sábado, 15 de abril de 2017

Riponga


Ao levantar-me pela manhã olhei-me no espelho, coisa que nunca faço, para não precisar confirmar o que a noite de anos para frente me trouxe, mas algo me chamou a atenção ao passar pelo maldito. Tinha um reflexo de muitas cores, luzes em vários ângulos e uma caricatura enfeitada com diversos acessórios que meus olhos demoraram um pouco a perceber do que se tratava. Olhei com mais vagar e dei-me conta que minha estampa denunciava sentimentos que me abordaram neste nascer do sol. Todos controversos, todos querendo gritar e dizer a que vieram todos me alertando, todos exagerados e no fim, todos se engajando.

Encarando-me de frente vi refletida com surpresa um tipo popular de anos de minha juventude, mas percebi que naqueles tempos eu não tinha este perfil completo, apenas toques, um quê mais colorido, um deslize ou outro na linguagem, um ou outro acessório que me denunciasse. No geral eu me dava uma pinta de riponga, mas não no todo.

Esta denúncia do espelho levou-me a encarar que um personagem completo acabara de nascer advindo de alguma memória fragmentada de que os acontecimentos aqui no meu entorno nasceram na escuridão da noite, resolveram me assombrar no alumbrar do dia e para me proteger resultei nesta figura mítica, talvez para me fazer encarar o que anda por outros caminhos ao meu lado sem que eu perceba.

Vai dai que achei por bem analisar o que a figura que detém tantos acessórios em um rosto só pode configurar-se, alguns deles, em denúncia, como de fato a historia o comprova. Senão vejamos. O olhar se mostra anuviado por um matiz que não consegue mostrar ao mundo sua verdadeira face parecendo que o propósito é enxergar o que lhe vem pela frente em cores róseas e mais tranquilo para aceitar o que de escuro viceja por aí.

Nas orelhas outro desaviso, porque pesadas se encontram de tantos badulaques, acho que por conta de deixar o fundo do ouvido mouco para que não se ouça o alarido desta vivenda que reúne tantos em comum. Comuns do espaço físico, mas jamais no modo de se comportar, diga-se de passagem.

Concentro-me agora na faixa que cinge a fronte e me dá a impressão que ela ali se instalou como se fosse para segurar todos os pensamentos fortuitos de reclamação, de abrir a boca para denunciar que um canteiro de flores e temperos é sagrado, que o descanso à noite pede silêncio e que, ao fim e ao cabo, apenas o bom senso pode se arvorar de razão. A fumaça expelida da boca da riponga me pareceu ser apenas um desabafo em tristeza profunda.

Um comentário:

Capitani disse...

"No geral eu me dava uma pinta de riponga..." adorei, acho que são os caracóis dos seus cabelos que sempre lhe deram um ar mais descolado. Final dos anos sessenta e a década de setenta foram sem dúvidas um marco no comportamento humano de um modo geral. Acho que somos privilegiados por testemunhar e viver toda a revolução que ocorreu dos setenta até os dias de hoje. Somos uma geração realmente especial, a partir de nós o mundo mudou.

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