Das Dores passou voando as tranças pela rua desconhecida sem muito se deter na topografia, nos transeuntes e muitíssimo menos no comércio uma vez que não precisava de nada. Suas coisas eram substituídas somente quando chegavam ao fim de sua vida útil e isto incluía quase tudo: roupas, sapatos, objetos assim como toda a feição da estrutura da sua casa. Bem montada, aliás. Assim, que praticamente nunca se deparava com vitrines ostentando o que fosse, porque não lhe chamava a atenção.
Neste dia especialmente ela sentiu entre tantas
dores da alma e do corpo algo que não ia bem, por este motivo saiu em
desabalada carreira colocando seu corpo a se mexer e funcionar centrifugando o
mal do seu íntimo. De fato, tentava sempre não admitir que sua rotina rígida
sofresse algum revés. Durona, caminhava sem olhar para os lados, pois há um
tempo bastante longo, depois de ter enfrentado uma situação inusitada que lhe
deixou vazia por dentro sentiu que sua alma e seu corpo ardiam com aflições do
mundo, tal qual o conceito do seu nome.
Seguiu em frente optando por um caminho
desconhecido, pois talvez em outras esquinas o vento e o calor fossem mais
brandos proporcionando mais prazer que sofrimento a empreitada, da qual, já
estava um pouco arrependida. A cabeça lhe doía, os olhos marejados atrapalhavam
a visão e os calcanhares sentiam as pancadas.
Enxergou mais adiante uma ruela muito simplória
e pacata, desconhecida até então para ela que circulava por ali quase sempre,
mas lembrou-se rapidamente que ela havia se imposto aquele modo de andar para
frente sem se distrair. Por conta deste cansaço e de certa indisposição pelo
arroubo em que se jogou à rua neste dia ensolarado decidiu caminhar mais pausadamente
e assim, ao dar passagem a um raro pedestre e retomar o caminho tropeçou em um
cavalete que ostentava uma aquarela, na calçada, junto a uma vitrine
encantadora, que de imediato não lhe prendeu o olhar.
Estancou o passo ao ver-se diante de uma tela
que ocasionou genuíno furor em sua alma se apercebendo que aquele painel, no
meio da calçada, retratava o mapa perfeito de eventos passados em sua
juventude.
Lembrou imediatamente das tantas vezes em que
visitou uma saleta exígua e repleta de tantos cheiros, cores e materiais como
nunca mais em sua vida experimentou. Entrava no clima de arte com uma postura
tão tímida e calada que praticamente se tornava invisível em meio aos
apetrechos e, deste modo, quase nunca sua presença transparente e vaga era
notada.
De outra parte, o artista, Prudêncio Leme - tão
jovem quanto ela - se absorvia na lida com seu colorido arsenal que
praticamente não levantava a cabeça para nada. Nem para criar. Sua inspiração
vinha do seu foco na tela vazia enquanto Das Dores perambulava incógnita
analisando as historias mudas contadas com tanto capricho e detalhamento.
Esqueceu-se de suas dores, de sua pressa e do
jeito de andar para continuar ali, de pé, em meio ao passeio público
perscrutando aquele sinal que, para ela, parecia um bilhete. Atenta, examinou
com cuidado o traço tão familiar e depois, um a um, os elementos que compunham
a peça. Todos eles eram íntimos e agora, com a viva lembrança sentiu a
fragrância de tinta fresca, a fumaça do cigarro assim como a disposição dos
objetos que eram jogados de qualquer jeito como se houvesse muita pressa em
adentrar no recinto. Percebeu nitidamente que conhecia as telas ali retratadas
assim como a cadeira antiga que tinha por missão receber os itens que o artista
utilizava em seu vai e vem diário. Tudo era colocado como que por acaso, porém,
depois de um segundo olhar era perceptível que havia uma fantástica sintonia na
acomodação da traquitana distribuída para contar o que fosse. Das Dores passara
muitas horas tentando ler os recados e decifrar as fábulas do autor, mesmo sem
saber que o fazia.
Um dia, as portas do lugar se fecharam e não
houve em nenhum palmo do lugarejo quem pudesse saber o paradeiro do mentor de
tantas preciosidades. Das Dores perdeu um pedaço de si mesma com esta ausência.
Ao lembrar-se do fato e saindo de sua viagem ao
passado, achou por bem levantar o olhar para a vitrine que resplandecia na luz
do entardecer com muitos desenhos coloridos, alegremente desarrumados.
Encantou-se e ficou ali, tragicamente hipnotizada sem noção do passar do tempo.
Prudêncio Leme chegou à soleira da porta para recolher o cavalete e então
percebeu a presença de Das Dores.
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