domingo, 29 de setembro de 2024

Ímã invisível

 

A corrida nos espaços por aqui tem sido, em sua maior parte, dos insetos que voejam para lá e para cá ensandecidos com o sol bem humorado que anda se espraiando cada vez mais cedo e derramando sua quentura para todo canto acordando homens e bichos, terra e seus filhos e o mais que depender dele, percorrendo toda a trilha que brota do chão como se não houvesse amanhã.

Não existe prisão para a natureza que se transforma a cada minuto se divertindo com sua transformação relatando visualmente seu progresso, comunicando aos seus pares a caminhada até chegar na florada, se enredando com seus amigos rastejantes mais chegados e também alguns desconhecidos, se somando à rede que cobre os caminhos em alegre conluio festejando a vida que acontece ao ar livre.

Em contraponto ao milagre da vida se transformando, a natureza invisível eivada de brisa de todos os matizes, sem que se possa perceber, corre solta pelo ar selecionando conversa entre um e outro,  embaralhando o movimento que se joga para todos os lados sem um alvo definido, ousando enviar para um mesmo ponto quem participa cegamente, reunindo atrativamente para uma prisão até então desconhecida todos os que andam por ai assobiando, com a mão no bolso, olhar perdido, garganta seca e calada, passos em falso, braços inertes, pernas mambembe e cabeça abaixada.

O ponto de convergência desta corrida cega por debaixo dos panos se encontra em um canto estratégico movimentando-se como um grande imã do tempo que corre para lugar nenhum. 

quarta-feira, 25 de setembro de 2024

Delírio sem bússola

Topei com esta meia ponte, meia coisa, meio caminho, um resto de tudo bradando por independência do todo que o largou ali, despedaçado, sem rumo aparente e sem utilidade e que agora resta singelo e solitário exibindo nobreza por se encontrar sendo único, talvez por ser um pedaço.

A passagem avariada aponta para o nada, mas parece tudo porque ao alcance dos pés está o misterioso oceano balançando em vagas imensas, espalhando o brilho da sua espuma no ar chamando para uma aventura misteriosa em suas profundezas, se jogando sem medo em braçadas na gelada superfície havendo também a possibilidade de se entregar ao casco de um bote e remar no ritmo das vagas imensas sem destino e sem bussola.

A aventura não para por aí ao se espelhar límpidas águas no entorno da costa com uma fauna de superfície exibindo sua performance, sua figura multicolorida, sua agilidade silenciosa demonstrando uma população exuberante que faz um convite expresso para os encorajados imergirem sem temor em suas águas densas descobrindo o mágico mundo das entranhas do oceano.

A meia ponte continua ali, inerte, envelhecendo a estrutura sem se partir em mais um pedaço, usufruindo calmamente do destino espetacular que foi criado ao se deixar dilacerar e ali estar aparentemente sem propósito. Aparentemente.

segunda-feira, 23 de setembro de 2024

A Primavera e a Vida

Quem sempre chega cantando é o vento que impera pelas bandas de cá como um rei, causando modificações por onde passa, sempre soberano nas suas falas e em sua mania de assobiar sem cessar pelas esquinas e por todo canto é ouvido, sem trégua.

A chuva aparece na sequência unindo forças com a atmosfera em alarido fazendo todo o sentido, uma vez que chegou a hora da galera em trânsito encher o bagageiro e pegar a estrada, este caminho que foi o protagonista do desarranjo territorial e superlotou a paz reinante neste fim de mundo abençoado por Deus.

Assim se regozija a bicharada que devagarinho vai saindo da toca, mostrando a cara entre raízes, fazendo companhia aos alados que se empoleiram nos galhos desnudos das árvores e assim o movimento passa também por debaixo da terra, nas areias da praia, nos cômoros finalizando o corre-corre para a nova estação nas ondas e espumas da beira do mar.

A Terra, ansiosa na expectativa da entrada da nova estação dá voltas sobre si acordando quem anda sonolento e preguiçoso e assim o contingente de vegetação que se restaura dá o ar da graça e vai surgindo a Vida com singeleza, perfume e alegria reunindo após o sono invernal todas as cores e formatos do Universo. Por último, e mais importante, surge o manifesto da Vida que abençoa este momento revigorante da terra com reflexo divino no espirito de todos.

sábado, 21 de setembro de 2024

Adeus

 

Tem um tempo de partir, de subir no velho caminhão, lançar um olhar de esguelha para quem fica e tomar novo rumo, de preferência sem saber o destino escolhendo um dia atrás do outro para estabelecer novas rotas ficando de olho no sol que aponta luz e sombra a cada hora e deste jeito bem natural a viagem se estabelece para algum ou nenhum lugar.

Levantando poeira, sacolejando entre pedregulhos, estacionando no meio fio, aguardando que o trovão ribombe e a chuva caia a viagem do adeus vai tomando forma mesmo que ela tenha acontecido sem aviso prévio surgindo em algum momento não bem identificado. O viajante não faz caso se não há motivo, roteiro e muito menos destino agendado.

A bagagem que lota a caçamba da velha camionete é composta por artigos que já não fazem sentido em tempos de agora, de preciosidades que perderam o seu valor no decorrer dos anos, de afeição exagerada a objetos, de apego incondicional para o que já não faz parte do cotidiano. O velho motor parou de roncar alto ressoando macio uma vez que a carga foi deixada para trás com um adeus agradecido.

Na contrapartida, a cada amanhecer renasce os novos sentimentos, palavras nunca ditas surgem alinhadas, sons nunca reparados reverberam no espaço, pessoas indistintas fazem parte do cenário, vozes importantes se proliferam e devagar, em qualquer lugar, o presente toma novo formato.

quinta-feira, 19 de setembro de 2024

Sequestrados

 

Coloquei o pé na rua, olhei para um lado e para outro, olhei de novo e de novo e novamente e não encontrei uma pessoa sequer para dar meu bom dia, afinal, imaginava que a partir da porta da minha casa para rua a existência corria igual ao que sempre fora, a não ser que a noite escura tenha vindo abordar sorrateiramente o meu modo de discernir o mundo de hoje e viver a vida.

Vida essa que neste dia iniciava com a luz do sol a pleno, o trem apitava com fôlego, o padre chamava os fiéis com o valsear do sino, os namorados arrulhavam pelos muros, as crianças corriam atrás de uma bola ou ziguezagueavam em suas bicicletas e as avós colocavam seus aventais ensaiando com a vizinhança seus falatórios do dia.

Percebi que esta era apenas a imagem do meu cotidiano que insistia em tomar conta do meu espírito talvez porque não era mais possível andarilhar por entre desumanos sequestrados dos seus sentidos mais básicos de convivência, de perfis emoldurados como bonecos de cera que seguem como autômatos teleguiados por ondas eletromagnéticas, não tomando ciência se existe algo importante além deles mesmo mergulhados em múltiplas telas com formatos diferentes para si ou para ninguém do outro lado.

Com assombro ingênuo caí em mim da realidade caricata que circundava os lugares, os mais variados, os mais populares, os mais ermos, enfim, a vida como ela era acabou de ser sequestrada por seus próprios protagonistas.

quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Sussurro

 

A imagem noturna se enquadrou na minha janela escondendo tudo o mais que poderia haver ao seu redor imperando majestosa frente ao meu olhar admirado, tanto pela grandiosidade da estampa quanto pelo estupor de me encontrar sem palavras sequer entreabrindo os lábios para esboçar um sorriso, soletrar uma letra, murmurar um verso, reverberar um mantra ou outro manifesto qualquer. O alfabeto inteiro me faltou naquele momento, mas me sobraram murmúrios.

Impávida continuei diante da quietude de todo aparato da natureza que se descortinou com humildade frente a mim me deixando bem à vontade para estabelecer, agora, uma comunicação comigo mesmo por um fio de voz, um cochicho ou uma rouquice inaudível tal a preciosidade daquele momento em que a natureza inteira que me circunda dignou-se a vestir-se de gala e dar um giro demonstrando que a beleza da noite emudece o espirito, embriaga a alma tornando o alarido cavernoso e sutil.

Assim como a imagem surgiu das sombras da noite esvaneceu-se no ar como pó de pirlimpimpim talvez se preparando para mágica e encantamento alhures, quem sabe agora com trinados ressoando boas vindas, gorjeios especiais e sussurros mansos indicando onde se colocar para ser melhor visto.

domingo, 15 de setembro de 2024

A origem

 

Mergulhei fundo no buraco que se abria aos meus pés encarquilhados pelo tempo e assim determinada enverguei uma voadora mundo abaixo sem medo de revés, sem temor da volta, sem receio de me perder, sem ansiedade de ali  encontrar os fantasmas reais e imaginários, os reis e rainhas nomeados, os santos e os demônios que ali se refugiaram, usurpando minha vigilância e meu zelo para mantê-los longe, em segurança. 

Premente é desvendar os segredos que eu mesma tratei de esconder no fundo do poço uma vez que notadamente eles não se ocultaram ao rés do chão e assim, com insistência infantil retornam à beira da trajetória vivida fresteando meu espirito, murmurando sandices do acontecido, do presente mambembe e do futuro fantasiado.

Com impertinência iniciei o resgate de toda a turma que amontoada nos recônditos escuros do fundo de mim fingiam agora serem de bom coração que a mim vieram em socorro nos momentos de dúvida, de medo, de tristeza, de penúria.

Não contavam que neste momento venho armada de todas as ferramentas que meu espirito disponibiliza e com eles vou dissipando todos os verdugos que sorrateiramente se acomodaram junto a mim com sopros de sofrimento irreal. Cheguei à origem e de ora em diante montarei guarda.

sábado, 14 de setembro de 2024

Passo Divino

Achei um caminho inusitado neste dia em que o Divino se acomodou entre nós parecendo estar com intenção de perambular por aí como quem não quer nada se fazendo de quase invisível deixando à mostra apenas um livro aberto que aguça a curiosidade do desperto na madrugada, do olhar que se estica como elástico forte, como mente agitada pelo terror da noite. É para estes que o livro se abre sem pudor e sem explicação, balbuciando em suas páginas apenas um rumor do que acontece aqui e ali numa instância para prestar atenção.

Faz bem olhar com cuidado o conteúdo que emerge das páginas e vão se acomodar por aí em meio ao nada parecendo ter a intenção de prosear com o desconhecido, de alertar o adormecido, de brincar de esconde-esconde com o cotidiano pacato do lugar, afinal a página virada para ser lida foi impulsionada sem critério do que revelar.

A interpretação me pareceu uma brincadeira de criança, eivada de alegorias sutis brindando o leitor num jogo de adivinhação e de alegre passeio por entre suas ideias, da mais simples à mais estapafúrdia, da mais complexa à mais bucólica demonstrando que tudo pode ao se desvendar a lauda de um alfarrábio qualquer  desde fechar sua página peremptoriamente por absoluta rejeição, por descaso, ignorância, ou solene aceitação da brincadeira das palavras grafadas permitindo o nascimento de personagens de vários matizes.

Em espaço reduzido a imaginação trava uma batalha campal no espirito que busca alimento para alma e que se nega a empobrecer de versos que saltam e vagam pelo tempo de todos com promessas acreditáveis e outras vãs.

quinta-feira, 12 de setembro de 2024

A claraboia

 

Ela surgiu à minha frente de surpresa uma vez que eu não tencionava na minha caminhada adentrar em nenhum lugar fechado pois havia urgência em respirar os ventos marítimos mesmo que estes não rescendessem seu aroma, por ora, e seu brilho ocultasse a vista longa e ampla de sempre. Rumava pelo caminho buscando sair à luz e nesta condição meu corpo seguia o que comandava o meu desejo e meu pensamento.

A atração daquele afunilamento que a claraboia me proporcionou foi irresistível e assim entrei no recinto, mágico e belo por si, silencioso por natureza e receptivo por ser este o seu destino desde sempre.

A penumbra solene foi o impacto que primeiramente me tocou o fundo da alma e na sequencia o deslumbre do meu olhar no ambiente que resplandecia em uma miríade de tom sobre tom e sombreamento espetacular sendo que a luz se expandia na sombra como um caleidoscópio de cor cinzenta.

Segui através do ambiente sagrado e soberano onde os detalhes do entorno estavam obscurecidos pela aura de luz difusa deste dia. Me aproximei do fulgor que a claraboia permitia refletir naquele assoalho antigo e milhões de vezes pisado por tantas e tantas outras pessoas, pessoas estas desaparecidas no momento, talvez porque estejam escondidas na penumbra da  vida, ocultas no medo, subtraídas da razão sem conseguir vislumbrar o milagre que apenas uma réstia de luz divina pode alcançar.

segunda-feira, 9 de setembro de 2024

Reflexão mareada

 

O dia recém começou, minhas ideias acontecem ainda mareadas pela escuridão da noite com seus assombros, pontuados com capricho pelo meu corpo físico muito bem guiado pelo espírito que parece não se importar com a premência de um sono profundo, que não alavanca nada de importante, que não lembra coisa alguma relevante. Simplesmente me deixe estar, ficar ali, à mercê do silêncio de Deus.

Os pensamentos, na sequência da modorra do tempo se aguçam timidamente, justo no momento inaudível parecendo ter a intenção de  despertar, de atiçar, de  jogar o dia que teima em nascer, que busca a luz da paisagem, que insiste em chamar a natureza, a fauna, o mar, a areia , o sol e o vento a fazer parte.

No entanto o movimento não acontece como o previsto, as ruas não se movimentam como normalmente, a luz do sol surge apagada e sem quentura, o vento esqueceu de abrir as asas, o mar recuou e silenciou, a bicharada se escondeu, as gargantas apenas fazem movimentos caricatos e fenecem sem voz.

A vida parou de repente deixando todos os seus atores à mercê de si mesmo e de seus íntimos pensamentos, fazem parte aqueles que andam de lado dentro da alma para não serem vistos, os fatos que jazem escondidos nas gavetas lacradas da alma, se inclui os acontecimentos relegados ao esquecimento e as farsas brilhando desnudas com as verdades inundando o pensamento mais obscuro.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...