quinta-feira, 31 de julho de 2025

Mantra

 


É só me chamar que eu vou, parece que é um mantra, com um jeito tão intenso que parece acoplado na ossada, inserido na derme, imerso na goela, como se conjugasse todos o verbo desde sempre. Não era uma ilusão, era uma verdade até que chegou o momento em que estranhamente o dito cujo não soava mais os ouvidos com tanta intimidade.  Naquele dia alguma coisa estava diferente, e, de certa forma, não se escutava ao fundo aquele diz que me diz de todo instante, quebrando deste jeito impulsivo o som da ordem.

E assim nasceu o dia em que o mantra enraizado se iluminou sozinho e foi buscar em outras paragens o sujeito de sua vida, a sua concha ensimesmada, o seu pó de flor que espirra macio em todas as direções.  Assim chega um novo alvorecer onde todo o chamado é diferente dando opções de vida, de poder pegar e largar, de não escolher, de deixar tudo, mas tudo, para depois, de ouvir o som e a voz do vazio.

Na ausência do bate estaca monocórdio aconteceu o improvável, uma vez que em sendo liberto da amarra, o pulso da mente ainda se contorce na procura de desamarrar o nó, o ouvido se espicha notadamente como se faltasse algum acorde para o concerto daquela hora e os pés se posicionam na marcha que some na medida em que avança.

O caminho é diferente, não por ser novo, mas por ter sido escolhido justamente por não ter serventia aparente, por haver em seu trilho as mesmas coisas de sempre, porém, vistas da esquina em frente, com uma iluminação densa, com a nuance imperceptível ao olhar ligeiro e a interessante alternativa de poder escolher.

Agora sem rumo, caçando o improviso, o cenário se agiganta com força e se espalha dando asas a toda prece sussurrada com fervor durante os dias e noites que se avizinha tão celebradas. O som é variado porque vem sem sugestão, o passe é livre, o nó jaz esquecido pela inatividade, o alcance, outrora soberbo emudece para sempre e assim os passos acompanham a voz desafinada que ensaia outras árias.

 

terça-feira, 29 de julho de 2025

O velho invisivel

 


Olhei para aquela janela antiga e não pude me furtar de imaginar quem poderia estar por detrás desta abertura machucada pelo tempo e que transparecia um cansaço de existir, uma desistência de manter a estrutura outrora viçosa com o mínimo de vigor aparente. 

Certamente por detrás da abertura abandonada existe alguém que em algum tempo atrás ali se debruçara para acenar aos seus vizinhos, contemplar os jardins, respirar um ar puro e na sequência voltar aos seus afazeres com a felicidade recolhida. Talvez o morador seja todo ouvidos para os sons de antigamente, uma gritaria lúdica da criançada da casa, um bater de panelas em um fogão a lenha fumegante, uma afanosa atividade de dias bem antigos. 

Frente a este devaneio imaginei que a aparência de descaso guardasse um segredo de morador ecoando por ali um grito de socorro de dentro para fora, um alerta para o mundo que por detrás desta janela já não existe esperança nem alegria e a única forma de chamar a atenção do entorno é demonstrar a decrepitude do lugar. 

Imagino que a voz para o lado de dentro esteja tão fraca dos solavancos da vida que permanece inaudível até para si mesmo. Ao invés de um grito de socorro apenas sussurros, promovendo um vácuo no ambiente que se torna impossível de preencher por absoluta falta de força, física – em primeiro lugar – e mental por consequência. As horas se arrastam no tic-tac do relógio antigo contribuindo para se idealizar uma rotina de esperança no alerta mudo da janela que fala sem palavras.

domingo, 27 de julho de 2025

Chave de Ouro

 


Maria Tereza resolveu que neste dia teria a árdua tarefa de buscar uma preciosidade que foi muito bem guardada em um antigo cofre de madeira e, que ela conservava desde há muito tempo. Desdenhou a relíquia durante os últimos anos por simplesmente não acreditar que o guardador de mistérios que ali estava depositado tivesse algum poder sobre seu destino. A peça, portanto, estava no sótão, em um canto de difícil acesso, com muito pó e teia de aranha.

Maria Tereza, nos últimos tempos, caminhava em uma linha tênue em que ela, propositalmente, colocava na sua frente o assunto que merecia sua atenção e buscava escolher aquele que desse a ela a lisura do qual sua mente precisava, fosse a fantasia que fosse que lhe tenha sido assoprada.  Não estava sendo fácil uma vez que a chave que possuía para abrir o assunto do dia muitas vezes emperrava e, mesmo com muito esforço, sua mente se trancava em si e naturalmente navegava por caminhos desastrosos.

Desta feita Maria Tereza resolveu destravar o espírito e liberar o seu maior conselheiro, aquele que se imiscui dentro do seu íntimo, incentiva a lucidez que não empana sua palavra e se mostra receptivo em relação a sutil artimanha da história contada com efeito mágico na interpretação. Cansada, mas animada com a decisão, subiu a escada que rangia como um choro antigo sobre seus pés e abriu o baú antigo de lá retirando a Chave de Ouro que veio libertar seu desejo e, na sequência, ao virar a chave de sua mente enxergou com clareza a página virada simbolizando uma mudança, uma abertura e um fechamento.

sábado, 26 de julho de 2025

Sapatos que não gastam

 


Pensando bem, caminhei tanto que me perdi e ao perceber que não havia esforço na retomada veio ao meu encalço este lugar parecendo que nunca dele sai. Parece-me que conheço cada canto da casa e assim posso andar com os olhos vendados que em nada vou tropeçar, que todos os objetos dispostos arrumaram-se sozinhos deixando para mim apenas a observação e do mesmo jeito paredes parecem sair do lugar para me fazer circular livremente. Nas ruas a impressão é que conheço todas as pessoas por quem cruzo todos os dias e que todos os meus bons dias sempre foram dados e recebidos de volta.

A noite vai alta quando me desacomodo e busco esfriar meus pensamentos na aragem gelada desta morada praiana, sentando-me no melhor lugar com vista para o mar, que me espia escuro, rugindo descompassadamente o que soa como musica para mim. O corpo vai resfriando junto com a mente que se liquefaz tateando as cenas que parecem repetidas de outras horas que não essa. Prolongo o momento na observação da rua deserta até estremecer de medo e de frio. É um medo bom e o frio vem me avisar que de agora em diante as variações terão sempre uma benção da natureza, que ora resfria o bafão dos pensamentos obsessivos, ora o vento leva todas as pétalas para o caminho a ser trilhado e deste jeito diáfano vou vivendo por aqui.

Que modo é esse de caminhar onde os sapatos não gastam, as pegadas se esvaem no vento ou chuva, os caminhos se cruzam entre presente e passado, os encontros se esfumaçam virando alegorias, as conversas se congelam no tempo, os pontos e vírgulas somem do texto e os parágrafos se desacomodam na pauta. As buscas de outrora se cristalizaram de tal jeito que do nada viraram releituras obsoletas, as afirmações contundentes viraram pó, os amores eternos morreram antes do primeiro round. E é deste jeito que meus contornos vão se igualando a esta instalação que abriga tantos caminhos agora se permitindo ser um só.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

O dia que não existe

 


Era muito cedo da manhã quando Marilia percebeu que não havia sinal de vida no entorno e nem mesmo sentia dentro de sua rotina a organização diária. Havia um vazio e um silêncio em qualquer lado que se voltasse, parecendo haver um abandono que a invadia carregando seus pensamentos para algum lugar insuspeito até este momento.

Começou a acreditar que esqueceram de contabilizar esta data no calendário porque não encontrou em lugar nenhum a faina e o lufa-lufa de um amanhecer normal que deveria seguir em frente de maneira inexorável sem que fosse possível atrasar ou adiantar um minuto sequer da vida.

Resolveu que começaria a realizar uma conversa e alinhar a tarefa do dia mesmo sentindo que estava faltando tudo para a realização do que estava almejando. Havia este ar macambuzio que se negava a dar qualquer sinal que procurasse, mesmo que saísse um pouco da linha.

Em poucos instantes Marilia percebeu uma luz projetada em sua lembrança que trouxe um filme da sua infância com detalhes minuciosos dos momentos em família, iniciado sem que houvesse controle. Entrou em cena imagens cheias de nuance e detalhes daquela época longínqua mostrando a evolução da vida de todos separadamente, mostrando as diversas fases e o tempo passando. Admirada com a sensação sutil Marilia mergulhou na saudosa história esquecendo por um momento que deveria encontrar a data deste dia que se mostrava ausente. De repente a luz se apagou, as imagens sumiram e sua alma foi invadida pelo sentimento de perda e tristeza e foi deste modo que Marilia encontrou no calendário este dia que marcava uma ausência.

 

quinta-feira, 24 de julho de 2025

Para onde

 



Olhei para os dois lados antes de partir e mesmo assim não encontrei o caminho a tomar uma vez que cansei de olhar em frente, de dar passos largos ao rumo que se apresentava pois naquele dia minha expectativa era topar com o predestino como sendo um alvo certeiro, queria fincar os calcanhares no chão com determinação e acelerar a passada mas, ao tentar fazer isso meus pés se pregaram ao solo, me desequilibrando e travando meu corpo que já estava de prontidão para encetar a jornada fosse qual fosse.

Travar-me ao solo parece ter sido um aviso claro que havia surgido um dilema dentro de mim, receosa de encarar todas as portas que estavam querendo se abrir e que eu, de alguma forma me negava a entrar.

Ao girar os olhos para descobrir o que haveria de me chamar a atenção naquele dia dúbio por natureza, tive a cautela de não olhar para trás, imaginando que somente encontraria pedaços de vida aleatórios, pessoas desaparecidas, jardins esquecidos e ruas   secas e desertas demonstrando claramente que dali fui arremetida  até chegar a este ponto da passagem.

Ao estar estagnada e sem chance de me mover para lado nenhum iniciei uma jornada investigativa baseada apenas na minha intuição, afinal, tenho desde há muito me guiado pela brisa da vida que avança rápido sobre mim e somente sinalizando o tempo que passa.

Em um impulso girei os calcanhares e retomei o caminho trilhado até aqui, levantei a cabeça, empinei o nariz, retirei a nuvem dos meus olhos e resolvi criar outras fases de vida, encontrei novas pessoas, lavrei a terra reflorestando as estradas e, por fim, acimentei a rua deserta com um novo desígnio.

domingo, 20 de julho de 2025

Dia do amigo

 


Encontros acontecem a todo instante cruzando nosso caminho, pulverizando a atmosfera que nos envolve com um delicado lampejo divino e entre um sopro e outro encontramos uma sugestão, uma possibilidade, uma chance de sentimentos amorosos se instalarem ao nosso redor. É assim que a luminosa aura da Amizade blinda nossa caminhada, assim, sem aviso prévio, sem programação, sem alarde e sem busca incessante que este grandioso sentimento acontece, como o Amor.

Na Infância ensaiamos nossos primeiros passos na vida junto a terna e alegre interação com crianças que farão a diferença na nossa trajetória e marcarão para sempre nossa personalidade e a vida dali em diante. São tempos lúdicos, sinceros e divertidos que convivem com a descoberta do mundo, do autoconhecimento, da sabedoria de vida, do respeito e da mágica do relacionamento.

Chegamos na Maturidade após uma caminhada baseada nestes primeiros passos e com a experiência e o rumo tomado por cada um, alguns caminhos se desencontraram, porém, os laços de afeto engendrados em tão tenra idade jamais são perdidos por se constituírem em um dom divino e um esforço de amor de cada um.

Por fim, a Velhice vem nos mostrar a trilha de amigos composta de pedrinhas de brilhante que ilumina o caminho percorrido até aqui. Seguimos confiantes, erguemos o olhar para novos passos agora mais cautelosos, com amores menos loquazes, fala mansa, sorriso pálido, a vista turva e ouvidos mais seletivos. O olhar se volta ao modo pelo qual passamos a infância encontrando a singeleza, a novidade e a simplicidade que conhecemos nos inesquecíveis primeiros anos de vida.

sexta-feira, 18 de julho de 2025

Duas lágrimas

 


O dia chora mansinho se unindo a tantas e tantas outras vertentes cristalinas que brotam de olhos de todos os matizes sempre mantendo a audácia de tentar vazar o colorido da íris na simplória gota que rola pela face do moço, da moça, do velho, da velha, da mulher, do homem e da criança sem nenhuma distinção.

Talvez o dono do lacrimejar espontâneo a perceba translúcida e, em um primeiro momento, confunda seu significado e por este motivo singelo a deixa marejar com liberdade para que o aguado caminho seja recebido em um colo de mãe, um ombro amigo, um simples abraço, a escadaria da igreja, mãos avidas de consolo e quem sabe, a suave espuma do mar que, hoje, entristecido e calmo, a receba com carinho.

O pranto sentido jorra com a fluidez que uma tristeza costuma ter ao conseguir a alforria da alma para que, finalmente, possa percorrer todo o caminho de um rosto cheio de nuance, criada a ferro e fogo pelo tempo com tantos sulcos para desviar. Este olhar molhado se alongou por algum tempo sendo estancado no momento em que encontrou um lenço rendado entre dedos trêmulos, abafando o soluço que surgia como acompanhante.

Uma lamúria de pingos pode verter internamente por não possuir a capacidade de traçar o destino certo para um ou outro tema construindo uma trilha de pranto sem fim. São duas lágrimas que correm juntas entremeando o espirito e salteando, ora por uma aflição, ora por uma alegria surpreendente.

 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Dentro dos olhos

 


Nem bem havia despertado quando resolvi, de imediato, fechar os olhos, não sem antes trazer o mundo para dentro deles e seguir cega para o que existe hoje ao meu redor buscando a capacidade de, aos poucos, lembrar minhas tarefas diárias e decidir se as vou cumprir ou se vou perseguir outro caminho, bloqueando o antigo, mesmo em dúvida do que eu mesma irei apresentar.

Me parece, entretanto, que ao trazer o mundo para dentro dos meus olhos apenas a escuridão se apresentou dando a entender que a mim caberia usar os artifícios que minha percepção interna pudesse acessar e não permitir que esta cortina pesada da vida se estabelecesse por muito ou pouco tempo dentro de mim.

Ansiosa com a aventura de refazer um dia da minha vida busquei dentro do caderno do meu coração as flechas que se transformarão na probabilidade de utilizar este descuido do mundo que se apagou para mim, internamente, e montar um novo cenário. Será com meus olhos vendados que buscarei a companhia de todos que se evadiram de mim como bruma densa de inverno, vou recompor o caminho do desterro que em outra ocasião abracei sem perceber o que deixaria para trás.

Voam faíscas de todas as linhas e se reúne ao meu redor o brilho que vai iluminar  um carinho que se perdeu no emaranhado de frases, um convite declinado, um abraço que ficou no ar, um beijo retido na intenção, um encontro desmarcado, uma ausência sentida, um desejo no ar e uma esperança latente.

domingo, 13 de julho de 2025

O remédio e o veneno

 


Vou tomar um remédio para que acione em mim, por algum tempo, o modo esquecimento. Talvez eu jogue para o alto as lembranças que estão mais perto de mim, que mira meu coração, que empana minha alma, cega meu olhar e trava o caminhar em frente.

Eu imagino que somente desta forma terei um vazio perceptível e, apesar do jeito autoritário, não terei mais como algoz tantos alfarrábios amarelados que surge do porão inconsciente, bilhetes de amor escondido na página de um livro qualquer, caixas preciosas espalhadas por todo canto, laços de fita esquecidos no fundo da gaveta, quadros antigos, paramentos de vestir que já esqueci qual idade eu tinha quando os usei e fotografias antigas. Enfim, um acervo de respeito para quem tem lembranças e dia sim e outro também traz à tona uma releitura.

Vou a partir de agora usufruir de um modo letárgico, ar blasé, postura de enfado tendo meus olhos baixos e opacos, ao invés de sorrir vou estampar apenas um esgar cínico para o que se apresenta, seja do presente, do passado ou do futuro. Além disso, vou chamar um antiquário e passar a régua na quinquilharia – como dizem alguns – na feição da minha casa.

Minha mente se alojará no vazio, no minimalista, no pensamento etéreo, no jeito de não encontrar relevância em nada, de parar de vasculhar tudo o que acontece e a todo momento sair em desabalada carreira e aterrar na primeira página em branco que me aparece fazendo fluir a grafia na ponta dos dedos ou na ponta do lápis.

Por fim, vou trancar a usina de fantasia que povoa a minha mente em suspeito conluio com o inconsciente que se presta a criar e utilizar de personagens que povoam a face da terra, do mar, da floresta, do rio e da cidade lhe conferindo vida e história de todo naipe. Ao refletir sobre este remédio dei-me conta que ele também pode ser um veneno.

sexta-feira, 11 de julho de 2025

Terreno baldio

 


Dias difíceis por aqui e os sinais me vem sem que eu possa perceber claramente, mas, no andar do dia quieto e medroso que se apresenta minha figura delata em alta voz os sintomas que este dia, justamente este, pretende reportar. Fico prestando atenção, em primeiro lugar, no norte do meu amanhecer e encontro  o mar, como sempre, aguardando que o sol lhe venha fazer companhia, me olhando, porém, hoje ele parece que me espreita, me espia, me monitora e o percebo enviando mudos recados, alguns posso entender porque são sempre os mesmos, outros aqui estou tentando adivinhar.

Comecei minha investigação determinada a não olhar para trás apesar de minha cervical andar rodeando o meu corpo como se tivesse vida própria, e, de certo modo possui olhos de lince para giro selvagem e se agrada de postar-se diante de múltiplas possibilidades, aliás, um vício do meu corpo que volta e meia navega na procura de um terreno baldio para invadi-lo com meus pensamentos mais urgentes e desta vez não foi diferente.

Me rendi à muda interferência do início da manhã e fui investigar o espaço encontrando uma verdadeira trama de hera ardida que conjugava assuntos do passado embaralhando e enredando o infortúnio, a sorte, o amor, o desamor o encontro e a despedida em fortes laços do qual não conseguiam se desvencilhar.

Um pouco parva ao reencontrar os pedaços de vida misturados resolvi que a tarefa ao qual o dia me destinara seria de limpar aquele solo baldio que ousara receber os fantasmas de outro tempo, ressignificando a experiência desta aparição repentina e, aparentemente, com propósito oculto.

terça-feira, 8 de julho de 2025

Adeus

 


Faz um tempo em que, determinada, dei duas voltas na chave, virei as costas e desci a escadaria com meus pés flutuando no limbo do tempo com a minha atenção focada na estrada de uma escuridão aterradora, vazia de movimento, com apenas o ruído cadenciado da batida do meu coração que, em suspenso,  sequer ousava imaginar o que poderia vir pela frente. A estrada vazia e silenciosa parecia reverenciar a nova jornada, dando-me passagem.

Cheguei ao meu destino nas asas de Deus e na espera uma nova casa que caprichosamente aceitou o que minhas noites insones me assopraram como relevantes, me obrigando a descartar as inutilidades e em primeiro lugar, os meus piores pensamentos, as lágrimas vãs, os amores perdidos, a esperança sem fundamento. Secretamente se imiscuiu na minha bolsa de mão todos os sorrisos, a conversalhada solta, a juventude, a conversa da criança, a vizinhança, o cheiro do café, do churrasco e dos abraços em família.

Embarcada para o sempre percebi que se esvaíram pela ventarola do carro a fuligem, o trânsito, a irrelevância imperativa de tudo, o ar rarefeito, a prioridade de revés e, por fim, o abandono do ladrilho de janelas.

Abro os olhos todos os dias e me encontro com o grande Oceano a minha espera. Ali está ele, sempre pronto a me surpreender. Entrevejo os seus olhos matreiros querendo que eu adivinhe qual a valsa que ele dançará neste dia que promete ser iluminado. Em outro se diverte quando me assombro por vê-lo tão calmo enquanto meu coração sofre sobressalto, se anima em muitas ondas quando me percebe pensativa, se faz de bobo e amortece sua fúria quando a lua impera desde o horizonte e para me provocar se suja nas algas escuras. Esta vida frente ao mar é sempre diferente sendo igual.

 

 

 

 

domingo, 6 de julho de 2025

A perseguição

 


Olhei para trás e percebi que minhas costas, costas estas que em dias de hoje parecem pó de osso de tão transparente, retinha, inadvertidamente, assuntos que em sua essência não me pertencia, parecendo estar colado em mim deixando meu lombo indeciso ao perceber tanta letra mal escrita, verbo sem direção e pontuação intempestiva, sem mencionar na discordância entre substantivos, adjetivos mais a confusão do significado das palavras.

Fiquei pensando como estes personagens iletrados vieram encostar em mim podendo eu ouvir a sonoridade irrelevante da conjugação enganchada de qualquer modo. Voltei as costas tentando me livrar da perseguição anônima com óbvio propósito de confundir as asas da minha imaginação que alçava seu primeiro voo do dia.

É sempre a mesma coisa. Todos os personagens fabulosos a meu serviço vêm me visitar, cada um deles propondo o seu tema mais terno e relevante que acreditam possa ser bem trançado, subindo o tom no mais das vezes para encantar de emoção quem os vai encarar de frente. Aceito a sugestão, a embalo com carinho e guardo na minha caixa preferida de assuntos que, pelo visto, hoje se encontra em um lugar inesperado e oculto.

Assisto as letras perversas travestidas de texto voejando na minha volta em franco alvoroço imaginando que esta perseguição repentina poderá desmantelar meu propósito. Ledo engano, com astúcia enxotei o mal escrito um a um com capricho protegendo o meu alforje com as palavras e seu verdadeiro significado honrando a pena que as desenhou pela primeira vez. Voltei-me vitoriosa mais uma vez e as vi vagar sem rumo, não encontrando seu verbo, seu adjetivo, sua rima, sua frase e muito menos seu verdadeiro significado. Voilá

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Varal

 


A vida gosta de ficar suspensa no varal, muitas vezes do avesso, de cabeça para baixo, de lado, pelas pontas, pelo meio e assim as vestes do mundo se expõe dependuradas, todo dia, nas cordas de todos os lugares para tomar um ar, pedir ao sol que jogue seus reflexos que dançam conforme o vento criando um movimento dinâmico e colorido em que os trapos ganham independência e, de certo modo, estão livres de corpos suarentos, gordurosos, esqueléticos, mal cheirosos, perfumados perfeitos e imperfeitos. 

Tremulam ao vento camisas que, dependuradas, não tem razão de existir porque lhe falta o sujeito que a enverga e, por este mesmo motivo, a vestimenta liberta do seu dono balança ao sabor da estação, muitas vezes, demorando a secar, talvez para não voltar ao corpo que cobre e circular por entre muitos e pelos quais não nutre simpatia. Melhor andar dependurado ao frio e ao calor causticante do que seguir caminhos transversos parecendo ter um desejo secreto de se tornar roto mais rapidamente e sair daquela prisão corpórea e de destino indesejado. 

No mais, enfileirados com criteriosa organização, em muitos casos, seguem juntos molhados e com variante de cor e textura calças, casacos, fraldas, lençóis, toalhas e mais o que se tem em uso na residência podendo haver sujeira de uma vida no campo contendo terra, folhas, espinhos e flores secas  que se grudam ao tecido para se aventurar por ai, fora do solo, conferindo o que rola por outras terras.

 Pode haver também a sujeira da cidade e do asfalto, a fuligem das chaminés, a poeira das calçadas, o respingo das sarjetas na vestimenta dos executivos impecáveis e urbanos que transitam pelo caos das cidades, deixando suas roupas com mais manchas que alguém possa ter a capacidade de tirar. Deste modo interessante as cidades deixam as marcas nas roupas que nenhum varal poderá limpar.

Banho de mar

  Engatei a marcha da resolução, pisei firme o pé na areia úmida e gelada seguindo com os olhos vidrados na maré vinda de alto mar até morre...