sábado, 29 de março de 2025

Gosto de fel – o Conto

 


Livia Maria amanheceu gelada apesar do calor inclemente, com um gosto acre na boca, uma respiração pausada e com a impressão que havia acordado dentro de uma jarra de limonada sem açúcar, ou sentada no mais alto galho do limoeiro bergamota nos fundos da casa ou - como se não bastasse o ataque amargoso da natureza em seu frágil corpo - submersa em algum liquidificador pronto para trucidar uma penca de maracujá.

A impressão inusitada a colocou em apuros porque largou a pensar o motivo de tal ataque, quando se deparou consigo mesma no espelho e enxergou uma nuvem cáustica a envolvendo aparentemente em perfeita sintonia com o inusitado despertar repleto de contradições.

Não se importou com mais nada disso e foi cuidar da vida quando se deparou com um envelope, roto, largado com descuido em cima da mesa, inclusive um pouco escondido, o que já alvorotou os personagens do início da manhã acionando a infalível intuição de Livia Maria para algo que não prenunciava boa coisa, viesse de onde viesse, de dentro de si ou oriundo dos fios cabulosos, insensíveis e invisíveis do passado remoto, recente, não importa, arriscava ela.

Se aproximou com firmeza analisando de perto o envelope enorme já com uma sensação de missiva improvável, de outro tempo, que estariam ali a serviço do seu escrutínio. Livia Maria lutava para sair do modo ácido que a noite lhe colocou, porém, havia na sequência uma apreensão amarga do que iria se apresentar. Talvez seja este o momento da revisão e descarte, lhe assoprava cuidadosamente seu coração, velho coração.

Achou por bem abrir com cuidado, vai que alguma inspiração com intenção subjacente surja dos alfarrábios, algo nunca pensado, uma solução, um alivio, alguma revelação preciosa surgirá. Ao abrir a aba do grande envelope pardo, o ambiente foi invadido por uma nuvem de poeira semelhante àquela que pretensamente enxergou em frente ao espelho, desta feita, causando uma tontura, um mal estar, um aroma de extermínio e um raro esgar no rosto.

O conteúdo mantinha muito bem organizado pequenos bilhetes escritos à mão e todos bastante amassados, manchado de lágrimas, lido e relido, alguns com aparência de terem sido jogados no lixo e resgatados, outros com borda queimada pelo fogo, em meia dúzia - não mais que isso - algumas gotas de sangue sinistras encobriam parte das poucas palavras grafadas dando o tom de um sofrimento quase perene em alguma época da vida, agora exposto e denunciado pelas missivas esfarrapadas. A letra era bem feita oriunda de caligrafia esmerada com jovial aparência, palavreado caprichado e escrita correta.  Foi servida a taça com o coquetel da repulsa cáustica sem gelo.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lindo texto!!! Cáustico…..

Letras em tempo

  Hoje com esta pasmaceira peculiar dos dias amenos de outono onde nem o vento nem o sol querem andar juntos, minha mente, meus sentimento...