quarta-feira, 19 de abril de 2017

O apartamento


Fazia bem um tempinho que eu havia, de certa forma, abandonado àquele local para poder renovar meus votos de vida boa em outro lugar, quando por força da roda da existência, que insiste em trazer de volta certas coisas, como uma maré revolta, voltei ao espaço. Desde o momento em que se aprontou a necessidade de voltar, meus sentidos e principalmente meu espirito, se agitou, meu coração bateu descompassado e as lembranças se acotovelaram na minha cabeça, cada uma querendo ter prioridade na minha escolha para parar um pouco o mundo e deixar-me levar.

Tudo estava igual tal qual deixei, e vê-lo novamente vazio deu-me uma oportunidade de poder escutar quase tudo o que houve durante tantos anos entre aquelas paredes. A saída havia sido com tal cara de libertação para o novo que não deitei a visão para guardar nada, fechei a porta rapidamente e lá me fui com meus trastes sem olhar para trás, sem fazer nenhuma prece e principalmente sem pieguices. Fui e pronto. Está virada a chave. Com duas voltas. Confirmei então que não havia mesmo precisão de fazer odes ao abandono porque ao reentrar ali percebi que a alvenaria havia guardado com delicadeza os traços da estória de anos e assim, ecoaram as conversas, os risos, o choro, as expectativas, o ir e vir, os abraços, os carinhos e todos os sons de época nos acantonados vãos do lugar. Meus olhos dançaram uma valsa linda, acompanhada por um sorriso meu, de orelha a orelha.

Como um filme retro, assisti nitidamente a jovem que eu era que galgava aqueles lances de escada como se voasse, que não vivia olhando para frente nem para trás, mas sim para o dia, para saber se haveria sol para me bronzear, para fazer o roteiro de quantas voltas teria que dar no meu no dia para cumprir com o leva e traz maravilhoso de filho pequeno e mais cem mil outras coisas que se tem que fazer quando se é jovem, porque o amanhã está muito longe.

Percebi que nunca em tempo algum as paredes se despojarão de todos os acontecimentos que aquela casa acolheu nesta linha do tempo, muito pelo contrário, serão elas que sempre irão emanar as energias positivas que nunca se deixaram esburacar por ocasiões mais obscuras. Não importa com quais cores serão demarcados os pilares, como os móveis serão distribuídos. O novo habitante se proverá do alto astral que o apartamento reflete a partir da luz do sol e das historias incríveis que se sobrepõem e se acomodam entre quatro paredes.

Um comentário:

Anônimo disse...

Minha cara escritora, chorei de emoção ,tuas palavras servem para tantas vidas vividas .

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