Amaryllis governava aquela
casa antiga com primor tendo ajuda de pessoas que exerciam as tarefas como se
fosse um sacerdócio, uma veneração pela preservação, pela ordem, pela boniteza,
pela natureza entrando pelos olhos e se afundando em cada canto da casa que rescindia
a flores, folhagens e terra fresca. Colchas de crochê finamente elaboradas
pelas avós enfeitavam as camas, as poltronas, as mesas de refeição. O assoalho
de madeira maciça onde ecoavam as botinhas de couro das meninas, os tamancos do
rapaz, o salto alto da dona da casa finalizando com as botinas do esposo eram
cobertas por tapetes que abafavam o vai vem dos moradores e a faina diária do
casarão.
As aberturas muito antigas -
tanto portas quanto janelas – arranhavam estranhamente ao se abrir e fechar
parecendo ávida para expor o ambiente externo e trazer para dentro da rotina da
casa sua vida de início da manhã. Se entreabre para o mundo, em sussurros,
assuntos de todos os tempos, passarada em alvoroço, ruídos da rua na manhã
brumosa quando os personagens diários que frequentavam a madrugada vinham dar
seu recado. Assim se ouvia o leiteiro, o padeiro, o capataz, o entregador de
fruta e o carteiro, este se equilibrando no cesto de muitas missivas dirigida
todos os dias àquela casa. Era chegada a hora de se debruçar nos janelões
centenários onde figuravam floreiras impecáveis onde em cada palmo de terra
exíguo se exibia uma espécie diferente formando um canteiro de flores aéreo ao
redor da construção.
Neste momento encontramos
Maria Flor que transitava neste ambiente com brejeira curiosidade levando para
todo canto sua traquitana de estudo e de brincadeira sendo este ambiente
quente, afetuoso e amplo que lhe deixava muito a vontade para expandir sua fantasia
de menina. Menina essa mais quieta, de pouca fala, um pouco amuada, de muitos
olhares e percepção aguda. Nem sempre lhe seria favorável esta condição, mas
naquele tempo ela não tinha conhecimento disso.
Em um memorável dia Amaryllis
tomou a mão da menina e a levou para um pequeno quarto no centro da casa, quase
escondido, com uma porta monumental, provida de vitrais com desenho feito cetim
opaco, o que a deixou paralisada. Uma lindeza só. Na entrada da porta, à direita, uma mesa
pequena detinha um dos raros telefones da época que, para fazer ligações
dependia de uma telefonista, anunciando um tempo que, por enquanto, andava
devagar. Feito o registro em sua mente,
sentiu um puxão novamente e, ao entrar no recinto sentiu uma clareza não bem
identificada. A saleta havia sido arrumada com uma grande escrivaninha em
frente a uma janela o qual se destacava lindamente no centro daquela mesa que
continha seus alfarrábios de escola, um
armário pequeno e duas gavetas com lápis de escrita e de cor, algumas borrachas
e apontador, uma pequena lixeira e um rádio de pilha de longo alcance.
A paisagem que se descortinava
da abertura, após os gerânios abundantes do peitoril, era nada mais nada menos
do que a entrada da casa de sua avó que todas as tardes vinha lhe chamar para o
café da tarde. Neste momento seus cadernos eram empilhados cuidadosamente para
assistir as histórias das duas irmãs com uma preciosa xicara de café e torradas
com margarina. Para Maria Flor foi o
início da vida entre janelas em que o destino, mansamente, foi apontando, uma
vez depois da outra, novas ventanas.
A partir de agora impera a
sequência regular dos tantos cenários desfrutados por Maria Flor que, por
gosto, precisava ter para si o quadro do mundo exterior sempre a disposição,
fosse qual fosse a paisagem, a situação ou a vizinhança. Em um canto da vida
aguardava solene e calada a velha mochila de couro guardiã da imperativa e voluntariosa
necessidade de se evadir.
A caminhada entre vidraças
passou por ruas antigas com o quadro principal topando com um telhado velho,
mas não menos interessante. Após, um cenário lúdico com escola de criança em
alegre interação, e, mais tarde, bem perto do céu, com o olhar da lua e das
estrelas espiando por entre as frestas da veneziana.
Muito depois, a abertura de
todas as manhãs veio como um presente da vida e assim surgiu frente a uma nova
janela aquele imenso oceano que todos os dias assobia seu segredo, obedece ao
vento, se curva à lua, ao sol, a preamar e aos arroubos do alfabeto de Maria
Flor.
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