quinta-feira, 3 de abril de 2025

A primeira janela – O conto

 


Amaryllis governava aquela casa antiga com primor tendo ajuda de pessoas que exerciam as tarefas como se fosse um sacerdócio, uma veneração pela preservação, pela ordem, pela boniteza, pela natureza entrando pelos olhos e se afundando em cada canto da casa que rescindia a flores, folhagens e terra fresca. Colchas de crochê finamente elaboradas pelas avós enfeitavam as camas, as poltronas, as mesas de refeição. O assoalho de madeira maciça onde ecoavam as botinhas de couro das meninas, os tamancos do rapaz, o salto alto da dona da casa finalizando com as botinas do esposo eram cobertas por tapetes que abafavam o vai vem dos moradores e a faina diária do casarão.

As aberturas muito antigas - tanto portas quanto janelas – arranhavam estranhamente ao se abrir e fechar parecendo ávida para expor o ambiente externo e trazer para dentro da rotina da casa sua vida de início da manhã. Se entreabre para o mundo, em sussurros, assuntos de todos os tempos, passarada em alvoroço, ruídos da rua na manhã brumosa quando os personagens diários que frequentavam a madrugada vinham dar seu recado. Assim se ouvia o leiteiro, o padeiro, o capataz, o entregador de fruta e o carteiro, este se equilibrando no cesto de muitas missivas dirigida todos os dias àquela casa. Era chegada a hora de se debruçar nos janelões centenários onde figuravam floreiras impecáveis onde em cada palmo de terra exíguo se exibia uma espécie diferente formando um canteiro de flores aéreo ao redor da construção.

Neste momento encontramos Maria Flor que transitava neste ambiente com brejeira curiosidade levando para todo canto sua traquitana de estudo e de brincadeira sendo este ambiente quente, afetuoso e amplo que lhe deixava muito a vontade para expandir sua fantasia de menina. Menina essa mais quieta, de pouca fala, um pouco amuada, de muitos olhares e percepção aguda. Nem sempre lhe seria favorável esta condição, mas naquele tempo ela não tinha conhecimento disso.

Em um memorável dia Amaryllis tomou a mão da menina e a levou para um pequeno quarto no centro da casa, quase escondido, com uma porta monumental, provida de vitrais com desenho feito cetim opaco, o que a deixou paralisada. Uma lindeza só.  Na entrada da porta, à direita, uma mesa pequena detinha um dos raros telefones da época que, para fazer ligações dependia de uma telefonista, anunciando um tempo que, por enquanto, andava devagar.  Feito o registro em sua mente, sentiu um puxão novamente e, ao entrar no recinto sentiu uma clareza não bem identificada. A saleta havia sido arrumada com uma grande escrivaninha em frente a uma janela o qual se destacava lindamente no centro daquela mesa que continha seus alfarrábios de escola,  um armário pequeno e duas gavetas com lápis de escrita e de cor, algumas borrachas e apontador, uma pequena lixeira e um rádio de pilha de longo alcance.

A paisagem que se descortinava da abertura, após os gerânios abundantes do peitoril, era nada mais nada menos do que a entrada da casa de sua avó que todas as tardes vinha lhe chamar para o café da tarde. Neste momento seus cadernos eram empilhados cuidadosamente para assistir as histórias das duas irmãs com uma preciosa xicara de café e torradas com margarina.  Para Maria Flor foi o início da vida entre janelas em que o destino, mansamente, foi apontando, uma vez depois da outra, novas ventanas.

A partir de agora impera a sequência regular dos tantos cenários desfrutados por Maria Flor que, por gosto, precisava ter para si o quadro do mundo exterior sempre a disposição, fosse qual fosse a paisagem, a situação ou a vizinhança. Em um canto da vida aguardava solene e calada a velha mochila de couro guardiã da imperativa e voluntariosa necessidade de se evadir.

A caminhada entre vidraças passou por ruas antigas com o quadro principal topando com um telhado velho, mas não menos interessante. Após, um cenário lúdico com escola de criança em alegre interação, e, mais tarde, bem perto do céu, com o olhar da lua e das estrelas espiando por entre as frestas da veneziana.

Muito depois, a abertura de todas as manhãs veio como um presente da vida e assim surgiu frente a uma nova janela aquele imenso oceano que todos os dias assobia seu segredo, obedece ao vento, se curva à lua, ao sol, a preamar e aos arroubos do alfabeto de Maria Flor.

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