sábado, 10 de maio de 2014

Gelo


Abri o congelador no final de tarde e me deparei com um tanto de gelo em bloquinhos, um grudado no outro, e não me veio à lembrança porque eles ali vieram parar. Retirei-os imediatamente para enxergar através da massa gélida e transparente os acontecimentos que assim, de improviso, não conseguia lembrar. 

Puxei o cordão do sol a pino e dias quentes quando a ordem era não ter nada dentro da cabeça, apenas o ócio, a rede, a folga e o descaso com as coisas mais práticas. Nada de complicações no dia e os ditos gelados estavam ali para demonstrar que era chegada à hora de celebrar, de misturar a bebida com água, tornando mais suave algumas, mais fria as que tinham outra densidade e outras o renegando, como se sua presença no copo fosse uma heresia. 

Enquanto o bolo de gelo descongelava lentamente na pia da cozinha percebi que nele havia certa dor em se esvair e fiquei com um pouco de dó de deixá-lo ir. Mas havia pressa em mim de abrir aquele espaço na geladeira e tive então que arcar com a missão inglória de ver derreter o futuro. Quem sabe o que aconteceria com esse depois. 

Os reflexos da esfera enregelada retratavam a ajuda dela quando me arrefeceu o inchaço do machucado, amenizou minha febre, deixou a bebida quente bem gelada alegrou o convescote cheio de falas aleatórias que se estendiam ao longo da tarde sem nenhuma pressa de findar. Muitas vezes o gelo se liquefez no balde, esquecido pela animada turma. Tenho certeza que ele se esvaiu feliz, escutando os últimos acordes do falatório. 

Agora, ele já não é mais nada e o espaço que se abriu - e que eu precisava – está disponível. Rapidamente coloquei meu chardonnay no congelador e assim a noite passou e eu fiquei na espreita de descobrir outros segredos da minha geladeira.

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