terça-feira, 30 de maio de 2017

Porta-joias


Fiz uma amarra bem forte para não me deixar levar pelas ilusões, pelas abordagens suspeitas que volta e meia surgem do nada como se fossem opções que eu devesse considerar. Achei por bem engendrar um bom nó, trançado com uma corda que eu arrumei de fantasia e que tivesse um bom significado para assim ter o poder de vinculação que funcionasse. Acredito que esta metáfora perfeita vai deixar do lado de fora todo o desserviço que por ventura passe por aqui, mandar para longe o que proveito não tem e resguardar este lugar de tudo o que me desvencilhei por considerar absolutamente necessário passar o rodo no caminho.

Assim, enrolei um por um os fios de cada parte do artefato, misturando um pouco o sentido de cada um deles para que não houvesse uma direção certa, desenvolvi uma artimanha para deixar um espaço no enredado e assim fosse possível enrolar em segredo tudo o que não posso dispor no momento, como uma palavra inspirada que sai da minha cabeça e não encontra eco nos meus dedos e assim tudo o que flutua sem achar onde pousar. Será uma espécie de porta-joias a céu aberto com uma pegada camaleônica para dissimular.

Tantos são os assuntos que se movimentam na vida que tudo quer para ontem, que faz um bem danado guardar opções preciosas que são descartadas no momento em que se apresentam. Um sorriso de algum desconhecido, um alô de um amigo que havia sumido, uma conversa boa, uma comida ótima, um encontro perfeito, uma musica linda, uma imagem de tirar o fôlego, sol ao invés de chuva, uma lufada de vento repentina, um susto na chuva. São tantos detalhes bons no meio do caos, que se não os guardarmos secretamente para espiar novamente depois, terão passado rápido como a luz.


domingo, 28 de maio de 2017

Fantasiosa


Fechou o tempo com nuvens baixas e riscos dourados cortando o céu que hoje se oculta deixando as cidades em sombras e recebendo também todas as lágrimas do universo, alagando bueiros, varrendo as calçadas com muita disposição. O pisca-pisca dos raios além-mar constata que o clima não está para brincadeira e achou por bem se indignar, revogando por hora os dias luminosos, as caminhadas solitárias, e a fervorosa olhada no calendário para ver se perto está do tempo quente, dos ventos airados, da correria da areia fina, das borboletas de verão rondando os hibiscos, das cabeleiras se emaranhando por gosto nas cabeças mais rebeldes.

A natureza resolveu dar um basta na farra do sol e com este jeito tão peculiar de escurecer o dia, quase parecendo noite, deita o medo e a apreensão nas ruas. Não há sombra do aparato e tudo se recolhe com vitrines medrosas e levemente envergonhadas ao expor em suas calçadas, guarda-sóis coloridos, cadeiras de praia, cangas multicoloridas, espetos para churrasco e mais quantas mil quinquilharias que agradam veranistas. Recuam os varejistas apostando agora que a chuva fina lembra galochas, capas de chuva, sombrinhas e na gastronomia a carne gorda e a sopa galgam seus lugares na chuva de outono.

O mar se achocolatou de vez derramando suas águas barrentas até o calçadão jurando solidariedade aos raios e trovões que esboroam sua alegria por estarem assim todos unidos na revolta climática - e já não era sem tempo - pensa a natureza.

A cachorrada de rua acua por todo canto sem destino, sumindo como por milagre da vista dos moradores que lhes cuidam em suas portas e lhe provê a comida e a água diária. São os guardiões de tantas moradas, fiéis seguidores de seus donos desconhecidos que por mais que se esforcem no carinho e cuidado fica impossível mudar a triste feição do vira-lata, adquirida em função do abandono. O tempo fechado agrava a situação da malta.

A fantasia fora do contexto surge com a visão da moçoila corajosa, que desafia o frio, a chuva e o oceano gelado, se conjugando em um retrato perfeito da esperança que move o praieiro, mesmo em um dia com um céu tão barulhento.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Metade


Era apenas um dorso, mas achei que tinha muito a contar assim de pronto, numa passada de vista rápida, quando a imagem entrou na minha cabeça o que significa que depois do fato ocorrido, só sai dali em letras, que de preferência darão um significado à figura retratada com uma estória inverossímil muitas vezes, uma confissão, uma alegoria, uma fantasia, uma culpa. Pode ser tudo.

Apuro o olhar, como é meu feitio nos detalhes e já ouso imaginar que este dorso está se parecendo comigo, assim descarnado em suas entranhas, vicejando tantas alegorias de um lado, e de outro, certa serenidade e mais abaixo, na linha do cuore, um movimento que puxa pela graça, visto que parece haver um sorriso esburgado por ali. Acaba a leitura da figura e já vou me enxergando nas miudezas, nos recados ocultos e na narrativa assombrada que não aderna muito pelo contrário, se aninha na cachola como se necessitasse certo tempo para depurar o vulto insólito.

Poderia dizer que são dois fantasmas em um lombo apenas, um pedaço de gente e não o todo, uma parte que pelo jeito anda podendo ser sozinha, um espectro do corpo inteiro quem sabe, um recado para quem não lembra um alerta para quem lembra e não se manifesta.

Este ilustre que se apresenta tem em sua testa a marca de um ponto vermelho, que tanto pode ser sangue como pode ser um alvo caracterizado, e em sendo uma coisa ou outra sugere muitas ilações.

Analisando o lado mais intenso, com tantas imagens, pode parecer que a alvejada detonou um sangramento que desce apenas por um lado o que pode dimensionar que seja por ali que o passado está a se esvair, esmerilhando a face, colocando nela alguns adereços inusitados, descendo até o pescoço sendo acompanhando por um sorriso de caveira esgazeado. Porém, existe sempre aquele lado impávido que não se deixa contaminar, antiaderente e impermeável ao entorno.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Janelas


As janelas das residências são como um olho mágico que confisca o exterior para dentro de casa e assim, quando o sol está brilhando tudo o mais em redor se aquece e se ilumina como se fosse o último dia que isso fosse acontecer. Um rei tem de ser reverenciado sempre e, por este motivo, todas as aberturas o recebem, sejam elas pequenas ou grandes, requintadas ou rusticas, bem ou mal engendradas, pintadas ou de outro material. O que importa é a paisagem que se descortina funcionar como um quadro que tem vida própria, que tem independência e liberdade para ser.

As casas que se cercam de verdadeiros olhos para o mundo se alimentam da vida que segue através delas, porque ao se debruçar para o dia que rola, tanto a fragilidade como a fortaleza de viver se anuncia. Pode ser que o vislumbre seja a natureza mais agreste, um jardim caprichado, uma horta impecável, um galpão de festas, um parquinho para as crianças, um instantâneo das dunas movediças, um oceano cheio de humor e, um peitoril que abraça o que de fora aparece.

Este caleidoscópio para a vida pode abrigar em sua superfície gotas de chuva quando a intempérie assola o litoral e estas vão atuar se travestindo de lindas miçangas refletindo a luz do dia mais cinzento, escorrendo lugubremente e arrastando pequenas sujeiras, folhas, insetos que por ali se aventuraram, mas foram sugados pela natureza liquida e feroz dos temporais. Uma perspectiva animadora poder ter na linha de visão alternativa que vão se entrelaçar com o que acontece lá fora.

E assim se faz uma casa, cheia de vãos que trarão a alma do mundo para dentro de si, para ser o fio condutor do que acontece em família, para registrar o externo que renova o interior, para lembrar que existe vida lá fora, para socorrer quem mora só, para homenagear quem não mora mais ali, para chamar quem se evadiu, para guardar lembranças remotas, para ser a rota do dia para quem não quer se perder, para consolidar objetivos, para unir o que está prestes a se desintegrar. Uma casa com boas janelas espia a história do lugar.

terça-feira, 23 de maio de 2017

O antigo


Tudo atualizado, apressando as tarefas que nos mantem de pé todo dia em busca de finalizar o que nos foi apresentado ontem ou há bem pouquinho tempo e iniciar com ligeireza o que inventamos ou bolaram para estarmos sempre sentindo falta de alguma coisa ou de alguém, agitando as horas e deixando bem claro desde o alvorecer que daqui para frente o moderno e o automático fazem parte do nosso corpo.

Invencionices fazem a roda girar sempre para frente e vai facilitando decisões, atalhando caminhos, pulando etapas para chegar mais cedo em lugar nenhum, repetindo a leitura da bula todos os dias, porque quase tudo se mostra antigo e obsoleto rapidamente.

Para tempos em que tudo acontece desta maneira, cartas na manga são imprescindíveis, porque elas trarão para o efêmero de todas as coisas uma chance de bisbilhotar antigos alfarrábios com segredos descritos com um viés de outra hora em tempo, acionar ferrolhos pesados que certamente abrirão grandes caixas com tesouros diversos e que nem lembramos mais que existem.

Está sempre parecendo que nascemos ontem e que hoje nos encontramos com tudo fora de curso e forma. Corremos avidamente para atualizar o que é necessário causando surpresa, pois, aparentemente o descarte e a renovação não se concluiu, surgindo então aquele gavetão emperrado, cheio de escritos à mão, em letra bem desenhada e quase desconhecida dos pretensos autores. Ao deitar o olhar às memórias guardadas, seu conteúdo se encaixa com perfeição ao nosso apuro e pressa em caçar soluções para novos problemas.

Do mesmo jeito, na busca do recente vai-se tropeçando em objetos que se tornaram invisíveis por estarem em um mesmo lugar por tanto tempo, relegados ao fundo da prateleira, cobertos de pó, esquecidos em uma parede escura  e com sua história perdida. Ao olhar para o antiquado, com a luz da lembrança em perspectiva, tudo se renova.

domingo, 21 de maio de 2017

Segredos


Ele está ali sempre à disposição, às vezes um pouco mais alto, mais baixo, mais claro, mais achocolatado, mais rumoroso ou mais discreto, mas sempre recebendo quem dele se aproxima. Ele não altera sua feição mesmo que os seus adoradores o persigam com muitas selfies, com muitos chutes em suas espumas e também corajosos surfistas de todo o ano se embalando em suas ondas. Ele recebe todo mundo, no mesmo tom, e não deixa de lado sua imponência em nenhum caso. Às vezes se acalma para fazer companhia ao dia ensolarado e sem vento. Às vezes.

É o mar que recebe generosamente os segredos das pessoas que vão até ele derramar algumas palavras inaudíveis, afinal, sua extensão e profundidade são imensas e não lhe custa nada carregar para depois da arrebentação alguns segredos inconfessáveis, juras para um amor platônico, pressupostas brigas familiares, desencantos, promessas que não serão cumpridas e tudo o mais que pode ocorrer de fato, se por ventura o praieiro não for fazer sua consulta. O oceano com sua natureza grandiosa se torna um bom lugar para que se pense em voz alta os problemas, as tristezas ou as dúvidas que se afobam vez ou outra na vida.

É muito provável que a pessoa que aguarda uma orientação para suas preces receba algum sinal em resposta podendo ser uma água quente na beirinha em dia gelado, poucas e muito baixas ondas do dia parecendo murmurar alguns conselhos, o seu rugido pode também variar na entonação como se respondesse às perguntas que estão lhe sendo feitas. Mas, como todo confessionário tem que saber ouvir para depois interpretar.

A maré alta, que invade solenemente a extensão de areia pode ser uma tentativa de ajudar quem se aproxima dele nas dunas, que o avista de um lugar mais alto, que o mira em grande angular sem ter o atrevimento de chegar mais perto. Puro respeito. Então lá vem ele varrendo todo tipo de obstáculo beijar os pés de quem lhe teme voltando em seguida ao seu leito com outra bagagem que lhe foi sugerida nestes momentos mais nervosos. Em todos os dias esta atividade acontece, nos lugares mais povoados aos menos habitados, porque aqui quem ouve e depois responde é a natureza marítima.

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Evasão


Insuspeita, dei-me conta que ando com os pés fora do chão, que existe um vácuo entre mim e a terra e que ando vendo tudo do alto, em grande angular e com uma perspectiva tão grande que até fica difícil identificar tudo que preciso analisar. Parece-me, de pronto, que alguma força içou-me às alturas para justamente verificar se há possibilidade de colocar alguns pontos nos “is” desta vida que volta e meia sacoleja, dá para trás, mete medo e depois reflui.

Porém, ao sentir em mim esta cena me rebelei e resolvi que não iria olhar para baixo e assim deixei-me ir ao vento, hirta e dócil, contrariando a situação intrigante. O chamado colocou-me em uma posição singular e assim amarrada por um simples balão me lancei ao céu como se não houvesse outra coisa a fazer com meu destino.

Nesta subida, de certo modo involuntária, dei a partida para uma dimensão que retrata um ambiente onde moram estrelas cintilantes, meteoros que ficam gingando entre os planetas, coreografias inusitadas entre o sol e a lua e a terra ali em meio a uma teia costurada com raios de luz invisíveis.

Continuei na subida com a minha cabeça se enchendo do vazio que o silêncio impõe e por isso mesmo, quanto mais leve, mais subia, com o meu condutor cheio de vento a me levar para lugar nenhum, destino esse que ando me arvorando de conquistar, de me apresentar para morar, me candidatando para ser a titular e não somente uma admiradora.

Este voo solo me faz imaginar que posso cobiçar residir onde somente a natureza é quem dita as regras do dia, os ventos vão uivar ou se calar ao modo deles, o sol vai aquecer o lugar se por ventura ele resolver o fazer, e, assim a vida se simplifica no embalo do universo. Bom, com esta ventania e este mundo do que jeito que está me faltava escrever sobre delírios, desejos e metáforas porque assim mantenho vivo o sonho de me evadir.

terça-feira, 16 de maio de 2017

Limbo


Descobri que o famoso “limbo” não existe mais e assim, pega de surpresa, me vi fora do lugar em que me joguei antes de definir que tipo de vida eu gostaria, queria ou – deus me livre – deveria, ter. Nestes últimos tempos eu me sentia confortável em estar em lugar nenhum ou – melhor ainda – todo dia pensar que eu poderia ter uma vida diferente, espiar as opções reinantes, almejar outros rituais para a vida, acordar de manhã e decidir que chorar seria a pedida do dia ou rir a mais não poder de bobagens.

Acontece também, vez ou outra, de sentir-me picada por uma leve loucura deixando que ela adentre minhas suposições nesta borda em que me encontro e, ao brincar que perdi a razão me arvoraria de coragem de me desfazer do caos se mostrou muito atrativa. Deste jeito, talvez o pulo para o céu seja a condição mais viável e o inferno não teria voz neste conluio de mim para mim nesta margem da existência.

No lugar em que me determinei a fazer uma pausa, do lado de fora me espiam malévolas todas as coisas que faziam parte da minha vida e que hoje se apresentam como estranhas, como se, de certa forma, eu me houvesse evadido do “status quo”, como se em um arroubo determinei a mim mesma que de agora em diante o caos não determinaria meus próximos passos e que daqui para frente eu decidiria ficar neste lugar, para, por um tempo pelo menos, imaginar que estou sem pecado.

Nesta condição, não posso perder de vista o verdadeiro significado da palavra em titulo porque ela determina, assim como eu, que tudo que ali foi depositado resta em esquecimento.

domingo, 14 de maio de 2017

Minha mãe


É sempre o inesperado quem me acolhe ao lembrar-me de minha Mãe e quase sempre é algo que vejo em mim, o que não é difícil, uma vez que estou envelhecendo e meus traços vão tomando um contorno muito semelhante a ela, como uma condição atávica.

Ao andar pela casa vou tropeçando em quase tudo que lembra a casa dela, porque alguns objetos fizeram parte da minha vida toda. Além disso, o jeito de arrumar é muito parecido. Quase não possuo móveis modernos, meus enfeites são as porcelanas, pratarias e cristais que vieram desde a casa em que nasci passando pelas doações de tias e avós. A minha arrumação fica quase que sendo um santuário de lembranças e assim eu vou vivendo sempre de olho no que é belo, que tem tradição e que me conforta, comprovando que eu não preciso de nada.

Na aparência acontece quase a mesma coisa. Quando eu visto uma roupa colorida, que não é de minha preferência fica claro que fui empurrada para aquele figurino como se houvesse uma força maior. A mesma coisa acontece ao me olhar no espelho e ver em mim as rugas dela, o cabelo já está escasseando nas têmporas e branqueando no entorno do rosto, como assim foi com minha Mãe. Na manicure, as mãos que se estendem na vaidade são distintas na cor do esmalte, e então começo a perceber nossas diferenças.

Ao contrário de mim, ela era contida, não tinha o riso fácil e falava baixo, acho que era porque o seu interior de artista brilhante puxava o seu melhor para dentro, guardando elementos para poder dispô-los em suas artes manuais. Hoje eu sei que suas gargalhadas migraram no entrelaçamento das tapeçarias que tecia constantemente deixando um rastro dos seus sentimentos alegres e coloridos, pendurado nas paredes.

O brilho do seu olhar estava refletido nas mil miçangas com que bordou ponto a ponto meus vestidos de baile e suas alegrias ficaram enfurnadas nas longas luvas de cetim que compunha o traje que escondia meu braço magrelo e sem traquejo social, porém, minha mãe possuía glamour nato que assim me era conferido. Ainda escuto o rufar da máquina de costura que ela acelerava com os pés parecendo um trem antigo que ruidosamente lhe fazia companhia.

Não tenho o dom que minha mãe tinha para a costura e o bordado, mas gosto de pensar que a minha intimidade com a escrita e meu despudor em demonstrar o que me vai dentro da alma, costurando histórias através das letras, vem deste talento dela.  

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Anoitecer


Aqui na praia não anoitece. Aflora um romance quando a noite chega silenciosamente, numa dança suave, enquanto a luz do dia vai se entreverando romanticamente com a penumbra, onde uma parece não querer dar o seu lugar a outra. E assim, entre a luz e a escuridão, a noite vence, louca para se deitar junto a este mar especifico, empurrando o brilho do sol para outro canto e este não terá alternativa do que a de nascer de novo. Fazer brotar outras flores, aquecer alguns lugares mais que outros, germinar novas sementes, liquefazer o gelo, alumiar leituras e aquecer corações gelados. Vai dar a sua volta ao mundo, deixando para trás mais um dia, que em sua volta amanhã de manhã, não será o mesmo.

O anoitecer acontece com muita pompa por aqui, mas não com aparato, muito pelo contrário, a natureza toda se cala para viver este momento mágico onde tudo se acalma rapidamente, os bichos silenciam suas crias e rumam para seus lugares, as pessoas correm as chinelas para dentro de casa, os carros adentram suas garagens, as bicicletas encostam-se aos muros, os cachorros se reúnem debaixo de algum arbusto.

As sombras da noite sempre vem trazer a quietude e a prece de agradecimento por ter, antes dela, recebido a luz do sol, porém, é com o mar que acontece a melhor conversa, porque quando a noite chega, as ondas – vez ou outra, é verdade – baixam o tom assim como a sua dimensão diminui parecendo ajoelhar-se para o milagre que a natureza impõe. E assim a dança continua com enlevo, em alto mar desta feita, derrubando os raios de sol que iluminavam toda a fauna marítima e por ali também se aquietam seus moradores, para que após esta virada, tudo recomece.

O entardecer prenuncia que se acalmem os ânimos, que se baixe a crista, que se eleve o pensamento uma vez que a linha de sombra avança pelo mundo todo varrendo da face da terra a luz, deixando que do alto se entreveja sua linha avançando, sem trégua, sem percalços, inexorável. A vastidão do mundo é tomada de negrume por um lado enquanto o outro se ilumina novamente, talvez agora com tarefas que não foram finalizadas ontem, mas como sempre, hoje é apenas mais um dia.   

sexta-feira, 5 de maio de 2017

A corrida


Olhei para esta foto e me incorporei a ela como se ali estivesse meu corpo, meus cabelos, meu vestido e o mar, meu companheiro de todas as horas, mesmo que ele se manifeste diferente todos os dias. Vai ver que eu sou parecida, gosto de me camuflar, de receber da natureza a reza do dia, se vou estar com humor chumbado por conta da umidade, descabelada por causa dos ventos ou serena como ondas no quebra-mar em dia ensolarado. Gosto de pensar que o mar é meu irmão, minha irmã, meu pai e minha mãe e que os agregados que se manifestam com ele por conta da vida que anda, são meus amigos, meus conhecidos e mais o que passar na minha frente.

Vai daí que andar junto a ele me traz novas vidas sempre, nas caminhadas volto em minhas pegadas brincando de saber o que eu estava pensando quando fui até logo ali, mas nunca consigo lembrar porque a cada passo verto lágrimas de toda a espécie, sorrio sem achar graça, olho sem ver, sinto calor sem estar coberta e às vezes, não consigo levantar o olhar para ele, que me acompanha com seu alvoroço.

Com este meu jeito de ir, ao voltar o caminho minhas pegadas já sumiram, então lá vou eu a costurar o que a vida me apresentou neste dia. Pode ter sido algo que nem tomei conhecimento porque na beira do mar não tem telefone, então pode ser que alguém esteja tentando me contatar, mas eu não estou na casa, pode ser também que as telas da modernidade estejam também piscando desesperadas me mandando recados, mas estou indisponível.

Gostei desta parte do “indisponível”, um pecado mortal nos dias de hoje, porque não temos autorização para ficar de fora do “modus operandi”. Assim que eu e minha “família mar” reservamos as manhãs para esta conversa de louco, esta troca de energia, este jeito inusitado de driblar a tristeza, esta maneira incomum de ser um todo, mesmo que a atmosfera não nos deixe ficar bem pertinho, mesmo que as ondas não venham banhar meus pés, mesmo que a família esteja revolta em clima que não consegue sequer olhar para mim. Anda ocupada.

A figura demonstra um jeito apressado e talvez seja a perfeita demonstração do que houve, da pressa que eu tinha em mudar, da urgência em voltar a ser quem eu era mesmo que a corrida pudesse ser apenas uma vontade e não uma certeza de chegar ao paradeiro. 

segunda-feira, 1 de maio de 2017

Dia do Trabalho


Um dia inteiro para se dedicar a diversas atividades que, para alguns, foi escolhida a dedo, outros tiveram um assopro de família e não foi possível desviar da sugestão por tantos motivos, outros, simplesmente não tiveram aqueles segundos de tempo para pensar no que fazer para ganhar a vida e então resolveram exercer o que mais próximo estava de lhe encher a barriga. Deste tempo todo, a luz do sol ilumina quase que todos os trabalhos, mesmo que o vivente esteja encerrado entre quatro paredes com luz artificial. Não importa, o dia é do trabalho, o restante do período fica a critério de cada um e assim a vida ficou deste jeito. 40 horas. A rebarba é para se virar.

Desde que a humanidade iniciou o processo de manda quem pode obedece quem tem juízo a sobrevivência no trabalho se partiu em muitos meandros com disparates em relação à idade de inicio do labor convencional. Acabou de certo aquele alvorecer com o sol inundando as florestas, os homens com suas armas se embrenhando na mata à dentro para trazer a comida e as mulheres a cuidar da terra, das crianças e dos preparos de raízes ou o que cada povo tinha para seu provimento.

Muitos modos novos de busca do sustento surgiram desde então. De um lado a escolha já está assentada porque a família cimentou um bom tanto do caminho, podendo assim seus descendentes, com preparo, pegar a mochila e seguir adiante em passo firme aproveitando a chance que foi dada, recebida, obedecida e trilhada com muita honra. Uma aura de tradição acompanha quem desde cedo teve apontado seu caminho de 40 horas. Ou mais.

Mas, oportunidades são voláteis, são como borboletas do mato que ensaiam suas danças tremulando por entre flores e arbustos com tanta inconstância que fica difícil lhe seguir o roteiro.  E, por isso, vêm de arresto as profissões que foram garimpadas com certo cuidado na escolha, buscando no seu íntimo a qual talento quer servir para toda a vida, o que lhe irá assegurar seu sustento e dos seus da melhor maneira e tantos outros quesitos, que, de fato, ninguém vislumbra na hora da escolha, mas seguir em frente é urgente.

Mas, neste emaranhado de horas de trabalho convencionadas faz muito bem elevar uma prece em louvor a grande parte da humanidade que sequer teve tempo de pensar, de escolher, de trilhar. 

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...