quinta-feira, 27 de março de 2025

Uma esquina - O conto

 


Das Dores passou voando as tranças pela rua desconhecida sem muito se deter na topografia, nos transeuntes e muitíssimo menos no comércio uma vez que não precisava de nada. Suas coisas eram substituídas somente quando chegavam ao fim de sua vida útil e isto incluía quase tudo: roupas, sapatos, objetos assim como toda a feição da estrutura da sua casa. Bem montada, aliás. Assim, que praticamente nunca se deparava com vitrines ostentando o que fosse, porque não lhe chamava a atenção.

Neste dia especialmente ela sentiu entre tantas dores da alma e do corpo algo que não ia bem, por este motivo saiu em desabalada carreira colocando seu corpo a se mexer e funcionar centrifugando o mal do seu íntimo. De fato, tentava sempre não admitir que sua rotina rígida sofresse algum revés. Durona, caminhava sem olhar para os lados, pois há um tempo bastante longo, depois de ter enfrentado uma situação inusitada que lhe deixou vazia por dentro sentiu que sua alma e seu corpo ardiam com aflições do mundo, tal qual o conceito do seu nome.

Seguiu em frente optando por um caminho desconhecido, pois talvez em outras esquinas o vento e o calor fossem mais brandos proporcionando mais prazer que sofrimento a empreitada, da qual, já estava um pouco arrependida. A cabeça lhe doía, os olhos marejados atrapalhavam a visão e os calcanhares sentiam as pancadas.

Enxergou mais adiante uma ruela muito simplória e pacata, desconhecida até então para ela que circulava por ali quase sempre, mas lembrou-se rapidamente que ela havia se imposto aquele modo de andar para frente sem se distrair. Por conta deste cansaço e de certa indisposição pelo arroubo em que se jogou à rua neste dia ensolarado decidiu caminhar mais pausadamente e assim, ao dar passagem a um raro pedestre e retomar o caminho tropeçou em um cavalete que ostentava uma aquarela, na calçada, junto a uma vitrine encantadora, que de imediato não lhe prendeu o olhar.

Estancou o passo ao ver-se diante de uma tela que ocasionou genuíno furor em sua alma se apercebendo que aquele painel, no meio da calçada, retratava o mapa perfeito de eventos passados em sua juventude.

Lembrou imediatamente das tantas vezes em que visitou uma saleta exígua e repleta de tantos cheiros, cores e materiais como nunca mais em sua vida experimentou. Entrava no clima de arte com uma postura tão tímida e calada que praticamente se tornava invisível em meio aos apetrechos e, deste modo, quase nunca sua presença transparente e vaga era notada.

De outra parte, o artista, Prudêncio Leme - tão jovem quanto ela - se absorvia na lida com seu colorido arsenal que praticamente não levantava a cabeça para nada. Nem para criar. Sua inspiração vinha do seu foco na tela vazia enquanto Das Dores perambulava incógnita analisando as historias mudas contadas com tanto capricho e detalhamento.

Esqueceu-se de suas dores, de sua pressa e do jeito de andar para continuar ali, de pé, em meio ao passeio público perscrutando aquele sinal que, para ela, parecia um bilhete. Atenta, examinou com cuidado o traço tão familiar e depois, um a um, os elementos que compunham a peça. Todos eles eram íntimos e agora, com a viva lembrança sentiu a fragrância de tinta fresca, a fumaça do cigarro assim como a disposição dos objetos que eram jogados de qualquer jeito como se houvesse muita pressa em adentrar no recinto. Percebeu nitidamente que conhecia as telas ali retratadas assim como a cadeira antiga que tinha por missão receber os itens que o artista utilizava em seu vai e vem diário. Tudo era colocado como que por acaso, porém, depois de um segundo olhar era perceptível que havia uma fantástica sintonia na acomodação da traquitana distribuída para contar o que fosse. Das Dores passara muitas horas tentando ler os recados e decifrar as fábulas do autor, mesmo sem saber que o fazia.

Um dia, as portas do lugar se fecharam e não houve em nenhum palmo do lugarejo quem pudesse saber o paradeiro do mentor de tantas preciosidades. Das Dores perdeu um pedaço de si mesma com esta ausência.

Ao lembrar-se do fato e saindo de sua viagem ao passado, achou por bem levantar o olhar para a vitrine que resplandecia na luz do entardecer com muitos desenhos coloridos, alegremente desarrumados. Encantou-se e ficou ali, tragicamente hipnotizada sem noção do passar do tempo. Prudêncio Leme chegou à soleira da porta para recolher o cavalete e então percebeu a presença de Das Dores.

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