terça-feira, 30 de setembro de 2025

Música, Silêncio e Tempo

 


Amanheci embalada por uma Música ao fundo que parecia fazer parte do despertar, ter também uma vida própria, muito mais do que meu desespero na busca dela que me escapa da vista. Ela embala um fundo sonoro dos mais apropriados na orquestração dos bichos que acordam muito antes. Parece ser um fundo tão rico no arranjo que fica um pouco difícil ouvir quem canta melhor por ali. Persiste os acordes melodiosos ou os barítonos e sopranos, agudos e longos. Para mim não importa, o que se retrata neste nascer do dia é o ouvido que escuta como se fizesse parte do acordar para poder viver, como se o som se revelasse como um elemento imprescindível para compreender a conexão com o mundo.  

Mas, não demorou muito, para que eu me distraísse e até abdicasse deste interruptor sonoro e assim me voltei ao meu amante preferido: o Silêncio. É com ele que amo passar dias e noites num conluio de palavras inaudíveis, de longos olhares trespassando a alma indo muito mais além do que foi, do que é e do que poderá vir a ser. É com ele que me deito e rogo para que não se distraia de manter- calado porque esta ausência é quem vai dar o tom da muda conversa, isto se, por ventura, ela acontecer. 

Neste devaneio sagaz aonde vou colocando minhas cartas na mesa com muito menos sabedoria do que eu possa almejar, vou descobrindo que o terceiro elemento que cursa sua cara por aqui, se chama Tempo. O ingrato, com seus ponteiros acusadores, marca sem dó nem piedade a acusação do que perdemos lá atrás, do que esquecemos por aqui ou que falseamos ingenuamente o pensar adiante, para a vida que vem, para o outro dia, para a próxima hora, minuto. 

Assim, assaltada por estes três peraltas achei por bem deixá-los à vontade para fazer de mim seu algoz, assim, passarei a minha vida entre o idílio Musical que vai elevar minha alma, ao Silêncio que possui a missão de acalmar meu ânimo e o Tempo, esta fortuna escondida no meu alforje e, como um anjo da guarda, não me deixa por nada deste mundo.

domingo, 28 de setembro de 2025

Declaração de amor

 


Lembrei de uma declaração de amor que apontou em determinado tempo um norte me confundindo um pouco sobre seu surgimento ficando eu sem saber se seria este a mim dirigido por estar declarado em um movimento singelo de afeição, depositado na minha mão. Fiquei com o braço estendido, inerte, recebendo aquele coração escarlate de costura leve e esmerada não havendo, no entanto, o seu par.

Comecei a imaginar muitos significados para esta atitude que deixava o seu autor invisível naquele momento uma vez que, solitariamente, ousou confessar, através de uma intimidade visível e muda ignorando quais falas deveria acompanhar o fato, proporcionando apenas a divagação apropriada sobre o momento.

Uma hipótese ilusória é ter havido em uma ocasião antiga uma interferência oculta, assim, o proposto tenha passado despercebido de sua seriedade justo na hora em que um sentimento estava sendo desvendado aguardando a contrapartida, que não aconteceu.  Pode ter havido um instante em que a atenção se voltava a outro patamar ou respirava o agrado em outra perspectiva.

Pensando um pouco mais para trás pode ter havido um engano na afirmação do apego sendo o sinal rejeitado sem dó nem piedade porque o personagem não transitava em seus pensamentos, em sua vida e muito menos no seu coração, no caso, um coração de verdade e não o sujeito da fábula.

Finalmente me veio a lembrança a sutileza do ocorrido em uma fase remota que representa a oferenda lúdica da confissão de um amor impossível o qual a Vida, caprichosamente interveio, deixando a mão com um só coração, estendida.

sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Atracar

 


O tempo que recebeu a nova estação que eu chamo de Princesa do Clima, a Primavera veio acalmando os ânimos do lugar sendo visível que todos entraram na pasmaceira aproveitando que o vento não surge cheio de humores arrastando o que vê pela frente, a chuva não desagua de uma vez só inundando além dos córregos, ruas e passadiços frágeis, o sol entra ameno, mas sempre se diverte no avanço do dia brilhando com força. Os bichos saem das tocas e caminham preguiçosos pelas ruas e os pássaros refazem seus ninhos na copa das árvores que agradecem o esmorecer do tempo mais severo.

O pescador aproveita as águas baixarem seu nível e resolve, ao invés de pegar o caniço, colocar a canoa simples e romântica a navegar lembrando os tempos em que iniciou o trabalho junto ao mar, travando todos os dias uma aventura apaixonante que singulariza todos os minutos dos seus dias desde o combate às ondas até o navegar turbulento - ou sereno - sempre tendo como presente da Vida o retorno ao lar. Foi nesta canoa que iniciou sua vida entre a areia e o oceano.

Nem bem havia iniciado o passeio a canoa encontrou um banco de areia oculto pela maré baixa assentando-se com toda a gala possível deixando seu dono enredado no nível de água tão baixo que mais parecia um chão de vidro.  O momento veio segredar ao pescador que nem todo dia será de singrar pelas águas duvidosas e que este dia veio a propósito cochichar em seu ouvido que tempos altivos e severos necessitam ter uma pausa para, deste modo, acalmar a temperatura da Vida em curso. A canoa de simples construção alçou hoje o vigor inerente a simplicidade de ser, de não possuir nenhum acessório que não fosse seu próprio dorso com a missão de, pelo menos hoje, ancorar no leito que lhe dá passagem todos os dias.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Caminhada

 


Resolvi logo cedo que hoje eu teria um ataque de antiguidade e voltaria muito tempo atrás, porque acordei me sentindo fora de propósito, sem saber que eu fiz, durante o sono, uma passagem para um tempo antigo e me perguntando qual o motivo desta evasão repentina da razão. Me parece que hoje seria um dia de folga das letras, estas, que me perseguem noite e dia sugerindo isso e aquilo, misturando a minha vida com a minha imaginação, tirando do baú fantasias e adivinhações que, no fim e ao cabo, acabam fazendo um redemoinho de histórias.

Comecei abrindo o armário na busca de uma roupagem esquecida da maioria e que, por capricho, ainda reservo para que tenha a oportunidade de fazer parte de uma encenação, talvez de um breve delírio de saudade que revisita a memória que por tantas e tantas travas da vida anda esquecida. Não importa. A compreensão sempre depende de cada um e por este motivo a aventura sempre vale a pena. A fábula está sempre ali, bem guardada e limpa rescindindo a perfume de lavanda que minha Avó usava.  

Vão aparecendo pouco a pouco os vestidos que faziam sucesso na época com um figurino amplo, entremeado de tule e preciosos broches encantando a turma real ou imaginária que resolveu transitar pelo tempo. Assim o grupo fantasiado de antigamente vai à rua em animada conversa surgindo assim no fim do túnel deste sonho reverso a possibilidade de buscar – e encontrar – alegorias que justifiquem o ensaio metafórico.

 

 

segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Primavera

 


Levantei o nariz porque havia algo no ar diferente e apesar de estar gelada naquela manhã não quis me abrigar porque algo me dizia que bem pertinho alguns milagres estavam acontecendo e eu os perdi, quando a noite entrou com seu manto negro, abafando de proposito qualquer imagem que se possa pensar em ver nas noites escuras, sem a lua brilhando sobre as nossas cabeças. Pareceu-me que havia uma ciumeira da noite com o dia, quiçá com a lua, porque eu penso que ela intuía que de agora em diante iria começar a perder terreno para a luz, o sol e, claro, o mar, o Deus do Praieiro.

Resolvi abrir as janelas mesmo ainda com muito frio, provavelmente porque a natureza me queria assim, despreparada, de pijamas e sonolenta neste dia de horário desigual. O clima e eu temos uma relação tão próxima que ele não dá um passo sem vir ao meu ouvido segredar seus arroubos, suas dúvidas e suas tristezas quando os ventos e as marés tomam de assalto o seu destino.

Assim eu o ouvi segredar-me, através da brisa, que os perfumes estavam mutantes, que as areias que se confundem com o quebra mar estavam recolhidas nesta época porque haveria de pronto outros sujeitos que viriam lhe tomar o lugar. Assim, decididamente, a maresia se recolhia para um descanso protocolar, uma reação atávica que a natureza lhe ditava uma vez que outros personagens se tornariam donos das frases de encanto nos amanheceres litorâneos, no fungar dos pescadores, no espasmo dos amantes do mar.

Estes protagonistas aparecem sempre que os dias iniciam suas luzes mais cedo, quando de fato o sol arrebenta o azul celeste e sai faiscando o seu reinado deixando para trás longas noites de frio. Em seu lugar, a brisa arrefece o amanhecer, acalma as ondas, nega enfunar velas que afoitas querem se atirar ao largo e vão lavrando com muita sabedoria todo o perfume das flores que ameaçam renascer de suas cinzas invernais, dos gramados que tremem ansiosos para deixar os inços soterrados e todos os galhos que por algum tempo foram impedidos de seguir seu curso. É deste jeito que a Primavera se anuncia, prometendo fragrâncias e novas seivas que terão como missão fazer brotar a sua índole em todos os corações que lhe são escravos.

domingo, 21 de setembro de 2025

O oculto



Nestes dias tenho tido uma sensação que me segue a certa distância, jamais chegando muito perto nem mesmo dando as caras porque simplesmente é apenas uma impressão de algo que permeia o espaço e que eu não consigo sequer colocar os olhos para conhecer ou reconhecer e muito menos entender o que esta percepção quer me contar.

Sempre aparece distraindo minha vista do que é costume conferir no meu dia empanando a sombra regular da casa e, na sequência, sem que eu perceba, surge aqui e ali uma névoa que flutua ao meu redor entrando no recinto pelas frestas, por debaixo da porta, pela janelinha do respiro, pelo vão da janela e pela fechadura que, por ser muito antiga, possui uma desacomodação na sua estrutura.

Neste dia em que o sol se escondeu, o mar se acinzentou, as areias e as folhas aceitaram a chuva mansa que avança embalada pelo vento costeiro resolvi me colocar a postos e vigiar os vãos do espaço, afinal, pode ser que a umidade faça um bom trabalho e emparede a densa névoa que por aqui rasteja.

Fiquei imaginando várias causas para este incômodo sem nome e sem rosto que parece sempre beirar este lado de cá, subindo a escada e, ao ignorar a fechadura entra sem bater com uma teimosia que joga poeira no desenho lúdico trançado entre os móveis e adornos. A casa tem sempre um movimento que aguarda o alvorecer para executar a dança do significado e o balé do equilíbrio de forças contrárias, ludibriando o oculto, todo dia, mais uma vez.


sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Escada invisível

 


Nesta noite eu tive um sonho que mais parecia ser a minha vida do que uma   vibração de algo maior que veio me visitar ou, quem sabe, uma missão para cumprir algum secreto desejo meu.  Assim que eu levantei fui olhar a noite escura para poder de alguma forma me encaixar na visão que assomou minha mente nesta madrugada demonstrando com nitidez e beleza surreal que não existe companhia onde gravito o que me coloca em duvida o treino diário da minha mente que volatiza como mariposa entre tudo o que se apresenta a mim. Faço isso todos os dias sem negociação.

Me senti muito confortável quando decidi voltar ao meu estado de devaneio para poder usufruir desta visão segura que surgia nesta madrugada calma, silenciosa e muito iluminada. Eu senti que o planeta aparentava alegremente o desafio de passar para mim um recado e que eu de pronto não podia entender. O laço que se estendeu estava invisível a olho nu nesta noite fulgurante apenas pelos seus astros mais fiéis garantindo que o mundo estava longe de mim me deixando sem ação.

Pensei em recorrer a escadas imaginárias para poder alcançar esta borda mais próxima e que, se quisesse, poderia tocar ou até galgar alguma posição, mas achei que isto não iria resolver a minha duvida em relação ao conteúdo que esta figura queria representar e muito menos me comunicar.

Continuei a divagar me dando a impressão que devia neste momento tão solitário soltar este costume de impulsivamente criar vínculos onde não há, manejar o pensamento de que isto, aquilo e aquilo outro possa ser feito, encontrar uma história que justifique um sentimento e mais um sem numero de possibilidades que a usina da minha cabeça possa inventar. Foi assim que galguei a escada invisível que me levou ao lugar onde tudo acontece de fato.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Conto marítimo

  


Acontece sempre a mesma coisa com as andantes Amarílis e sua irmã mais nova quando o sol desponta na linha do horizonte, exatamente no limite entre o céu e a terra para onde se deita o olhar sonolento. De mãos dadas, na maior parte do tempo, parece a quem as observa, que existe uma aura de receio ou medo talvez, de se perder entre as areias fugazes dos cômoros itinerantes, ou tropeçar nas tocas escondidas que, por ora, usufruem de relativa tranquilidade no diligente ir e vir em meio às espumas da beira do mar. 

Seguem sôfregas tendo a frente uma variada lista de aventuras, algumas desejadas, outras apenas cogitadas e outras ainda incógnitas e é este motivo que as deslumbra desde o amanhecer até o ultimo suspiro do sol em seu reinado diário sendo que tudo isso acontece por elas terem dentro de si o espírito curioso que acaba sendo o sal da vida delas. 

O passeio sempre inicia junto à imensidão do mar tendo o cuidado de observar se o dito cujo está de bom ou mau humor. Este detalhe permanece sempre como uma interrogação porque as duas sabem que o clima junto com seus comparsas, as nuvens, o vento, o sol e a chuva podem repentinamente se aliar e iniciar uma revolta na previsão meteorológica, talvez até, imaginam elas, para exercer certo deboche a esta rotina das duas irmãs de se colocarem a pé mal a primeira luz surge. 

Neste dia ensolarado e quente, já na rua, Amarílis foi tomada por um sentimento de aventura praticamente se desvencilhando, sem perceber, da viração receosa a qual tanto preza em dias comuns e observou que não era um dia banal e lá se foram as duas de mãos dadas enfrentar um caminho que invade o oceano com coragem e determinação, apesar do vai e vem de ondas profundas, que – neste dia – não causaram nenhum temor àquelas duas que simplesmente engataram a marcha parecendo ter asas nos pés. 

A distração de suas cabeças sonhadoras as cegou e assim não perceberam às suas costas a transformação do então céu de brigadeiro em uma ameaça real da turminha formadora de nuvens que adora brincar de quem vai assustar mais, derrubando o clima ameno e enredando aquela passarela no mar revolto. 

Se os olhos não conseguiram enxergar o que estava por vir, os ouvidos se fizeram atentos para o surdo barulho do vento revoltando as águas até então pacíficas, descabelando os longos fios de cabelo de Amarílis e jogando ao longe o chapéu da irmã. Ao resolver aparar as asas nos pés e corrigir o olhar para o entorno verificaram que já se encontravam frente ao abrigo da plataforma e assim foram rapidamente resgatadas pelos pescadores frequentadores diários do lugar. Amarílis e sua irmã caíram das nuvens ao confirmar a distração fora do “script”.....

terça-feira, 16 de setembro de 2025

Lá vem Ela

 


Ela aponta as ventas sempre na mesma data mesmo que esta, teimosa, não lhe dê o ar da graça, esquece o compromisso ou, pior ainda, acontece alguns impedimentos que a forçaram a chegar oculta fazendo assim um suspense na mente de todos que a aguardam com esperança. Os outros parceiros também são esperados com ansiedade tendo cada um o seu carisma para criaturas de diferente calibre, mas sempre na data prevista, como manda o figurino.

Pelo jeito quem hoje reina soberana é apenas a marca no calendário e este, como sendo comandado por muitos olhos que fazem as ilustrações com antecipação por este motivo singular e Ela é apresentada com antecedência pela configuração que será referendada diferentemente em cada região podendo variar, além da tonalidade de suas cores tradicionais, sua função na natureza mesmo porque o clima não se comporta aos seus pés, podendo retardar sua aparição atrapalhando a sua chegada triunfal para todos.

Neste tempo de espera invariavelmente começa a surgir os sinais inequívocos da chegada da Princesa do Clima mesmo que seu antecessor se apegue em sua estadia. A natureza é pontual mesmo que os seus atores se revoltem. E lá vem o Sol que, ansioso, rasga as renitentes e pesadas nuvens que tentam ocultar seu brilho, espanta a passarada que dormita em seus ninhos, sacode o orvalho das flores em botão, amansa o mar, estanca a correria das areias, ativa o vai e vem de caranguejos e tatuíras e, agora sim, está iniciada a temporada do pé descalço desafiando as ondas do mar através de sua espuma Primaveril.

domingo, 14 de setembro de 2025

A lição

 


O dia se esticou demais parecendo reverenciar o momento em que vieram me visitar lembranças que, aparentemente surgiram como um último suspiro na beira do mar não se configurando como minhas reminiscências mesmo que eu me sentisse a personagem perfeita no instante em que a mim se revelaram. A tarde arrefece seu ímpeto dando lugar elegantemente às sombras da noite que espia de longe aquele quadro onde a água se faz lânguida deitando-se suavemente na areia como se desejasse ficar ali refletindo o momento. 

Me invadiu um sentimento de procura ansiosa pelo nada, uma urgência de um mergulho no vazio da noite talvez porque somente com esta brisa me sentirei confortável para esticar o braço e alcançar o que estão me oferecendo e, por qualquer motivo, não me aparece em momentos de luz. 

Decidi fazer companhia integral ao tempo que hoje se apresentou sinalizando um fim, ou talvez, um intervalo, o que me encheu de esperança de, ao longo da noite, fazer uma lição de casa que há tempo me espia e sempre não faço caso do fato. 

Me acomodei no lugar em que estava, e comecei a pensar em qual assunto eu iria trazer à baila e que pelo jeito anda escondido em alguma gaveta da casa, algum escrito perdido nas páginas de um livro cheio de traça, talvez um rascunho arremessado na caixa que guarda apetrechos para lareira incluindo papel velho, quem sabe esta lição está bem ao meu alcance dentro de uma pasta cujo título se chama vazio. Pensei em muitas possibilidades e cheguei à conclusão que a lição do dia consta em todos estes espaços, bastando que eu os reconheça como legítimos e os coloque no foco do dia que virá.

sexta-feira, 12 de setembro de 2025

Lista de chamada

 


Nem sempre enxergo o que me passa em frente, talvez porque não me agrade o que surge por aí todos os dias e assim vou rejeitando o que – para mim – não tem propósito ou a intenção é tão sutil que me passa despercebida. Gosto muito quando o tempo do dia vem se apresentar sem nada me propor, reclamar, elogiar, difamar, falsear e mais quantas outras palavras surgirão no meu fôlego matinal.

Vou me esconder atrás das nuvens baixas do dia e acompanhar a trajetória por entre seus pares, estes, que aceleram o passo para poder desaguar logo ali, uma outra que se perde entre o vento e as demais flutuam sem destino certo passeando de lá para cá porque sequer possuem uma condensação apta a desempenhar qualquer tarefa inerente ao clima do dia, inclusive parecendo muito comigo neste dia sereno e duvidoso.

Talvez estas e outras mais estejam como eu, com uma sombra nos olhos, não por não poder enxergar, mas simplesmente e, verdadeiramente, por não querer ver, ou, ainda acreditando que nada existe para se vislumbrar.

Vou neste dia que amanheceu dentro de mim abrumado buscar o assunto que combine com este espirito duvidoso em que me encontro, não sabendo direito se encontrarei o meu destino para hoje.

Pode ter havido um esquecimento de mim, alguma coisa na vida aconteceu que simplesmente sumi do passado, do agora e, quem sabe, do futuro do pretérito. Nesta perspectiva de vida fantasma acomodei minha iniciativa dentro do nevoeiro que anda me acompanhando com pertinaz insistência como se fosse um alerta de que meu nome não consta na lista de chamada da vida.

segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Bengala emocional

 


Todos temos um lado esquerdo e um direito no esqueleto e estes, tanto um quanto o outro possuem responsabilidades intrínsecas na função inerente do corpo físico, mental e psicológico. Estão todos alinhados num emaranhado de fios de sangue, nervos, ossos, tendões e músculos e o que mais eu não saiba. Apenas o que eu tenho certeza é que tanto um quanto outro exerce função extra corpórea, onde apenas a alma de cada um tem acesso.

É garantido que entre estes dois lados que se divide nosso corpo existe uma missão, uma resposta, um sintoma que irá acionar qualquer um do composto para alertar o corpo todo que algo andou errado, se perdeu no assunto ou pior, interpretou algo do lado do avesso e por este motivo terá que investigar seus sentimentos antes de chegar às tripas, aos ossos, ao músculo ou seja qual deles se manifeste em primeiro lugar.

Sempre penso no braço esquerdo, que para quem é destro se configura como um componente alienígena na movimentação diária do corpo, mas, que ocorre e cumpre a função corretamente mesmo que se desequilibre, estale aqui e ali e deixe seus elementos parceiros em alerta para o S.O.S. Esta performance acontece vez ou outra alertando a todos que estejam atentos porque nosso corpo físico está ligado à nossa alma de forma definitiva e reage de forma inabalável na hora do socorro.

E foi assim, sem mais nem menos, que lembrei das pessoas que necessitam por qualquer motivo de um apoio para sua caminhada diária e lá se vai enganchada em um braço conhecido, outra criatura segue pela quadra apoiada na vizinha e ainda, com toda certeza, amigos que ingressam em um trajeto escuro e perigoso na noite. Sempre me chama a atenção a bengala aleatória que chega na forma de algo ou alguém, justamente no momento em que pairamos em um estado frágil e indeciso, Para Deus haverá sempre uma alma de plantão que fará companhia a quem necessita. Aleluia.

 

 

 

 

 

domingo, 7 de setembro de 2025

Vou me calar

 


Quantas vezes eu prometi me calar e ao chegar no convescote a tramela se desconectou de mim e assim entre uma palavra e outra fui soltando o palavrório, reuni a força dos pronomes, ajuntei um bocado de substantivos com seus referidos adjetivos e me larguei na conversa que vinha entrecortada de assuntos sobrepostos até que um dia eu percebi que estava falando para nada, ninguém, sequer para o vento. Decidi me calar e de agora em diante apenas vou escutar, mesmo que meus ouvidos estejam um pouco teimosos.

Deste jeito nem as paredes escutarão a minha voz e quando eu vier da rua, do mar ou de qualquer ambiente elas não terão o privilégio de me ouvir contar o que aconteceu no tempo que passei por aí, colhendo dados, travando uma prosa, ensaiando ideias com qualquer um, desperdiçando meu tempo tendo a certeza que para o meu coração a rua pode ser dramática, engraçada e emocionante. Agora, com ouvidos sem serventia por vontade própria virei sempre carregada com a tinta no matiz inspirado na cor da vida ilustrando a história do dia na parede, que certamente me ouvirá.

De outra ponta estas janelas com ferrolho antigo que rangem e gemem durante os ventos costeiros intermitentes do inverno praiano também não irão se abrir no momento da minha prece matinal que todos os dias enfrenta o frio da manhã através da veneziana orvalhada. O céu escuro e estrelado irá receber a minha intenção de chegar ao Divino com meu pensamento sendo conduzido pela suave maresia da madrugada. Minha fala se cala para todos, menos para mim.

sexta-feira, 5 de setembro de 2025

Lambendo o chão

 


Dia morno na caminhada lomba acima espanando o mofo, a injúria enrustida e certa indolência com tudo. Mas toda subida tem sua descida e sempre em grande estilo porque descer é mais rápido, mais perigoso e muito, mas muito mais arriscado. Então, acelerei na baixada sem querer, mas fui parada pela prepotência uníssona dos rostos que me transpassavam arreganhando uma boca e um semblante desproporcional ao meu interior, confesso, sorumbático.

Eu queria ficar ali, de cabeça baixa lambendo o chão, mas como sempre acontece nestes casos, o entorno suga teu intento, a luz forte e quente te avisa que não será esta a hora de se agachar ou de se enterrar um pouquinho só e muito menos usufruir um tiquinho de solidão necessária para renascer mais adiante. Não, neste dia luminoso eles vem te alevantar pelos chifres e te fazer encarar o que vem pela frente.

Forçada, comecei a observar os rostos de quem passava por mim e presenciei exatamente o que eu queria viver ali, nas ruas, mas ao contrário. Todos os rostos desviados tinham um singular esgar na boca que eu entendi como um leve sorriso – que não eram a mim dirigidos - como se aquela pessoa estivesse pensando em algo bom, interessante ou engraçado.

Todas elas com esta atitude tinham um smarthphone na mão e caminhavam por cima de tudo e de todos, com a visão acima da linha do horizonte e tão etéreas que poderia afirmar estarem somente na imaginação.

Dali para frente me ficou impossível não pensar que é uma ingratidão para passantes de ruas imensas negarem o cruzamento do olho no olho, trocar um sorriso, recusar um flerte imperioso com alguém interessante ou subtrair a tentação de espontaneamente cumprimentar um desconhecido simplesmente. Não é mais possível encontrar a incógnita tão estimulante, não se faz leitura de quem passa na rua e não se encontram mais as almas se cruzando no universo.

O olho e o espírito focado no que vem de fora, criado e manipulado para as massas tornaram os indivíduos espantalhos do dia que riem sozinhos por aí, sem presenciar o calor da oferta dos amores reais que agora são fantasmas perambulando solitários pelas ruas. 

terça-feira, 2 de setembro de 2025

A espreita

 


Valter havia acordado cedo naquele dia porque estava pensando na Maria Estela, aquela moça da esquina que lhe chamava a atenção por ser – ou parecer – delicada e muito tímida o que lhe causava uma ansiedade fora do comum, talvez por ter um temperamento que navega por todos os humores causando, muitas vezes, uma certa estupidez ao tomar algumas atitudes. Por este motivo, hoje, mesmo com a possibilidade de estar na janela para ver a moça passar ele resolveu que tentaria frear sua ansiedade fazendo pausas entre um suspiro e outro cadenciado com o seu coração.

Com este pensamento em mente tentou entender qual seria a importância de ver a moça passar sem poder alcança-la para uma prosa já que a timidez dela invadia sua mente e acontecia um suspense dentro de si que travava suas pernas, embaçava os olhos, aturdia seu coração que ora quase parava, ora acelerava sem controle. Resolveu sair da janela e sentar no banco de jardim, bem perto do muro, ficando à espreita, olhando vez ou outra para o relógio, imaginando que ele deveria avisar o grande momento em que ele despertasse para abordá-la.

A espera se alongava, seus olhos iludidos fazia a rua parecer muito maior do que realmente era e, em seu pensamento, aguardava o momento certo para lançar-se a sua frente, acenar, talvez assobiar e, finalmente entabular a conversa. Valter lutava para conter o devaneio que o invadia todos os dias na mesma hora. Hoje decidiu que iria ao encontro de Maria Estela como se fosse o herói da rua, lhe faria uma pergunta boba, uma conversa fugaz sobre o tempo e na sequência pediria para lhe acompanhar. Encorajado pela expectativa de finalmente dar o primeiro passo colocou-se do outro lado do muro ajeitando seu melhor sorriso e após todo este prumo, ao levantar a cabeça, estava em frente a Maria Estela.

Banho de mar

  Engatei a marcha da resolução, pisei firme o pé na areia úmida e gelada seguindo com os olhos vidrados na maré vinda de alto mar até morre...