terça-feira, 2 de setembro de 2025

A espreita

 


Valter havia acordado cedo naquele dia porque estava pensando na Maria Estela, aquela moça da esquina que lhe chamava a atenção por ser – ou parecer – delicada e muito tímida o que lhe causava uma ansiedade fora do comum, talvez por ter um temperamento que navega por todos os humores causando, muitas vezes, uma certa estupidez ao tomar algumas atitudes. Por este motivo, hoje, mesmo com a possibilidade de estar na janela para ver a moça passar ele resolveu que tentaria frear sua ansiedade fazendo pausas entre um suspiro e outro cadenciado com o seu coração.

Com este pensamento em mente tentou entender qual seria a importância de ver a moça passar sem poder alcança-la para uma prosa já que a timidez dela invadia sua mente e acontecia um suspense dentro de si que travava suas pernas, embaçava os olhos, aturdia seu coração que ora quase parava, ora acelerava sem controle. Resolveu sair da janela e sentar no banco de jardim, bem perto do muro, ficando à espreita, olhando vez ou outra para o relógio, imaginando que ele deveria avisar o grande momento em que ele despertasse para abordá-la.

A espera se alongava, seus olhos iludidos fazia a rua parecer muito maior do que realmente era e, em seu pensamento, aguardava o momento certo para lançar-se a sua frente, acenar, talvez assobiar e, finalmente entabular a conversa. Valter lutava para conter o devaneio que o invadia todos os dias na mesma hora. Hoje decidiu que iria ao encontro de Maria Estela como se fosse o herói da rua, lhe faria uma pergunta boba, uma conversa fugaz sobre o tempo e na sequência pediria para lhe acompanhar. Encorajado pela expectativa de finalmente dar o primeiro passo colocou-se do outro lado do muro ajeitando seu melhor sorriso e após todo este prumo, ao levantar a cabeça, estava em frente a Maria Estela.

domingo, 31 de agosto de 2025

Contas a pagar

 


Neste domingo ensolarado um certo incomodo me levou a não mostrar a cara além do meu quadrado, e, atropelada por este motivo bobo me lancei a examinar as minhas contas que estão todas arrumadas por assunto, dia, mês e ano em um gavetão que escondo embaixo da escada. Para minha surpresa assim que abri o lugar dos guardados a montanha de papel que eu esperava vislumbrar não estava exatamente onde as deixei me causando um certo calor e uma leve tontura de susto ao perceber que a gaveta dos quitados estava vazia.

Ativei minha memória afiadíssima aliás – desnecessário dizer o motivo – e comecei a lembrar quais dados participaram desta organização primorosa dos meus recibos da vida e que tive o pendor de deixá-los organizados e, deste modo fortuito, ter a oportunidade de revê-los. Fui puxando o fio para entender quais assuntos que eu pretendia me debruçar e estranhamente percebi que nenhum deles envolvia montante algum. Me dirigi a um móvel que possui muitos escaninhos, tal qual a minha alma, para verificar se por um lapso de organização eu havia depositado o que procurava por ali.

Ao abrir o primeiro compartimento me deparei com uma anotação que se referia a um bilhete do meu pai que prometia me dar uma bicicleta em mais um menos um ano. Lembrei comovida que esta divida havia sido quitada com honra por ele e, assim, recebi minha bicicleta nova de um tamanho para uma menina maior. Sorri e o guardei de volta.

Passei ao segundo escaninho e lá estava o meu diploma de formatura da Aula de Datilografia pendurado na parede de uma pequena peça em minha casa de infância que minha mãe havia montado para mim, constando de uma grande escrivaninha, uma maquina de escrever e um rádio de pilha. Foi ali que passei meu tempo de menina pequena, maior e já mocinha não cessando nunca de agilizar meus dedos em simples folhas de papel e cadernos. O incômodo da manhã me pôs de joelhos frente a Deus que me deu a Vida.

 

 

 

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

Luz difusa

 


Perdi o gosto por tanta coisa que tudo se confundiu dentro de mim e anda bem difícil que eu consiga entabular aquela conversa interminável comigo mesmo frente ao espelho havendo, para mim, duas certezas: já sei a resposta ou invento alguma coisa para acabar com a fala desabrida naquele momento. Aproveito e coloco no meio deste diálogo de si para si algum cinismo, uma piada boba, um comentário filosófico retirado do boteco da esquina fazendo assim um retrato falado das minhas invenções diárias.

Resolvi então listar as coisas que eram importantes para mim e que me deixaram como se tivesse havido um bafo de maresia e o resultado foi o deserto da minha alma aflorado e imperceptível a olho nu. Agora tenho a opção de sair da frente do espelho utilizando artimanhas de que disponho quando uma grande inapetência me invade.

Não demorou nem um minuto para aparecer frente a mim aquela amizade de tantos anos que a distância empanou no tempo deixando perdido o que restava da intimidade, das risadas, dos passos acelerados e convivência com intuito lúdico e travesso assim acontecendo sem se perceber, tal qual a brisa repentina vinda não se sabe bem de onde.

Na sequência deste raciocínio surgiu a figura de um lugar que até hoje reverbera em suas paredes histórias de outro tempo, quando a juventude foi arrefecendo cautelosamente, os laços do entorno perderam força, as falas emudeceram, os braços inertes caíram ao lado do corpo acompanhados por um olhar que tentava enxergar ao longe, muito longe.

Por último ele apareceu e iluminou minha alma deixando um perfume no ar, o tom de voz, a boca ensaiando um sorriso exatamente como devia ser em algum tempo. Mas, assim como tudo o que eu perdi o anseio, este efeito se evaporou na luz do espelho.

Me dei conta que depois desta reflexão meu paladar se apurou, coloquei o espelho atrás de mim, pintei um novo cenário a minha frente e considerei receber uma conversa qualquer, um espaço diferente que pudesse, desta vez, abrigar apenas um abraço em meio ao abajur de luz difusa.

terça-feira, 26 de agosto de 2025

Arriar a vela

 


Pensei muito a respeito deste assunto, se eu devia ou não me arriscar a fazer remoção do entulho que com o passar do tempo vai se avolumando na vida como craca em casco de embarcação, e que, para solucionar, somente arriando as velas, suspender o barco e trabalhar. Ao observar o assunto por esta perspectiva animei-me, porque anda me parecendo que pelo andar da carruagem dos viventes, está se acumulando no entorno do calendário que ora se apressa ora se pasma tanto organismo estranho que somente arriando o modo de vida costumeiro para que haja uma dedicação criteriosa no aparamento. 

Não foi difícil dar baixa nos incômodos que se postam em frente como se fosse grande coisa, como se fosse executar um arrasta quarteirão na rotina, como se achasse que a partir dali tudo muda enquanto que a única certeza é a volta do original, a limpeza do excesso, o brilho do que jamais deveria ter ficado oculto. 

Nesta barcaça sentimental que resolveu aportar na soleira da minha porta como se esta fosse um porto seco decidi - com muito capricho - lavrar o excesso que por certa preguiça ou comiseração deixei entrar limite adentro. Eu sabia que o fútil, o chato, o supérfluo e a antítese se instalaram com facilidade porque deixei as velas flanando em abertura espetacular sob os ventos de verão e me distraí olhando para outro lado. 

O arriamento não chegou por acaso como as chuvas de verão, a calmaria do outono, os ventos da primavera, e o “fog” do inverno. Não, vieram porque por algum motivo oculto as aldravas da vida ficaram abertas e sem proteção facilitando a entrada do não desejado por princípio. 

domingo, 24 de agosto de 2025

Sapato velho

 


Resgatei do fundo do armário aquele sapato roto que eu havia escondido na mais alta prateleira e que possuía um formato antiquado, surrado, que o deixava fora de combate aos meus pés no alcance da rua. Ao examinar o calçado com mais detalhe lembrei de sua serventia em tempos antigos e decidi que o deixaria ao sol para tirar a umidade entranhada pelo tempo em que esteve no cativeiro, passaria uma graxa incolor que o deixaria luzidio e bonito mesmo estando com desgaste, trocaria os cordões de amarração e os ilhoses, além de forrar com papelão sua palmilha esburacada.

Fiquei reflexiva ao vê-lo ao pé da cama a postos para receber meus pés cansados, aquele antigo calçado que havia me conduzido, secretamente eu acredito, a lugares que oportunizaram encontros que me fizeram ficar diferente, mais pensante em tantas coisas, mais equilibrada em outras e igualmente em tantas outras ocasiões, sem rumo. Lugares estes que releguei a um canto escuro sem jamais revisitar.

Foi assim que um tanto indefesa em relação a qual passeio escolher, meus pés mergulharam naquela estrutura amassada que rescindia a conforto, deslizando suavemente para um interior que se mostrou delicado e morno. Me encorajei e engatei a marcha, quando percebi com espanto que neste exato momento eu estava calçando aquele sapato como se fosse a primeira vez, com sua estrutura nova, a lona que compunha o artefato estava em perfeito estado, os pespontos tradicionais intactos, cordões com ponta de alumínio brilhando ao sol assim como seus ilhoses e o par parecia muito seguro para onde me levar.

Me veio à mente que estava havendo ali, naquele instante um resgate de emoções em relação a história relegada de forma involuntária em outro tempo e agora estes fatos esquecidos atiçaram minha intuição que, aos poucos, me carregou a um reencontro do meu íntimo.

sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Roubo da alma

 


Foi sem sentir que ocorreu a subtração ou pelo menos eu não notava que estavam me tirando algo, surripiando de dentro de mim coisas tão importantes que provavelmente eu não poderia viver sem elas, aliás, nem cogitar ao meu próprio pé de ouvido eu ousaria. Parecia um processo descontrolado ao qual eu não tinha poder para tomar conhecimento real, assim como de modo nenhum poderia interferir. A sensação era de estar dominada por algo muito mais forte do que eu, da minha vontade e da minha capacidade de decidir sobre mim mesma.

Ao perceber este movimento insano com os meus sentimentos, meus valores, minha rotina e o mais profundo da minha alma me coloquei em guarda para ter apenas a possibilidade de observar o que acontecia e assim o tempo andou celeremente fazendo as tais mudanças e eu ali, no meu observatório particular sem entender direito, mas achando interessante aquele descarte de mim mesma sem que eu autorizasse.

Compreendi que o afano se concentrava nos assuntos que me causavam aborrecimento, mas eu não entendia que os pudesse tirar de mim porque os mesmos faziam parte da minha vida, porém ao pensar com mais vagar dei-me conta que estes mesmos que agora estavam em movimento eram justamente assuntos que me revolviam o estomago, que me dilaceravam por dentro, que me tiravam o humor, que me faziam ser quem eu não desejava.

De um momento para o outro, de tanto ficar olhando o que acontecia sem me meter, de ter os olhos abotoados para o que me passava em frente achei por bem olhar o que ficou porque me pareceu que o movimento havia cessado e o pouco que restava, para meu assombro, dentro da minha alma, é o que eu sempre fui.

Ali estava minha essência aflorada, reinando sozinha, deixando à tona minha alma sem conflito com poder de escolha equânime em relação aos acontecimentos da vida inevitáveis. Depois do roubo do excesso, o singular figura com toda a simplicidade e vai desdobrando para mim tudo o que ando querendo fazer e ser, colocando como prioridade as simplicidades do cotidiano que se consegue sem esforço extra, sem ocultar a personalidade, sem disfarces e sem esconderijos.

 


quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Do avesso

 


Ao enfunar minhas narinas na densa maresia desta manhã tive a ideia de trair a rotina e buscar um caminho diferente deste que sigo todos os dias não largando mão das ondas do mar, do vento e do sol, quando este resolve dar o ar de sua graça. Vou enveredar por outra esquina, uma que me traga um tempo que seja de frente para trás, que possua outras cores, outras pessoas, e caminhos diversos do que eu já trilhei até agora.

Antes de bater a porta atrás de mim resolvi que hoje eu iria - hoje mais do que ontem – desvestir-me da realidade que me rodeia, me aborrece, me envelhece, me tira do sério e sequestra meu sorriso. Esqueci o velho Avatar em uma mala antiga porque ele, para mim, não tem serventia e urge, agora, que eu crie uma nova persona para a empreitada que pretendo singrar nesta manhã quente e ensolarada.

Vou virar do avesso para ver se encontro alguma coisa melhor do que anda por fora e por este motivo importante vou procurar uma fantasia que me cubra por um tempo e me transforme numa desconhecida andando pela rua, exibindo um naipe diferente e com poder de gargantear a história inventada como verdadeira fosse, a mania de falar a verdade, o cacoete de engolir em seco, o mutismo na hora de fazer alarido. E foi assim que me joguei em meio ao jogo da vida, este mesmo que ando renegando, que faço salto de altura e driblo o que não encontra guarida em mim. Parti deste jeito mesmo sem data de retorno.

domingo, 17 de agosto de 2025

Perícia

 


Estou achando que tem muita coisa misturada por aqui me confundindo na escolha do que eu quero fazer, o que prefiro olhar, com quem falar, aonde ir e mais mil coisas do meu dia. Por este motivo fútil resolvi inventariar metodicamente os minutos diários que, para meu desespero, ora se aceleram que me perco no tempo, ora se arrastam me fazendo imaginar que nem estou mais aqui, que virei uma estrelinha e fui parar entre as Três Marias que estão sempre me espiando da janela.

Não sei bem direito por onde começar a seleção e, já de cara, me recuso a ir até o meu amigo Mar porque afinal, ele está sempre na minha frente, nos meus olhos e nos meus ouvidos e acaba sendo o mote de tudo, ou quase tudo que resolvo investigar, seja dele mesmo seja de dentro da minha cabeça oca.

Vou dar as costas a ele e aprumar meu passo desta vez rumo a serra que tem seus córregos passando frente a mim, em algumas ocasiões cristalino, em outras manchado, assim como a vida da gente. Olhando para lá percebi que será difícil investigar seus indícios por viverem em delicioso emaranhado.

Me joguei para a rua de lupa em punho e o que me veio foi a vivência dela de todo dia com os idosos a par e passo, os cachorrinhos puxando pela coleira seus donos, o quero-quero berrando a plenos pulmões e como não poderia deixar de ser, ao longe o som de uma eterna serra elétrica, o bati-bum de um carro velho passando pelo pessoal que carrega seus pets em carrinho de bebê. Pronto, pensei, aí estão todos os minutos garimpados.

Foi assim que eu descartei do meu dia o avesso do que eu procurava e gostaria de desfrutar. Entrei na casa deixando a lupa de lado e fiquei animada com a perspectiva de, ali mesmo, tão pertinho, encontrar o motivo real do meu tempo se organizar, ora apressado ora calmo imitando o tic-tac do relógio da casa que conta as batidas minuto a minuto do meu coração.


sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Devaneio

 


Me deparei com uma casa localizada na virada da esquina que exibe uma arquitetura peculiar assim como a sua pintura em tom interessante. A residência é atraente e possui um lindo jardim com mobílias próprias para estarem na intempérie, um ajardinamento impecável onde todas as suas plantas e flores são modernas e crescem vertiginosamente portando cores inventadas pelos peritos em jardinagem, em poda e em florescimento ao receber ingrediente mágico e transformador.

A passarela que conduz a porta principal, imensa, recebeu uma configuração asseada com um gramado sintético brilhando como seda de ponta a ponta, provavelmente para que não haja rebordosa de bichos e insetos se acasalando no solo, atrapalhando o asseio proposto. As árvores todas são nanicas pois receberam a poda para que assim se mantivessem fazendo companhia a todas as flores e arbustos renascidos. A sombra é fornecida por tetos de acrílico de grande resistência e possui a tarefa de proteger o espaço do sol, do vento e da chuva.

Depois deste banho arquitetônico estético voltei para casa, coloquei a chave na fechadura abrindo a porta de par em par, me sentando num cantinho, tendo uma visão ampla de onde eu vivia, como organizei o jardim, as flores, a grama, a sombra e os canais de vento, sol e chuva. Fui além, passando os olhos na mobília, na louça, nos enfeites, nos livros, nos chinelos.

Resolvi fazer uma inspeção iniciando pelo portão da casa, de ferro antigo com arabescos impecáveis e que me causava muito orgulho e, na sequência, deslizava na minha frente a escadaria solene e altaneira. Continuei o passo a passo e me deparei com o ajardinamento de um gramado extenso que, neste momento, após uma breve chuva de verão, recebia o passeio de caracóis, formigas e pequenos habitantes que transitavam pela terra preta e molhada. Mais adiante iniciei o caminho de roseiras, margaridas, orquídeas, onze horas, todas desorganizadamente coloridas ainda brilhantes do molhado da noite. Após um breve devaneio por um lugar estéril refiz meu compromisso com a vida de agora.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Patuá e a Reza

 


Encontrei este Patuá no meio da rua e fiquei pensando como este símbolo da sorte se perdeu nesta inoportuna sarjeta, em meio a areia da praia coberta de folhas secas multicoloridas que imperam no inverno, pinhas minúsculas dos pinheiros abundantes, deixando apenas à vista um brilho exíguo de metal, de cristal, de laços de fita, de correntes delicadas. Sentei na beira da calçada para descansar o lombo e aproveitei para esticar a mão e resgatar aquele Patuá que estava parecendo um entulho surreal sem serventia.

Um pouco incerta e com calculada cerimônia o tratei com reverência, afinal, ali constava vários ícones de bons augúrios que se misturavam ritualisticamente dando a entender que este punhado de mantras enganchados possuía um destino comum, um propósito nobre, um recado em uníssono buscando, quem sabe, chamar a atenção de algumas ou muitas almas que se perderam dentro de si e agora, sem norte, sem energia, sem luz, vagam como singelos fantasmas.

Fiquei imaginando que cada um daqueles símbolos representava uma liquidação, uma reza, um pedido de talvez uma ou muitas impossibilidades que se apresentaram na vida de alguns. Poderia ser uma criança com sonho de ter sorte na vida futura, uma mulher com reza forte para encontrar seu amado, um homem com pedido de proteção para sua família, um idoso implorando um mantra diferente todo dia para lhe dar força na caminhada final.

O Patuá, ao encontrar ali, quase no chão escuro tantas referências, renovou o olhar para além das coisas, chacoalhou a areia da praia do seu corpo emaranhando, soltou seus frágeis arreios dando brilho a todos que ali foram se misturar para se encontrar na Reza.

A espreita

  Valter havia acordado cedo naquele dia porque estava pensando na Maria Estela, aquela moça da esquina que lhe chamava a atenção por ser – ...