Na primeira vez me chamou a atenção um pé de
sapato solitário e pungente encostado nas areias da beira da praia. Era um pé
masculino e devia estar no fundo do mar havia algum tempo, a se confirmar seu
aspecto, e assim me dei conta em encontrar mil achados para o perdido. O pé de
sapato era de couro preto com grossa e borrachuda sola, acampado entre as
areias, mariscos, caranguejos e tatuíras defuntas há muito.
Acabei por pensar que poderia pertencer a um
macho marinheiro ou pirata de todos os mares de antanho que em uma briga o
tenha remetido a alguma cabeça mais desavisada.
De pronto me pareceu ouvir as passadas fortes do homem autoritário que
se fazia atender através da sua pesada marcha que o calçado abrutalhado lhe
conferiu. A peça, que parecia ser de pé esquerdo não estava rota, mas revestida
de uma divertida camada de precioso e verde musgo marinho que proporcionava uma
visão cabeluda, levemente sinistra.
Talvez tenha escapado do pé do seu dono em uma
farra etílica, em uma briga do macharedo por um rabo de saia ou jogado ao mar
pela mulher traída que o surpreendeu agarrado em outra cintura. Pode ter
ocorrido uma tempestade de alto mar e o sapato se desgarrou do corpo ou o corpo
se esvaneceu restando apenas o heroico calçado que agora resta solitário na
beira da praia
Da segunda vez foram os pedais que me alertaram
em plena Estrada do Mar para um calçado feminino jogado na vala. Tinha um salto
alto, bico fino, preto e com laço dourado, novo ainda. Era delicado e assim me
pareceu que poderia ter sido sua última noitada, calçando a senhorita fogosa e
faceira que em passos de dança aproveitou a noitada e depois rodou de volta em
doce passeio na Barra Forte do amado, a quem se enlaçou na cintura com
delicadeza para se equilibrar. As duas pernas para o mesmo lado como convém a
uma dama, com o scarpin brilhando ao luar sem sequer ser percebida sua perda que
ficou jogado na macega à luz da lua. E assim vemos dois perdidos, macho e fêmea,
que nunca se encontrarão.
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