sábado, 29 de outubro de 2016

Ventos e que tais


Já fazia um tempo que eu não olhava para tão longe esticando tanto o olhar como o pescoço, como se isso fosse garantir melhor visão nestes dias agitados e apressados. Olhar para além da conta me fez pensar que se está de certa forma queimando etapas, parecendo que o que está na frente, e de preferência, bem distante, é a excelência do ser, é onde devemos chegar. Assim, as passadas estão cada vez maiores e até um pouco desproporcionais ao tamanho das nossas pernas, parecendo inclusive que os pés voam na frente e estamos nós, com o esqueleto franchado, correndo atrás para acompanhar.

E foi assim nessa carreira em modo automático que a natureza veio dar o seu recado fazendo com que os ventos soprassem de todos os quadrantes, cruzando suas origens nas esquinas, cada um se achando com mais pressa. Zuniam nas ruas, nas árvores, estremeciam os ninhos de passarinhos, balançavam os fios condutores das nossas várias modernidades, estremeciam as raízes da natureza devastando e misturando para todo lado tudo o que tivesse raiz e assim de uma hora para outra foi necessário perceber o quanto é insuspeita a vontade de quem não tem mando. Foi ali, junto às águas que margeiam nossas moradas que a ventania resolveu dar o seu recado, em pleno conluio com os encantadores de serpente como rios, lagos, mares, cascatas, riachos e vertentes.

O soberano achacou em primeira instância o alto mar soprando em seus ouvidos que os seus quadrantes entrariam em ação em relação aos seus pupilos do além-terra que necessitavam passar por um teste de admissão. Alguns não entenderam direito o parafraseado, porém assentiram estar junto. E foi deste jeito bem simplório que as águas da costa iniciaram a força-tarefa do dia.

As ondas do oceano nasceram a milhares de quilômetros da costa agigantando sua exuberância e mergulhando primeiro em suas profundezas, revirando suas entranhas e em redemoinhos audazes trouxe à tona o que não lhe pertencia, jogando-os para a superfície, sendo agora os ditos refugos donos do seu destino. Terminou rangendo os dentes, por que agora não será mais tão servil consentindo em ser o depósito do mundo.

De pronto as ondas gigantescas aportaram a costa levando tudo pela frente, com a sofreguidão de quem tem sido vilipendiado e tratado com descaso, com olhos vendados para a sua natureza e o meio ambiente. Este é um reclame vital para quem agride suas vísceras que abrigam muitas das joias mais esfuziantes e coloridas que a natureza pode proporcionar. Com mais um empuxo arrasador invadiu as balizas de areia invadidas, finalizando seu recado.

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O rei


Parecia que neste inicio de tarde a modorra havia se instalado de tal forma  na casa que quase todos os aspectos da vida doméstica sofria de um caso agudo de lerdeza, ali ninguém se movia com rapidez, não havendo celeridade para as coisas mais urgentes como ganhar a vida, sair para realizar várias tarefas importantes. Tudo isso parecia não ter a menor servidão, não havia premência naquela tarde.

O sol entrava com toda força arrancando de qualquer fresta o escondido, esturricando tudo o que é sensível a ele, além de dar-se o ar da graça de ser um rei assustador, colocando sombras em tudo, trazendo mais fantasias do que já se tem por aqui. Deste jeito o inocente quebra-luz dá uns ares de gigante se refletindo esguio como nunca fora, o mochinho inocente se torna banqueta de bar, as almofadas viram lascivos lounges assim como toda a decoração se metamorfeseia ondulando seus traços para mais e para menos, tornando a composição do ambiente totalmente independente do seu arranjo original.

As flores se arrebentam de tanta luz e a fotossíntese se acelera de tal maneira que é quase possível ver os brotos desabrocharem, as cores ficarem vibrantes, as minhocas se engalfinharem dentro dos vasos, abrindo caminhos mais arejados para si e para as raízes que acompanham a euforia dos amigos colocados juntos em um mesmo recanto. Mais para trás, as violetas sentem que a claridade aumentou em muito o seu reflexo e partem também para florar logo seus botões antes que emudeça a voz do rei.

A bicicleta por sua vez que descansa em meio as pernas da mesa quase vira uma carruagem de tanta luminosidade que lhe reflete o tampo de vidro antigo, por onde partes suas se abrigam, seus raios se veem refletidos em mil varetas contra a parede formando um mosaico de luz e sombra prateados. E assim, do mesmo modo que chegou, o tão reluzente rei inicia o movimento contrário e assim todos na casa vão retomando seu status verdadeiro, sem esquecer da insólita aventura deste dia depois da chuva.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

Chip


Vinha sempre do mesmo lado aquele sopro, minando o ouvido, carregando com força a pressão. Cabeceava tentando me livrar da intrusão, mas sempre parecia que ficava pior e então eu me entregava àquele zumbido monocórdio que tinha tantos tons quanto o silêncio do entorno podia retratar. E foi nesta hora que eu percebi um tom que se revelava sempre igual em dados momentos, como se a mim quisesse alertar para algo, alguma coisa ou fato.

Acabei pensando que eu talvez houvesse me esquecido de alguma coisa do passado, vai que agora é moda alinhar-se ao ocorrido ao invés de apenas olhar para a próxima pedra que deverá ser desviada, vai que não me dei conta que alguém esta achando que muita coragem não é tão boa assim. Pode ser que o meu anjo da guarda esteja apreensivo com algo que não estou vendo e deste jeito meio torto está querendo me chamar à atenção.

O aviso deve ser serio e pode ser que eu não tenha prestado atenção e agora querem entrar a todo pano dentro da minha cabeça. Logo agora que apaguei alguns chips mais antigos, arranquei os contatos de outros, parti em dois os mais novos e pisoteei uma boa parte. Lembro bem da faxina tecnológica que me atacou em apenas um dia e do resultado que este impulso ocasionou.

Passei a receber na minha cachola apenas múltiplos avisos, novinhos em folha, todos com um alerta de acordo com a importância, deixando o irrelevante totalmente fora do meu alcance provando que a manutenção que eu fiz estava dando resultado. Os componentes em que guardei os esqueletos mais arrepiantes estavam em local secreto porque fazem parte de uma história que não pode desaparecer, mas também não precisa ser atuante ou em todo momento romper as ideias inovadoras que são do agora.

Em pequenas caixas eu guardei outras coisas que não se deve esquecer e muito menos colocar fora, então não consigo enxergar o que está faltando dentro da minha cabeça que já não tenha sido inventariado, classificado e colocado em seu devido lugar com um capricho diário de ter em mente que de agora em diante tudo será diferente. Voltei atrás para rever as decisões, a varredura contumaz que me atacou e encontrei num canto jogado um chip bem antigo, cheio de pó. Dei uma limpada nele e coloquei numa vaguinha bem aqui no lobo frontal e ao ativar-se vi que saiu dali correndo a tristeza, instalando-se avidamente a felicidade.  

domingo, 23 de outubro de 2016

Pegadas


Amanheci seguindo as pegadas na areia gelada durante o nascer do sol, quando algo pegou a minha dianteira com muita leveza, furando a fila do meu itinerário. Quando dei por mim, havia pegadas profundas na areia e senti um arremedo de curiosidade que me impulsionou em ir atrás, como se fosse um cãozinho bem treinado.

As passadas eram leves, mas eu sentia que havia um peso descomunal quando o passo a passo parecia chumbado ao ter de seguir um e outro. Havia qualquer coisa secreta uma vez que havia um gingado cambaleante e uma sombra se agigantava e se apequenava dando dimensões metafóricas para minha observação. Não podia mais vislumbrar o sentido da minha perseguição, porém continuava na linha tênue do medo e da dúvida.

Pela frente apenas a imensidão da praia me dando a impressão que não havia trilha planejada porque ora ia para bem perto dos cômoros ora se abeirava no quebra mar com pés descalços e determinados não desviando das conchas, ouriços e peixes mortos, galhos e o que mais viesse pela frente.

Meu olhar se alumbrava para bem longe, tentando adivinhar em que destino de chegada ou retorno teria essa caminhada surreal e a impressão era que a ilusão tomara conta daquela beira de praia deserta, neste raiar incomum e mais parecia um atrapalhado jogo de esconde-esconde, que teimava em me assombrar. E, de verdade, como se ali houvesse um ímã se acelerava a busca do que foi derrubado em minha frente com este viés tão sorrateiro e sem que eu pudesse identificar.

Quando finalmente comecei a enxergar mudanças de rota, verifiquei que as pegadas tinham voltado ao seu ritmo, com marcas tênues, porém nítidas, com um caminhar muito mais forte decidindo com as palmas dos pés a forma da realidade retratada e fulgente, como se deste jeito estivesse imprimindo a vida de todo dia.

E é deste jeito diáfano que a desenvoltura de tantos recados aporta desta feita em um porto seguro, um lugar amplo, com sombras se entremeando brincalhonas, conjugando brincadeiras de ir e vir. E assim as pegadas sumiram na imensidão da paisagem, no afresco natural, e devagar, com certa apreensão dei-me conta que eu havia perseguido a mim mesma.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Uns e outros


Tantos se apresentam e tão poucos deixam lembranças memoráveis ou dignas que no nosso despertar de todo dia podemos sentir como se um suave perfume estivesse habitado nossa alma durante o sono e neste momento, ao abrir os olhos para o mundo a leveza de quem soube ser boa companhia nos acompanha.

São como fios leves de seda pura onde alguns deles estão um pouco rasgados ou desfiados, não por desleixo, mas sim por haver tido deste jeito tanta aferição do tema que como se fosse uma metáfora ele aparenta esta compostura. No lugar do vazio da alma se aconchega tantos pensamentos recorrentes que se entrincheiraram como uma ponte às avessas só para ter mais graça, para poder rir depois do desavisado argumento que em nada se parece com discórdia mas sim parecências.

Em outros casos pode parecer que foi o acaso que uniu as conversas e assim havia sempre aquele salteado de assuntos, ora versando para dificuldades variadas, ora lembrando fatos, e sempre com muito apego pela risada repentina, pelo desdobre de mudar o assunto sem serventia, do olho no olho, do cuidado extremo em tirar proveito do momento, do encontro. Nenhuma tentativa vã de destruir o pensamento que se eleva igual ao ventinho que sobra da costa, balançando cortinas, dando motivo para que as flores soltem seus perfumes e assim vai terminando a ocasião deixando um sabor de palavras que varreram da mente por alguns breves minutos momentos esquerdos colocando em contraponto uma conversa curadora.

Em certas ocasiões é o silêncio que grita dando ordens para que se faça com ele a dança dos gestos, que o acompanhe em um olhar alongado para todas as paisagens que passam aceleradas quando emudece o pensamento. Na abundância não sonora todos os sentidos são aguçados perpassando apenas sensações e deste silêncio orquestrado por tantos, por um ou dois fica um sugestivo alvitre do precioso alarme. E então se apresenta valente quem de certa forma sempre esteve ali fazendo segredo de tudo, ocupando os vazios sem alarde, conjugando todos os versos juntos e deste jeito assim, bem sutil, se vai como chegou. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Assuntos


Já fazia um tempo que o assunto não aparecia, talvez porque o próprio esteja cansado de si mesmo e não quer andar por ai carregado de contextos requentados, parecendo sempre querer ter uma sobrevida naquele canto da memória. Em boa hora isso sucede porque acabou de certa forma aquele jeito de guardar tudo para ver depois e assim vem o pingado de reflexões empoeiradas e recorrentes que se enredam como novelo de lã em patas de gato.

O enfado então tomou conta daquele momento tão crucial onde a única verdade que se apresentava era a retirada dos imprestáveis capítulos rejeitados daquela cadeia. Parecia muito fácil, assim de pronto, mas ledo engano, alcançar excessos calcinados pelo tempo e rotos de tanta espera não se oferecia como uma opção mais fácil. Mas o dito assunto resolvera que seria naquele dia que tudo teria de ter um ponto final. A descoberta deste recanto repleto de histórias não vividas, mal contadas e até inventadas era tarefa para experimentar o fio da navalha exercendo seu poderio implacável.

O cuidado agora era para se precaver de não ressuscitar nenhum conto entrelaçado, que muito bem poderia estar ali disfarçado para renascer na hora mais imprópria. Olhando agora com sangue nos olhos para as possibilidades nefastas de mexer neste vespeiro e ver em restauro os aborrecidos, era uma variante a ser considerada.

A moleira forrada de coisas antigas, irrecuperáveis por terem seu destino acertado com tanta antecedência talvez tenha sido varrida da memória recente por puro capricho amoroso, por ter focado em outra coisa, por embotamento das emoções, por paralisar ao evento acontecido e agora pode não resistir ao frescor do vento, as gotas da chuva, o ar da primavera, o cheiro do mar e interpreta de outra forma este passado morto vivo.

Com muito jeito a navalha mutante de fio intenso resolve mudar de lado e ao invés de cortar na raiz aqueles casos todos, se anima em fazer justamente o contrário. Com leveza e pontaria certeira vai desembaraçando os nós das historias, desenovelando cada assunto, separando o que é de amor, o que é de briga o que é de descaso o que é de injustiça o que é de tragédia.

E com novas cores e roupagens tem-se de volta um velho amor que na verdade é novo, brigas antigas se descolam como brisa, enganos renascem com sinceras desculpas, desencontros restauram possibilidades, os filhos retornam, os mortos perdoam, os amigos acordam, os familiares se reaproximam, o sono termina e a vida continua.

sábado, 15 de outubro de 2016

Leitores


Sempre vem dar uma espiada e com muxoxo tão peculiar vai dando sua narrativa que em nada se parece com uma opinião, vem sempre com muitas letras, com uma verve literária que faz corar e invejar letras tão rebuscadas, com frases tão encadeadas que tiram o fôlego da leitura, fará na compreensão. 

Aguardar a visita ilustre faz parte do ritual que imprime na folha branca a primeira letra o primeiro pensamento a primeira frase, que ainda nem destino acertado tem. A ansiedade aguarda em sentinela para que então tudo seja mais ou menos aprovado, mais ou menos refeito ou quem sabe até, mais ou menos aceito.

Interessante seria vislumbrar a companhia na interferência dos dizeres letrados, como se assim o texto fosse tocado como uma sinfonia, com vários acordes entre tantos que para se ter uma lauda uníssona, muita releitura haveria de trazer em tantos vieses, tantas outras palavras e, claro, tantos outros significados.

Baixando o sarrafo nas ideias, com uma verve lírica, contumaz e rebuscada, confunde as palavras tornando a intervenção quase que como um novo escrito, com outro nome e sobrenome, com uma altura inestimável, como uma querida companhia e a sobriedade vaza em todos os pontos alinhavados pela opinião tão bem acolhida, diga-se de passagem. Não se sente falta do que não se tem, mas neste caso, parece que o corrido de palavras ressuscita em novos ares o que já foi exposto e, deste jeito, agora, pertence a ninguém.

Em outro canto e na continuidade do trabalho de sarrafear o texto apresentado, o leitor conquistado arranca o que mais lhe parece ser proposto a si e rasga um pedaço do conjunto de vocábulos com uma intenção egoísta. Este jeito de surripiar pensamentos escritos oferece uma oportunidade para que as mesmas palavras se tornem outras travestidas com um novo sentido ou encarnadas em uma alma nova.

Ao iniciar a conjugação dos verbos é que a história vai sendo contada, vai aparecendo. Todo dia nasce um fiapo de flor, de raiz, de inço e deste jeito é a faina da escrita. Vai fluindo da ponta dos dedos, muitas vezes sem sentido atingindo quem de fato pensa.

quarta-feira, 12 de outubro de 2016

Mantra


É só me chamar que eu vou, parece que é um mantra, com um jeito tão intenso que parece acoplado na ossada, inserido na derme, imerso na goela, como se conjugasse todos os verbos desde sempre. Não era uma ilusão, era uma verdade até que chegou o momento em que estranhamente o decujo não soava mais os ouvidos com tanta intimidade.  Naquele dia alguma coisa estava diferente, e, de certa forma, não se escutava ao fundo aquele diz que me diz de todo instante, quebrando deste jeito impulsivo o som da ordem.

E assim nasceu o dia em que o mantra enraizado se iluminou sozinho e foi buscar em outras paragens o sujeito de sua vida, a sua concha ensimesmada, o seu pó de flor que espirra macio em todas as direções.  Assim chega um novo alvorecer onde todos os chamados são diferentes dando opções de vida, de poder pegar e largar, de não escolher, de deixar tudo, mas tudo para depois, de ouvir o som e a voz do vazio.

Na ausência do bate estaca monocórdio aconteceu o improvável, uma vez que em sendo liberto das amarras, os pulsos da mente ainda se contorcem na procura de desamarrar os nós, o ouvido se espicha notadamente como se faltasse algum acorde para o concerto daquela hora e os pés se posicionam na marcha que some na medida em que avança.

O caminho é diferente, não por ser novo, mas por ter sido escolhido justamente por não ter serventia aparente, por haver em seu trilho as mesmas coisas de sempre, porém, vistas da esquina em frente, com uma iluminação densa, com as nuances imperceptíveis aos olhares ligeiros e a interessante alternativa de poder escolher.


Agora sem rumo, caçando o improviso, o cenário se agiganta com força e se espalha dando asas a todas as preces sussurradas com fervor durante os dias e noites que se avizinham tão celebradas. O som é variado porque vem sem sugestão, o passe é livre, os nós jazem esquecidas pela inatividade, o alcance, outrora soberbo emudece para sempre e assim os passos acompanham a voz desafinada que ensaia outras Arias.

domingo, 9 de outubro de 2016

O fim


O fim surgiu assim meio que abusado, com cara de arrogante, mas, de tão determinado não meteu medo não, porque dele se farta em muitos e o excesso somente defende quem dele precisa partilhar, assim como os olhares altivos e as conversas enfastiadas estão dominadas, portanto, nenhum deles dará o ar da graça de ora em diante.

Surge então ele travestido de herói e acatar a serventia vira premência, sugar sua entourage para que sirva de todas as formas não é mais uma sugestão, mas uma ordem, apreciar sua presença neste tapete vermelho improvisado foi apenas uma das delicadezas e recepcionar o pretenso algoz se tornou a melhor forma de enxergar o que não se pôde ver até agora.

Se dúvidas houve sobre sua validade, elas assim se esfumaram no ar secreto que arrebanhava os melhores ventos, os mais desconhecidos pólens, os mais quentes raios de sol e as gotas mais prateadas que a lua nos pudesse ceder em todas as suas fases. Assim ele se adornava para encantar a tudo, porque já não era sem tempo que ele prometia vir para ficar. Suas sombras ladeavam todos os pormenores, invadiam a sutileza de dias mais calmos, se aconchegavam no day by day e na afoiteza do agora.

Afinal, ele era reconhecido por ser sempre uma perspectiva, um ângulo inseguro, um aparente terminal, um resoluto finalizador e de tanto em tanto nem tão bom parecia ser, mas isso, somente para quem não lhe desejava com tanto ardor. Achegar-se a ele de tão pronto foi como se a calma viesse bater na porta e ela, mesmo aferrolhada se abriu de par em par, acatou o fato inconteste que assim o determina e se instala finalmente, sem muito assuntar o entorno, sem muito duvidar das intenções e sem, obviamente, questionar a decisão.

Agora sim, todos os dias serão hoje, o mesmo sol será sempre diferente, cada noite servirá para acalentar os sonhos e apenas eles, os caminhos estão abertos para ir e vir, a mente despojada sem amarras, os assuntos com propósitos sem serventia, porém sedutores, um somatório de letras enfileiradas formando um encerramento feliz, privilégios de não fazer nada fazendo tudo, conversar pouco dizendo muito. Assim é o fim.

terça-feira, 4 de outubro de 2016

A rede


Olhei de longe o artefato e resolvi me aproximar, ele parecia estar ali justamente para que o enxergasse e jazia assim, no chão, em área bem extensa a bem da verdade e assim, aberto e espalhado com tanto primor me fez levar o olhar em volta para me certificar de quem estava por trás daquela instalação. Não vi ninguém, mas estranhei que o que poderia parecer lúdico de maneira nenhuma se aproximava disso. Não me importei e segui ali por perto.

Como não havia nenhum movimento no entorno, resolvi levantar uma ponta do que me parecia ser uma rede e me surpreendi porque a mesma levantou em toda sua extensão e flanou no ar, com sua teia rendada em fios fortes de corda, em magníficos losangos que pareciam tão simétricos que duvidei que fossem trançados por mãos humanas.

Surpresa, decidi puxar esta ponta e caminhar um pouco arrastando toda aquela extensão e qual não foi minha surpresa quando ela veio comigo, leve como uma pluma, porém, de tempos em tempos baixava até o chão e recolhia algo, com muita suavidade e delicadeza. E assim vinha fazendo este movimento constante. Como eu estava na ponta não conseguia perceber o que era. Somente que a rede continuava inflada, obedecia meu comando e agregava algo em suas entranhas tão bem delineadas.

Comecei a me sentir tão leve quanto a trama, mas também muito curiosa para saber o que ela enredava em seus fios nesta caminhada forçada que eu a levei a executar. E assim, estanquei a passada e ela me imitou se acomodando no solo. De certo modo agora ela tinha um aspecto diferente do inicio da jornada, já não estava transparente e impecável em seu trançado, e, por entre os fios harmoniosamente enredados eu percebia algumas sombras que assim de longe não se mostravam por inteiro.

Fui obrigada a me aproximar e desta feita deitar o olhar com apuro sobre o que eu havia arrastado sem querer, nesta caminhada de uma manhã com sol entre nuvens, inquieta e morna.

E para minha surpresa comecei a enxergar que esta cobertura tênue que eu puxava vinha atraindo para suas linhas tantas e quantas desconsiderações da vida, como aquele distrato, aquela conversa sem sentido na boca da noite, aquele encontro surreal, aquela abordagem sem pé nem cabeça, aquela reunião desconsiderada depois e muitas outras pequenas desventuras se uniam enfarpeladas. Dei-me conta que apenas em um momento de calma difusa e desencontrada, muitos senões se enredam entre si e mansamente se diluem no propósito.

domingo, 2 de outubro de 2016

A chave


Parecia invenção, mas era fato, e dava para perceber agora, e somente agora, que as possibilidades se aventavam se mostrando como uma chave escolhida a dedo, entre tantas outras e com certeza esta única irá abrir todas e tantas cancelas mesmo que não seja esta a vontade. Com este convencimento se vai ao encontro do que aparentava com tanto simbolismo ser apenas uma sugestão.

Ledo engano pensar que o caminho de descoberta estaria destrancado, e assim, tanta travanca quase liquefez a motivação. Mas, a imagem de uma clave em mãos vale a determinação de tentar todas as fechaduras que surgem pela frente e assim quem sabe, encontrar o quê.

O primeiro ferrolho que se deixou abrir tinha um jeito um pouco mais antigo, rangeu ao ser tocado, soltou farpelas enferrujadas, trancou um pouco mais, enfim, destravou. As cenas eram muito semelhantes ao ferrolho transgredido com uma disposição acirrada de forjar a ferro e fogo o que fosse na desarrumação a falta de prurido era inconteste e certo jeito calhorda de modo geral imperava.

O segundo portilho era diferente do anterior uma vez que ele se apresentava untado, fácil de destravar, com um aporte de engenhocas azeitadas e limpas. Ali dentro o cenário era iluminado, com muitas máscaras bem dispostas que apenas por detalhe também não levavam a nenhuma resposta. Frias, não tinham nenhuma quentura nem colorido e estavam ali aparentemente como um recado para sair às carreiras.   

O terceiro ponto da chave era uma manopla, pouco estruturada e de uma simplicidade rústica tão ingênua que ao menor toque de virada o segredo se abria. A partir dali, era estar em um portal muito diferente dos outros, um cenário onde havia apenas uma luz difusa que permeava pelos cantos vazios exalando um perfume que envolvia o ar rarefeito, criado para alertar, para suspender a respiração, cerrar os olhos e sentir. E é assim que aparecem as respostas, em uma página em branco, uma cancha vazia, uma ausência, um suspiro. 

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...