sábado, 31 de maio de 2014

Grisalhando


Eu tinha um ponto de luz bem no alto da cabeça, bem no meio do meu cabelo repartido de então e isso me deixava sempre em dúvida se eu estava ficando mais inteligente, mais alumiada ou se era apenas reflexo do dia. Do dia não podia ser porque ele se prateava a noite e não se apagava, e parecia que queria me dizer que veio para ficar e eu pensava que talvez ficasse pior.  

Larguei a refletir que ele traria companheiros aclarados que viriam até o topo da cachola para demonstrar sua união e força dando-me uma lição bem feita em relação ao tempo passando, o que não me importa nem um pouco porque significa que alguma coisa está sempre acontecendo, ao revés, de lado e talvez para trás.  

Continuei a ignorar os pontos, mais porque não tinha paciência de ficar na frente do espelho me examinando e também porque não havia mais novidades neste semblante que me pudesse surpreender. Já conheço de cor o caminho que os sulcos irão propor, para que lado vão se esgarçar e até imagino muito bem que o meu sorriso vai ficar de um jeito diferente uma vez que ele vai compor um traçado cada vez mais testado, com muitas novas linhas o circundando deixando a feição suave e esmaecida. 

O ponto a cada dia se expandia e, como eu havia previsto, já contornava o meu rosto com parcimônia no início, é verdade, aguçando a percepção de que eu estava ficando de cabelos brancos e estes invadiam a cada dia minha cabeleira crespa com muita autoridade.
 
Neste momento, por um tempo, lutei quimicamente contra eles, porém, ao perceber que a luta era inglória e que eu estava sempre em campo de batalha resolvi aceitar o que vinha e assim aprendi que algumas coisas que o avanço da idade nos oferece não precisam e nem devem ser controladas.  

Vou deixar meu cabelo com o seu jeito sugerido e de agora em diante enxergá-los como pontos de luz que iluminarão minhas noites insones, refletirão minha experiência no espelho e servirão de moldura nos porta-retratos demonstrando a singeleza da minha idade.

sexta-feira, 30 de maio de 2014

Suspensa


 
Não me perguntem como eu vim parar ali e ainda por cima tão bem acompanhada parecendo uma doce configuração romântica onde paira no ar um conluio, uma performance cálida, bem ao meu gosto e parece, somente a mim, porque quando eu quis lembrar do fato efetivamente, eu não o encontrei,  parecendo que ali havia mais uma vez uma ilusão. Ando assim, destrambelhada, aérea e com certos medos uma vez que eles se mostraram reais.  

Eu tinha certeza que alguma coisa havia acontecido comigo mas não conseguia lembrar exatamente o quê e por isso deleguei à minha moringa encanecida que ajustasse os fatos dos quais eu havia me perdido. Não deu outra, os anjos parceiros vieram me apontar que a situação de fato aconteceu, mas foi forjada. Então, mais uma vez caí dentro de mim mesma e sufraguei no idílio inventado e agora estou aqui a pagar a invenção, porém, com prazer. 

De concreto me passou uma determinada conformidade por eu ainda  ter a capacidade de me iludir, de acreditar e – porque não – de dar a cara a tapa.  Enquanto houver no fundo da minha alma créditos que me possam garantir um sonho, com certeza irei usá-los porque tenho em mim que  fica mais engraçado e divertido fingir que acredito na mentira do que desistir do que me ofertam. Afinal viver é isso. Enfrentar, aceitar, ganhar, perder, desistir, começar de novo e ir. 

Agora, avisada, volto ao sonho e me encontro no meu lugar, um paraíso na terra que tem endereço fixo e é aqui que purifico minha alma, deito louros aos desafetos uma vez que sempre existirão, engrandeço quem me ouve, faço ouvidos de mercador a quem me descarta e me apaixono novamente com determinada teimosia.

sábado, 24 de maio de 2014

Spa das letras


Aqui haverá de ser um lugar aonde todas as letras irão se reunir, deitando as palavras que formarão frases engatilhadas em textos com o propósito de instigar as almas quietas, fazer florescer as idéias dos tímidos, calar a voz dos mais injuriados e, principalmente, fazer valer a palavra, um instrumento imprescindível para curar todas as dores da alma.

Prepare seu espírito para ler pausadamente aquele conto que por sua natureza tem um término rápido. Talvez sua ansiedade chegue antes do fim e então, pare, volte ao começo, sorva sem precaução todos os significados, feche a página, respire fundo, entre na história para assim conseguir alcançar seu término. Sua alma se libertará ao perceber algumas coincidências deste pano rápido.

Deite-se em mornas águas, puxe os alfarrábios e deleite-se com a poesia, uma leitura rápida, profunda e que acompanha a vontade de ser ninguém nesta hora, de se ater no imaginário e na sensibilidade do verso em rimas alternadas e finais interrompidos. Acredite, todos os finais servirão como uma saída perfeita. 

Perambule pelo conteúdo e preste atenção nas fábulas porque estas te levarão a galope ao mundo da fantasia que permite subtrair a vida real nos instantes de leitura e desta forma agregar a estória à sua para se encontrar no outro e se entender melhor.

Levante a taça gelada e dê de cara com as situações da vida através das crônicas, do sobe e desce e da liturgia de se estar sempre começando. Relaxe, brinde, porque amanhã tudo rola igual e diferente. Este espaço liberta e está sempre em posição de sentido, esperando as inconformadas letras uma após outra.

 

domingo, 18 de maio de 2014

Maratona



Um pouco atrasada, me embarafustei no corredor livre da rua que recebia milhares de pessoas viciadas em esporte e que, provavelmente como eu queria beber na fonte do elemento viciante que é a endorfina que numa prova destas entra direto na veia, coisa que somente o esporte de longa duração pode ofertar. Eu e todo mundo precisávamos de força nas pernas e mente tranqüila para aceitar que cada passo nos leva ao fim. 

Pedalando, segui a massa resfolegante e percebi que uma maratona esportiva dentro da cidade é como transitamos na vida, às vezes andamos na contramão, outras temos que solicitar que alguém faça um stop no sinal para podermos passar, em outras horas, temos que desacelerar e dar espaço ao parceiro uma vez que talvez ele esteja em melhores condições físicas ou de ânimo. 

Seguindo adiante me emocionei ao ver dois homens correndo com uma fita enlaçando seus braços e constatei que um levava o outro, que era cego. Neste momento pensei na generosidade que assola competições, onde o corpo pretende superar seus próprios limites estabelecendo uma linha muito tênue entre o esforço físico e o mental. Se não se tem cabeça, não se tem perna. 

Continuei me enrolando entre competidores, me solidarizei com os simpatizantes nas bordas das calçadas que incentivavam a turba, com os treinadores de equipe que gritavam palavras de ordem para seus competidores, e estes, a cada berro, levantavam a cabeça e com o rosto esgarçado de dor saltavam o olhar para o objetivo que iriam alcançar. Gravei seus rostos em sofrimento quase na linha de chegada. 

A lição do dia é que a vida é igual a uma maratona. Preparei-me para as medalhas, mas talvez o treino não fosse o suficiente e aquela queda no meio do caminho foi um aviso que na próxima haverá desafios maiores, como se o meu corpo massacrado e em pedaços não bastasse.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Pacote


Até agora não fui feliz nos pacotes que a vida me entregou este ano, mesmo que eu tenha me esforçado em enxergar de fato o que me aparecia com bons olhos. Aceitei tudo o que veio na maior paz e fui deslindando com certa curiosidade, mesmo antevendo que a estória já começava de lado. O que seria da gente se refutasse tudo o que passa pela frente. Há que se deitar o olhar, andar um pouco junto e depois, lá na frente, rumar para outro caminho se assim melhor convier ou aparentar. 

Vai daí que recebi um inusitado embrulho com generosas camadas de papel e papelão o que me deixou curiosa em seu conteúdo. Fiquei ali parada, olhando. Não esperava por uma situação tão concreta e apesar de imaginar o conteúdo fiquei temerosa em abrir, mas me enchi de coragem e o resgatei. 

Fui retirando as tantas camadas do invólucro até chegar ao meu velho livro e revistas que havia emprestado, já nem lembro para quem, e também não pude descobrir uma vez que a encomenda chegou sem remetente, um fato curioso que me levou a pensar que alguém se acovardou na linha de chegada. Portanto, fiquei no ar imaginando em que lugares meus pertences andaram, em que mãos se assentaram, quais olhares recebeu e em que colos repousaram. 

Com sofreguidão e muito amor abracei o livrão fortemente contra o peito – um dos meus preferidos – e me pus a folhear as páginas já amareladas. De soco percebi que havia um cheiro peculiar rescendendo daquelas páginas, mais adiante me caiu aos pés uma pétala de rosa muito vermelha desidratada porém com seu perfume original, em uma das viradas havia num cantinho o papel enrugado que talvez tivesse recebido algumas lágrimas salgadas de paixão e bem no finalzinho, um ramo de arruda, muito amarelo, como um coração decepcionado. Desencorajei de folhear as revistas uma vez que estas já foram marcadas por dentro e por fora com minha opinião. Eu não queria me confundir. 

Com muita delicadeza abri o espaço na prateleira a qual o livro pertencia e o empurrei suavemente ao encontro dos seus pares. Agora vou esperar um período e ver o pó se instalar com suavidade pelas lombadas e daqui um tempo descobrirei se aquelas mensagens românticas foram apenas um desejo meu ou se as páginas voltaram desnudas de sentimento.

domingo, 11 de maio de 2014

Minha mãe


É sempre o inesperado quem me acolhe ao lembrar-me de minha mãe e quase sempre é algo que vejo em mim, o que não é difícil agora que estou envelhecendo e tomando os traços dela como uma condição atávica.  

Ao passear o olhar no entorno de minha casa vou tropeçando em quase tudo que me lembra a casa dela porque algumas coisas fizeram parte da minha vida toda. Mudam de lugar, mas carregam em si o espírito muito vivo que se perpetua nas lembranças. 

Quando eu visto uma roupa colorida, que não é de minha preferência, fica claro que fui empurrada para aquele figurino como se houvesse uma força maior e a mesma coisa acontece ao me olhar no espelho e ver em mim as rugas dela, o cabelo já está escasseando nas têmporas e branqueando no entorno do rosto, como assim aconteceu em minha mãe. Na manicure as mãos que se estendem na vaidade são distintas na cor do esmalte, e então começo a perceber nossas diferenças. 

Ao contrário de mim, ela era contida, não tinha o riso fácil e falava baixo, acho que era porque o seu interior de artista brilhante puxava o seu melhor para dentro, guardando elementos para poder dispô-los em suas artes manuais. Hoje eu sei que suas gargalhadas migraram no entrelaçamento das tapeçarias que tecia constantemente deixando um rastro dos seus sentimentos alegres e coloridos, pendurado nas paredes.  

O brilho do seu olhar estava refletido nas mil miçangas com que bordou ponto a ponto meus vestidos de baile e suas alegrias ficaram enfurnadas nas longas luvas de cetim que compunha o traje. Estas escondiam meu braço magrelo e sem traquejo social, porém, minha mãe possuía glamour nato que assim me era conferido. Ainda escuto o rufar da máquina de costura que ela acelerava com os pés parecendo um trem antigo que ruidosamente lhe fazia companhia. 

Não tenho o dom que minha mãe tinha para a costura e o bordado, mas gosto de pensar que a minha intimidade com a escrita e meu despudor em demonstrar o que me vai dentro da alma, costurando histórias através das letras, vem deste talento dela.  

sábado, 10 de maio de 2014

Gelo


Abri o congelador no final de tarde e me deparei com um tanto de gelo em bloquinhos, um grudado no outro, e não me veio à lembrança porque eles ali vieram parar. Retirei-os imediatamente para enxergar através da massa gélida e transparente os acontecimentos que assim, de improviso, não conseguia lembrar. 

Puxei o cordão do sol a pino e dias quentes quando a ordem era não ter nada dentro da cabeça, apenas o ócio, a rede, a folga e o descaso com as coisas mais práticas. Nada de complicações no dia e os ditos gelados estavam ali para demonstrar que era chegada à hora de celebrar, de misturar a bebida com água, tornando mais suave algumas, mais fria as que tinham outra densidade e outras o renegando, como se sua presença no copo fosse uma heresia. 

Enquanto o bolo de gelo descongelava lentamente na pia da cozinha percebi que nele havia certa dor em se esvair e fiquei com um pouco de dó de deixá-lo ir. Mas havia pressa em mim de abrir aquele espaço na geladeira e tive então que arcar com a missão inglória de ver derreter o futuro. Quem sabe o que aconteceria com esse depois. 

Os reflexos da esfera enregelada retratavam a ajuda dela quando me arrefeceu o inchaço do machucado, amenizou minha febre, deixou a bebida quente bem gelada alegrou o convescote cheio de falas aleatórias que se estendiam ao longo da tarde sem nenhuma pressa de findar. Muitas vezes o gelo se liquefez no balde, esquecido pela animada turma. Tenho certeza que ele se esvaiu feliz, escutando os últimos acordes do falatório. 

Agora, ele já não é mais nada e o espaço que se abriu - e que eu precisava – está disponível. Rapidamente coloquei meu chardonnay no congelador e assim a noite passou e eu fiquei na espreita de descobrir outros segredos da minha geladeira.

quarta-feira, 7 de maio de 2014

Vício



Depois de um tempo me dei conta que eu não havia tido um olhar mais acurado no entorno e também não mantive minha atenção azeitada como deveria. As divagações do dia nos leva muitas vezes para caminhos mais leves, mais floridos, mais imaginosos e, de certa forma, deixamos de lado o empenho na apuração.  

Anda difícil para mim me acompanhar minuto a minuto porque sinto certo desconforto de ter que examinar tudo e todos, ficar procurando cabelo em ovo e achar aquela agulha no palheiro. E então me distraí e me fui para o outro lado – todos tem um – aquele lado que releva, que abana a cabeça e sorri e deixa para lá. Não vou pensar nisso agora porque vai estragar-me o dia, não vou dizer o que devo agora porque não sei como abordar o assunto, não vou fazer o que urge porque não é o momento e assim fui saltitando através da vida em curso. Também não percebi o empurrão de quem me jogou não sei onde nem como, porque não tive a audácia de observar, desconfiar e temer. 

Percebi no finalzinho do dia que eu estava sendo atacada pela impermanência das relações e isso, sim, estava acabando comigo, me derreando a confiança, me encolhendo o olhar e me deixando com o sorriso amarelo e pior, escrevendo com o fígado. 

Não há mais espaço para sublimes cartas de amor, ou de rompimento, onde a letra se enrosca e se engrandece para que a carta, mesmo transmitindo más noticias, seja um objeto recebido com respeito e guardado molhado de lágrimas. O olho no olho está fora de moda, a intimidade se tornou palavrão, o carinho se perdeu nas  figurinhas virtuais e o desfecho ficou no Clic .

domingo, 4 de maio de 2014

Vermelho



Chovia muito naquele dia, mas não vi a água escorrer generosa orvalhando todas as flores e folhas dos parques nem lavar a rua que com sofreguidão bebia suas gotas, pois, nestas bandas, e nestes tempos, estão escassas. Não enxerguei como deveria a limpeza que ocorreu depois de trovoadas e luzes atmosféricas para todo o lado. Não via nada que o tempo queria me mostrar me sentindo cega à realidade. 

Surpresa e com medo fiquei encolhida em um canto aguardando que a fúria dos céus se acalmasse e eu pudesse enxergar a natureza. Foi em vão meu esforço de voltar uma vez que escorria para todo lado meus pensamentos desconexos e quanto mais eu me punha a ordená-los, mas difícil ficava. Ao puxar para perto de mim o descaso e tentar corrigir o rumo ele riu da minha intenção e como um alerta se transformou em uma poça caudalosa vermelha me dando o aviso que não adiantava mais, o estrago estava feito. Melhor se desfazer em um formato fácil de escapulir.

Correndo pelo mesmo cabedal retinto veio junto ao descaso o esforço empreendido na costura de assuntos que variavam em um colorido sem igual com capacidade de preencher horas de conversas aleatórias e por um momento, bem curto, imaginei que seria por este caminho que eu iria andar e, de fato, rumei com confiança. 

Percebi então que sob a guarda da minha mente estavam instalados muitos outros pensamentos que aparentemente se desencontravam na ida, mas que ao voltar se reuniam e desciam misturados. Talvez porque estivessem tão enredados que da situação não conseguiam sair e por este motivo se fundiam e escapavam de mim também em cor escarlate.  

Reunir emoções extremadas é o primeiro passo para deixá-las ir.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Teia



Fico surpresa quando percebo que existe no meu entorno vestígios e mascaramento de situações da vida cotidiana e me parece sempre que é para valorizar algum status que alguém não usufrui, porém adoraria ter e fazer parte, para que o mundo inteiro soubesse. Fica parecendo, a mim, que imaginar o que quer que seja se apresente como solução para a incompetência de ser. 

Tudo me vem à cabeça desde aquela criatura que coleciona um milhão de amigos no Facebook sem sequer conhecer unzinho pessoalmente. Aliás, a Rede faz parte do imaginário do fingimento de que todos são lindos, ricos, bem sucedidos, tem uma família grande e perfeita, casamentos impecáveis, afetos sólidos e um trabalho importantíssimo que lhe dá a maior felicidade. E, pior, acreditam que todos ali o admiram e lhe são caros. 

Este é apenas um exemplo do que a minha experiência pode detectar porque existem os sociopatas, aqueles que não se importam em se enredar em situações fantasiosas envolvendo em seu ardil imaginoso quem melhor lhe aprouver. 

Neste feitio eu ousaria citar as pessoas que se relacionam por interesse do que o outro possa lhe proporcionar que adoram a carona do que não poderiam ter acesso se não fossem conduzidas por quem pode. Também no rolo indigesto a galera camaleão, que se transforma em muitos conforme a situação e a necessidade. Tudo com o objetivo focado em preencher aquela necessidade contumaz de ser o que ele não é, ou não consegue ser. 

Porém, o pior dos fingimentos vem do amor dissimulado que se apresenta em uma teia que prende e não acontece.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...