sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O rei


Parecia que neste inicio de tarde a modorra havia se instalado de tal forma  na casa que quase todos os aspectos da vida doméstica sofria de um caso agudo de lerdeza, ali ninguém se movia com rapidez, não havendo celeridade para as coisas mais urgentes como ganhar a vida, sair para realizar várias tarefas importantes. Tudo isso parecia não ter a menor servidão, não havia premência naquela tarde.

O sol entrava com toda força arrancando de qualquer fresta o escondido, esturricando tudo o que é sensível a ele, além de dar-se o ar da graça de ser um rei assustador, colocando sombras em tudo, trazendo mais fantasias do que já se tem por aqui. Deste jeito o inocente quebra-luz dá uns ares de gigante se refletindo esguio como nunca fora, o mochinho inocente se torna banqueta de bar, as almofadas viram lascivos lounges assim como toda a decoração se metamorfeseia ondulando seus traços para mais e para menos, tornando a composição do ambiente totalmente independente do seu arranjo original.

As flores se arrebentam de tanta luz e a fotossíntese se acelera de tal maneira que é quase possível ver os brotos desabrocharem, as cores ficarem vibrantes, as minhocas se engalfinharem dentro dos vasos, abrindo caminhos mais arejados para si e para as raízes que acompanham a euforia dos amigos colocados juntos em um mesmo recanto. Mais para trás, as violetas sentem que a claridade aumentou em muito o seu reflexo e partem também para florar logo seus botões antes que emudeça a voz do rei.

A bicicleta por sua vez que descansa em meio as pernas da mesa quase vira uma carruagem de tanta luminosidade que lhe reflete o tampo de vidro antigo, por onde partes suas se abrigam, seus raios se veem refletidos em mil varetas contra a parede formando um mosaico de luz e sombra prateados. E assim, do mesmo modo que chegou, o tão reluzente rei inicia o movimento contrário e assim todos na casa vão retomando seu status verdadeiro, sem esquecer da insólita aventura deste dia depois da chuva.

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