sábado, 29 de março de 2025

Gosto de fel – o Conto

 


Livia Maria amanheceu gelada apesar do calor inclemente, com um gosto acre na boca, uma respiração pausada e com a impressão que havia acordado dentro de uma jarra de limonada sem açúcar, ou sentada no mais alto galho do limoeiro bergamota nos fundos da casa ou - como se não bastasse o ataque amargoso da natureza em seu frágil corpo - submersa em algum liquidificador pronto para trucidar uma penca de maracujá.

A impressão inusitada a colocou em apuros porque largou a pensar o motivo de tal ataque, quando se deparou consigo mesma no espelho e enxergou uma nuvem cáustica a envolvendo aparentemente em perfeita sintonia com o inusitado despertar repleto de contradições.

Não se importou com mais nada disso e foi cuidar da vida quando se deparou com um envelope, roto, largado com descuido em cima da mesa, inclusive um pouco escondido, o que já alvorotou os personagens do início da manhã acionando a infalível intuição de Livia Maria para algo que não prenunciava boa coisa, viesse de onde viesse, de dentro de si ou oriundo dos fios cabulosos, insensíveis e invisíveis do passado remoto, recente, não importa, arriscava ela.

Se aproximou com firmeza analisando de perto o envelope enorme já com uma sensação de missiva improvável, de outro tempo, que estariam ali a serviço do seu escrutínio. Livia Maria lutava para sair do modo ácido que a noite lhe colocou, porém, havia na sequência uma apreensão amarga do que iria se apresentar. Talvez seja este o momento da revisão e descarte, lhe assoprava cuidadosamente seu coração, velho coração.

Achou por bem abrir com cuidado, vai que alguma inspiração com intenção subjacente surja dos alfarrábios, algo nunca pensado, uma solução, um alivio, alguma revelação preciosa surgirá. Ao abrir a aba do grande envelope pardo, o ambiente foi invadido por uma nuvem de poeira semelhante àquela que pretensamente enxergou em frente ao espelho, desta feita, causando uma tontura, um mal estar, um aroma de extermínio e um raro esgar no rosto.

O conteúdo mantinha muito bem organizado pequenos bilhetes escritos à mão e todos bastante amassados, manchado de lágrimas, lido e relido, alguns com aparência de terem sido jogados no lixo e resgatados, outros com borda queimada pelo fogo, em meia dúzia - não mais que isso - algumas gotas de sangue sinistras encobriam parte das poucas palavras grafadas dando o tom de um sofrimento quase perene em alguma época da vida, agora exposto e denunciado pelas missivas esfarrapadas. A letra era bem feita oriunda de caligrafia esmerada com jovial aparência, palavreado caprichado e escrita correta.  Foi servida a taça com o coquetel da repulsa cáustica sem gelo.

quinta-feira, 27 de março de 2025

Uma esquina - O conto

 


Das Dores passou voando as tranças pela rua desconhecida sem muito se deter na topografia, nos transeuntes e muitíssimo menos no comércio uma vez que não precisava de nada. Suas coisas eram substituídas somente quando chegavam ao fim de sua vida útil e isto incluía quase tudo: roupas, sapatos, objetos assim como toda a feição da estrutura da sua casa. Bem montada, aliás. Assim, que praticamente nunca se deparava com vitrines ostentando o que fosse, porque não lhe chamava a atenção.

Neste dia especialmente ela sentiu entre tantas dores da alma e do corpo algo que não ia bem, por este motivo saiu em desabalada carreira colocando seu corpo a se mexer e funcionar centrifugando o mal do seu íntimo. De fato, tentava sempre não admitir que sua rotina rígida sofresse algum revés. Durona, caminhava sem olhar para os lados, pois há um tempo bastante longo, depois de ter enfrentado uma situação inusitada que lhe deixou vazia por dentro sentiu que sua alma e seu corpo ardiam com aflições do mundo, tal qual o conceito do seu nome.

Seguiu em frente optando por um caminho desconhecido, pois talvez em outras esquinas o vento e o calor fossem mais brandos proporcionando mais prazer que sofrimento a empreitada, da qual, já estava um pouco arrependida. A cabeça lhe doía, os olhos marejados atrapalhavam a visão e os calcanhares sentiam as pancadas.

Enxergou mais adiante uma ruela muito simplória e pacata, desconhecida até então para ela que circulava por ali quase sempre, mas lembrou-se rapidamente que ela havia se imposto aquele modo de andar para frente sem se distrair. Por conta deste cansaço e de certa indisposição pelo arroubo em que se jogou à rua neste dia ensolarado decidiu caminhar mais pausadamente e assim, ao dar passagem a um raro pedestre e retomar o caminho tropeçou em um cavalete que ostentava uma aquarela, na calçada, junto a uma vitrine encantadora, que de imediato não lhe prendeu o olhar.

Estancou o passo ao ver-se diante de uma tela que ocasionou genuíno furor em sua alma se apercebendo que aquele painel, no meio da calçada, retratava o mapa perfeito de eventos passados em sua juventude.

Lembrou imediatamente das tantas vezes em que visitou uma saleta exígua e repleta de tantos cheiros, cores e materiais como nunca mais em sua vida experimentou. Entrava no clima de arte com uma postura tão tímida e calada que praticamente se tornava invisível em meio aos apetrechos e, deste modo, quase nunca sua presença transparente e vaga era notada.

De outra parte, o artista, Prudêncio Leme - tão jovem quanto ela - se absorvia na lida com seu colorido arsenal que praticamente não levantava a cabeça para nada. Nem para criar. Sua inspiração vinha do seu foco na tela vazia enquanto Das Dores perambulava incógnita analisando as historias mudas contadas com tanto capricho e detalhamento.

Esqueceu-se de suas dores, de sua pressa e do jeito de andar para continuar ali, de pé, em meio ao passeio público perscrutando aquele sinal que, para ela, parecia um bilhete. Atenta, examinou com cuidado o traço tão familiar e depois, um a um, os elementos que compunham a peça. Todos eles eram íntimos e agora, com a viva lembrança sentiu a fragrância de tinta fresca, a fumaça do cigarro assim como a disposição dos objetos que eram jogados de qualquer jeito como se houvesse muita pressa em adentrar no recinto. Percebeu nitidamente que conhecia as telas ali retratadas assim como a cadeira antiga que tinha por missão receber os itens que o artista utilizava em seu vai e vem diário. Tudo era colocado como que por acaso, porém, depois de um segundo olhar era perceptível que havia uma fantástica sintonia na acomodação da traquitana distribuída para contar o que fosse. Das Dores passara muitas horas tentando ler os recados e decifrar as fábulas do autor, mesmo sem saber que o fazia.

Um dia, as portas do lugar se fecharam e não houve em nenhum palmo do lugarejo quem pudesse saber o paradeiro do mentor de tantas preciosidades. Das Dores perdeu um pedaço de si mesma com esta ausência.

Ao lembrar-se do fato e saindo de sua viagem ao passado, achou por bem levantar o olhar para a vitrine que resplandecia na luz do entardecer com muitos desenhos coloridos, alegremente desarrumados. Encantou-se e ficou ali, tragicamente hipnotizada sem noção do passar do tempo. Prudêncio Leme chegou à soleira da porta para recolher o cavalete e então percebeu a presença de Das Dores.

domingo, 23 de março de 2025

Escreva

 

Nem bem nasceu o dia recebo aquela chuva de letras como se o alfabeto forçasse as tramelas de portas e janelas vindo direto ao meu pensamento ainda preguiçoso na madrugada. Além destes personagens que adoram se enganchar um no outro formando todo o tipo de conversa, do bem e do mal e do mais ou menos, os números veem a reboque e acredito piamente como os grandes torturadores do dia.

A contagem começou, a verborragia só está aquecendo os motores e assim entramos no dia submergidos em letras, números e toda a companhia intrincada que eles conjugam assim que acordamos formando fonemas simplórios que apenas querem fazer sentido para o pensamento, a criação, o verbo.

Esta turminha não vem silente, vem como se fosse um algoz para quem tem nas veias o bom trato com computador, a caneta que dia sim outro também, arruma a escrivaninha metodicamente colocando páginas em branco a serviço do rascunho, apontadores e lápis devidamente ajustados na ponta fina, borracha bem grande para derrubar um ou outro desatino no vocabulário e assim está completa a  batalha campal entre o desejo e a inspiração – esta tirana – que brinca de esconde esconde com as distrações diárias que enfrentamos.

Escrever todo dia apenas uma ou duas frases que traduzam um sentimento para o amanhecer, ou o entardecer, trazendo um norte para ações na sequência, tirando a mente de pensamentos enfarpelados como as ondas de um mar bravio desbravando a folha em branco que inocentemente aguarda tornar pública uma prece, uma desculpa, um poema, um bilhete, um pedido de socorro, uma fala divina.

sábado, 22 de março de 2025

Doar sangue, um conto em três tempos


José Mario ficou surpreso com a noticia que o seu pai - já bem idoso - estava internado e necessitando de sangue com premência o que já correu um frio na espinha porque sabia muito bem o temperamento do pai quando algo ou alguma coisa se instava urgente. Largou tudo o que fazia e o mais que tinha pela frente e correu sentindo-se um verdadeiro lutador porque a figura paterna era, sem sombra de dúvidas, tudo o que ele tinha de mais sagrado. Nem se inteirou muito da situação, já foi estendendo o braço fazendo fluir aquele  sopro de vida, resignando-se a enviar com estas gotas as suas parecenças. Ele tinha certeza que junto ao fluxo estava indo, sorrateiramente, bem grudadas, suas alegrias conjuntas no futebol, suas gargalhadas na cozinha, o mate amargo e em silêncio de todas as manhãs e os olhares cúmplices frente ao destino.

Maria das Dores chegou reticente ao hemocentro. Havia recebido uma mensagem para que comparecesse com urgência no Hospital porque sua mãe necessitava de uma transfusão de sangue. Fazia muitos e muitos anos que as duas não se cruzavam e de um lado a filha entendia que estava tudo bem e com certeza de outro a mãe escondia as aparências. Enfim, o certo é que agora nem uma nem outra sabia direito o que se passava e ali estavam unidas pelos laços de sangue. Antes de seguir o procedimento Maria das Dores pediu para ver a mãe e ao se defrontar com ela sentiu como se houvesse rompido algo dentro de si, como se tivesse virado do avesso e esta sensação chegou através da incrível semelhança dela com sua genitora. Acomodou-se na cadeira, estendeu o braço, chorou e pediu misericórdia a Deus.

Tina se encontrava bem atrás do portão com fraca tramela e que separava os daqui e os de lá. Os ditos parentes se aglomeravam no interior da pequena sala de recepção do Hemocentro causando uma balburdia surda e um empurra-empurra querendo, cada um, chamar a si a responsabilidade de ser o herói que vai tirar Tina daquele lugar incerto, mas que possui a luz da esperança. Nenhum deles queria que aquela mulher encarquilhada se fosse desta para melhor porque ela havia sido a mãe de todos, o logradouro universal daquelas almas abandonadas, a fortaleza de crianças que, justo ao nascer, ficaram sem destino. Não seria possível que esta mulher forte como um touro fosse se mixar por lhe faltar sangue. Por fim, formaram uma fila extensa iniciando a coleta com o pensamento focado no tanto de amor que estava se esvaindo por aquelas agulhas, tubos, garrotes e bolsas coletoras. Quem sabe um abrir de olhos efêmero.

sexta-feira, 21 de março de 2025

Fermento ‘Clarinha”

 


Eu andava por aí, navegando no fio da navalha dos cabos intergaláticos da vida, buscando em um dia e outro também palavras, virgulas, letras, até frases inteiras para compor minha faina diária de colocar no papel da memória, e, na sequência, na tela do mundo o corriqueiro diapasão dos meus escritos.  O vale tudo na pesquisa inclui olhar com lupa quem se interessa pela obra desconhecida, diga-se de passagem.

Em meio aos descaminhos dos cabos invisíveis que nos rodeia, nos prende, nos monitora, vez ou outra aparece de dentro deste ninho um conhecido, um amigo de antanho, um incógnito que quer se fazer conhecido. Aparentemente não é somente em trilhas arrevesadas que navegamos e assim surge uma amiga que não vislumbro a pelo menos 50 anos (por baixo).

Vou chama-la de “Fermento Clarinha” uma vez que ao se deparar com a minha escrita se transformou no espalhador da minha obra - modesta – e resolveu amplificar pelo mundo todas as letras, as boas, as más, as dissonantes, as tristes, e se foi porta afora com o megafone no cabeamento que lhe é pertencente.

Surpresa e animada com o encontro fui desenterrando histórias, areando minha memória, exercitando a comunhão de ideias e pensamentos e então o milagre do “Fermento Clarinha” aconteceu. Houve a correta opção dos ingredientes imprescindíveis para que este fato se expandisse entre os escolhidos.

E lá se foram ao mundo minhas palavras, algumas enganchadas nas ondas do mar, outras voando como areial durante os ventos costeiros, muitas fugindo como foge o ladrão da polícia, outras correndo como uma criança em cima da bicicleta, milhares acompanhando na sombra do guarda sol em dia de verão ou do outro lado, lutando com o vento que inverte o guarda-chuva nos molhados dias invernais. Nestes últimos dias os satélites do mundo conheceram o “Fermento Clarinha” que não existe em nenhuma prateleira de mercado, mas sim, no coração de muitos.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Outono

 


A natureza anda parecida comigo nestes tempos de mudez completa do entorno em que se ouve a passada da formiga trabalhando no seu formigueiro aceleradamente para hibernar. Ando ensimesmada e com passos lentos talvez tentando aproveitar este momento único que surge todo ano por aqui nos altos do fim do mundo, frente ao mar, que se configura na estagnação de toda vida natural e assim lá vou eu acompanhando.

Vou na trilha costumeira somente observando que as árvores, em primeiro lugar, estão caladas e inertes nos seus arroubos de brotação aparentando uma palidez em suas folhas e caules trazendo um conforto visual que é um bálsamo para quem recebeu a claridade fogueteira do sol nos últimos tempos. Ele, aliás, o Rei Sol, anda metido a queimar a mufa, porém, acredito que logo vai passar este destempero de Rei.

A beira mar anda traindo seus moradores e se revela maldosa pintando suas águas de marrom glacê, invadindo as areias até bem perto dos cômoros levando consigo na carona os incautos mariscos que, inadvertidamente, se engajaram na espuma barrenta no maior divertimento. Não perceberam que não haveria carona de volta e, com este descuido, perderam a vida ficando para trás com a barriga aberta secando ao sol. Talvez seja um melhor fim do que perecer na ponta de um anzol.

O vento anda escondido entre uma brisa ou outra mais gelada treinando para soprar sua fúria quando o inverno vier. Por enquanto ele está apenas treinando a velocidade, demonstrando que este nosso clima exuberante tem tempo para tudo.

sábado, 15 de março de 2025

Entrevejo

 



Hoje decidi que não vou articular nenhum som, nenhuma opinião que seja verdadeira ou suspeita porque neste dia morno e quieto o interior borbulha e como não sou de grandes arroubos me manterei discreta apenas com os olhos em funcionamento. Como eles são o mirante da alma será por intermédio deles que terei para mim as melhores imagens filtrando com maestria o que virá pela frente. Também não pretendo olhar muito ao alto, nem ao lado, sabendo de antemão que os meus pensamentos poderão se contaminar com o azedume ameaçador que paira no ar como nuvem ameaçadora e sinistra.

Também estou liquidando com o olfato preferindo um tecido leve com aroma de almíscar para acompanhar minha passada que, neste momento está em recuo, buscando em desespero outro lugar para pousar minhas intenções. Todas elas vestidas com uma finalidade que não faça do dia uma sombra.

O sentido de ouvir neste dia esquisito tomou outro rumo porque senti a necessidade urgente de apenas ouvir o que parte da minha alma, dos ditos do passado, das falas de ontem, do modo impróprio de expressão de aqui e ali, do dito, do não expressado, do respondido, do ocultado. Vou assim permeando meu sentido em entremeio cuidadoso enquanto meus olhos peregrinam por este dia que veio vestido de mistério.

domingo, 9 de março de 2025

Aquela noite

 


Acordei de repente visto que o silêncio ensurdecedor do lado de cá do mundo veio dar seu recado, faltando, inclusive, o som da passarada na janela, o latido morno da cachorrada de rua, a carroça do catador, o caminhão do lixo e os praieiros da arruaça etílica do verão. Nenhum destes personagens mostrou a cara nesta madrugada quente – ainda – e mais calma que água de poço.

O dia clareia mais tarde, brindando os madrugadores com o manto da noite espalhado, sonolento, quieto, acreditando que aparentemente o modo de vida do lugar está vazio da balburdia mas, cheio de indagações, feridas que se abriram, ofensas que surgiram, rebuliço generalizado por uma coisa ou outra com uma ou várias gavetas da alma abertas e sangrando. Este tempo sempre foi dos excessos e “non sense” e agora que a farra se foi a noite divina surge como um bálsamo de cura restabelecendo a rotina de paz do lugar.

Assustada pelo modo lúgubre que o dia se anuncia desço descalça e vou à rua pé ante pé rumo ao mar, também mudo e escuro, para assistir sua entrada no dia. Não preciso acordar a natureza que está em claro conluio com os Astros  Reis da Praia e sigo em frente. Por algum motivo, ou outro ou nenhum meu pensamento tomou a cor da noite estabelecendo uma pungente aproximação com o que estava por vir.

Importante abrir meu coração e revisar o que entrou indevidamente, o que foi renegado e o que pode daqui para frente me engrandecer. Acredito piamente que a fala da minha alma com quem nasce tão quieto irá me dar a resposta que necessito. Uma dúvida na noite escura.

sábado, 8 de março de 2025

Dois perdidos

 


Na primeira vez me chamou a atenção um pé de sapato solitário e pungente encostado nas areias da beira da praia. Era um pé masculino e devia estar no fundo do mar havia algum tempo, a se confirmar seu aspecto, e assim me dei conta em encontrar mil achados para o perdido. O pé de sapato era de couro preto com grossa e borrachuda sola, acampado entre as areias, mariscos, caranguejos e tatuíras defuntas há muito.

Acabei por pensar que poderia pertencer a um macho marinheiro ou pirata de todos os mares de antanho que em uma briga o tenha remetido a alguma cabeça mais desavisada.  De pronto me pareceu ouvir as passadas fortes do homem autoritário que se fazia atender através da sua pesada marcha que o calçado abrutalhado lhe conferiu. A peça, que parecia ser de pé esquerdo não estava rota, mas revestida de uma divertida camada de precioso e verde musgo marinho que proporcionava uma visão cabeluda, levemente sinistra.

Talvez tenha escapado do pé do seu dono em uma farra etílica, em uma briga do macharedo por um rabo de saia ou jogado ao mar pela mulher traída que o surpreendeu agarrado em outra cintura. Pode ter ocorrido uma tempestade de alto mar e o sapato se desgarrou do corpo ou o corpo se esvaneceu restando apenas o heroico calçado que agora resta solitário na beira da praia

Da segunda vez foram os pedais que me alertaram em plena Estrada do Mar para um calçado feminino jogado na vala. Tinha um salto alto, bico fino, preto e com laço dourado, novo ainda. Era delicado e assim me pareceu que poderia ter sido sua última noitada, calçando a senhorita fogosa e faceira que em passos de dança aproveitou a noitada e depois rodou de volta em doce passeio na Barra Forte do amado, a quem se enlaçou na cintura com delicadeza para se equilibrar. As duas pernas para o mesmo lado como convém a uma dama, com o scarpin brilhando ao luar sem sequer ser percebida sua perda que ficou jogado na macega à luz da lua. E assim vemos dois perdidos, macho e fêmea, que nunca se encontrarão.

sexta-feira, 7 de março de 2025

Dando o recado

 


De repente, não mais que de repente o sol se deu conta que havia chegado a hora de estancar sua fúria por sobre a gentalha que nasce dos buracos de areia da praia, que surge dos cômoros, que arremete sua tralha para todos os lados, que coloca o pé de cidade ansioso no caminho livre, no bloqueado, não importa.

Com um certo sentido de vexame resolveu arrefecer sua claridade, esmaeceu sua cor passando para um matiz aguado, sem tintas fortes ao nascer no mar e ao deitar-se na serra, sem romper a barreira do destempero que, cá para nós, estava assolando sua personalidade de Rei. Esqueceu até que sua luz açoitava sem dó os gramados, as flores silvestres, o lombo do idoso, as lagartixas, as baratas, e todo o mundo particular ao rés do chão.

A pouca gente que colocou a cabeça para fora depois de uma boa temporada de escaldo animou-se e foi brindar o vento que soprava receoso e as ondas do mar bem baixinhas, parecendo que toda a cautela é pouca em relação aos arroubos do Rei Sol neste veraneio. A cachorrada saiu de dentro do matinho se jogando no córrego para aliviar a sede e se foi a passo por entre as árvores procurar seus protetores de rua.

Na beira mar aquele silêncio obsequioso dos ficantes da terra abençoada não havendo nem sombra do olá escandaloso que permeou a costa nos últimos meses, as ruas se aquietaram e louvaram o Rei Sol, que saiu do modo fúria, o vento soprou tranquilo com certa sonolência e o mar abraçou delicadamente quem honrou sua maré logo cedo. A natureza marítima descarta a preamar e segue triunfante no seu destino.

A primeira janela – O conto

  Amaryllis governava aquela casa antiga com primor tendo ajuda de pessoas que exerciam as tarefas como se fosse um sacerdócio, uma venera...