Escrever para viver e viver para escrever. A inspiração é o meu objeto de desejo a cada amanhecer e assim minha alma fica fortalecida no encontro do silêncio e da natureza marítima. Leiam com bons olhos! Mail para contato: verarenner43@gmail.com Vera Lucia Renner
sexta-feira, 31 de dezembro de 2010
Solitários
Na primeira vez me chamou a atenção um pé de sapato solitário perdido na beira do mar. Era de homem, e devia estar no fundo do oceano algum tempo, a confirmar seu aspecto, e me dei em conta de pensar em mil achados para o perdido. Jazia entre areias, mariscos mortos e tatuíras idem. Era um pé de sapato de couro preto com grossa sola borrachuda.
Poderia ter sido de algum macho marinheiro ou pirata de atanhos que talvez o tenha atirado em uma briga na cabeça de outro combatente. De pronto, me pareceu ouvir as passadas fortes do homem autoritário que se fazia atender através de seus passos pesados que o calçado abrutalhado lhe conferiu. O sapato, por incrível que pareça, não estava rôto, estava revestido uniformemente de uma camada de musgo marinho, ainda verde, com uma visão cabeluda, levemente sinistra.
Talvez tenha escapado do pé de seu dono em uma farra etílica, numa briga do macharedo por um rabo de saia, ou jogado ao mar pela mulher traída que o surpreendeu agarrado em outra cintura. Pode ter ocorrido em uma tempestade de alto mar e o sapato se desgarrou de seu corpo. Ou o corpo se esvaneceu restando apenas o heróico calçado.
Solitário na beira da praia veio dar o seu recado a quem o visse.
Da segunda vez foram os pedais que me alertaram na beira da estrada para um sapato feminino caído no asfalto. Um salto alto, bico fino, preto e com laço dourado. Novo ainda. Sapato delicado deve ter tido sua última noite calçando a senhorita fogosa e faceira que em passos de dança comemorou a noitada. Depois, rodou em doce passeio na Barra Forte do amado, a quem enlaçava delicadamente a cintura para se equilibrar. As duas pernas para o mesmo lado como convém a uma dama, e scarpin brilhando ao luar. Não foi percebido o desgarrar-se do acessório que por ali ficou pela sua própria conta, brilhando mais tarde, à luz do sol.
Dois pés perdidos no mundo. Macho e fêmea que nunca se encontrarão.
Desencontros relativos.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2010
Juros
Chegada a hora de pagar a conta e verificar se no ano que
passou ficamos devedores de juros cobrados por nos adiantarmos em nossos feitos
e estripulias, ou, se poupamos para garantir o depois.
No banco da vida vamos consultar o saldo de nossas atitudes e
verificar se ficamos qual cigarras zunindo de um lado para outro sem pensar no
amanhã ou se fomos a formiguinha que de cabeça baixa, analisou e poupou para os
próximos tempos incalculáveis.
Não é fácil fazer o cálculo porque nem sempre estamos com
crédito para decisões importantes e a falta dele, que pode ser a coragem, por
exemplo, nos deixou sem caixa para construir aquele relacionamento, para
conquistar aquele amor tímido que bordejou ao seu redor totalmente inseguro.
Provavelmente não aportou naquela instância em que nosso
alforje sentimental estava dotado de auto-confiança suficiente para aceitar a
oferta. Na surpresa do assédio implícito verificamos nosso saldo e constatamos
que não havia créditos para utilizar e enlaçar o compromisso. O coração,
inadimplente, deve a alma ao diabo por tanto sofrimento e desesperança. Sem
recurso e esquecido, amor adiado.
Vamos dar uma espiadela no cofre das necessidades rotineiras
e substanciais onde, com facilidade, verificamos a abundância e a prosperidade.
Não é de surpreender, porque os esforços de economia foram legados a estes
desígnios que deixaram sólida nossa posição frente ao mundo real. De prontidão
para as questões de método que nos impulsionam para o amanhã, sem juros a
pagar. Nosso crédito nesta conta enche as burras do lógico e do raciocínio
incluindo todas as atitudes correspondentes ao sucesso, como deve ser. Negociações e barganhas.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2010
Entrelinhas
Entrelinhas são um fetiche para quem gosta de
andar pela caligrafia enroscando uma aba na outra, fortuindo sinais, inventando
significados e cavando enormes profundezas para a mente vagar. A paranoia, lado
a lado como fiel depositária de todas as verdades ocultas do bem e do mal.
Flanar
na suposição e caçar a besta-fera do segredo.
Nas variantes do disse-me-disse são conjugados muitos verbos
e contados vários assuntos, pairando em estranhas estrofes e rimas sem graça.
Uma missiva enfarruscada, com meandros praticamente intransponíveis e com
imprevisível prego na roda. As entrelinhas confirmam. É rolo.
Teclados abençoados que aceitam todas as batidas ditadas pelo
coração entristecido e confuso seguem em marcha rápida. O alvo não importa. A
questão é desabafar e gravar em fileiras negras o que é pretendido que se
entenda. Um bom monólogo na suposição de acertar a mira e de pronto a distância
para o entendimento. Na transparência cristalina das entrelinhas. É rolo.
Entre palavras se anuncia o desvão do juízo e apesar da
presença e da voz a muda intenção se esvai por um sentido implícito. A maestria
de descobrir se impõe sedutora e esplêndida. Ao vivo as entrelinhas confirmam. É rolo. Em
recados sutis, muito espaço para sonhar. Ai meu Deus.
sábado, 25 de dezembro de 2010
Aquela mesa
A mesa, grande, naquele ambiente austero e clássico estava
bem disposta com poucos lugares e aguardava silenciosa seus convidados. Depois
de um ano em que poucos rostos puderam se enfrentar, e o olho no olho não
funcionou como a melhor e mais cordial arma, é chegado o momento de pousar em
todos, não só olhares, mas sorrisos abertos e gestos serenos.
Eles foram chegando um a um, com roupas informais, passos
lentos e animada conjunção facial, muito a vontade para o encontro. Em tempo
nenhum se percebia alguma pressa, olhar arrevesado ou preocupação das horas.
Nem todos se conheciam mas conversavam como se amigos fossem e a animação dos
assuntos versou sobre tudo.
A apresentação nem foi necessária, pois a indagação do olhar
e curiosidade não tinha pressa naquele grupo formado por pessoas de várias
idades, profissões e credos e que em dias normais tem como norte a pressa e a
contagem dos minutos auferida severamente. O evento moldou a simpatia e a
elegância de se comunicar com confiança e desejo de estar ali, simplesmente.
Em algum momento, me apartei, observando aquela cerimônia
singular em que a alegria e o bom humor geraram altas e sonoras gargalhadas por
um fio de uma prosa mais descontraída.
Nada parecido com aqueles olhares furtivos, dados solapados,
riso cínico e arrogância contundente. Percebi com tristeza que a ferida ainda
está aberta.
A
ocasião do encontro valeu como mais um sopro para estancar a sangria.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2010
O oitavo nó
Acabei colocando meu futuro trançado em oito
nós, delicadamente confeccionado por mãos que sabem o que fazem. Com um
colorido esmaecido como se já nascesse antigo, a tal profecia circunda meu
tornozelo direito. Claro. Não vou arriscar nada esquerdista ao prenunciar o
futuro, que tão diligentemente encordoei pensando em privilegiar todos os meus
desejos, minhas metas e, quiçá, meu destino.
Das profecias que a mim mesma dirigi, só lembro a primeira e
a oitava mas sei que cada amarração tem destino certo e faz parte do que quero
ser ou fazer. A primeira – saúde - me surgiu prontamente à mente na hora dos
votos, este bravo motor que não trabalha estragado e do qual depende toda e
qualquer jornada. Realmente foi uma sutura de fazer inveja, onde os pedidos que
vagavam pela mente agora se encontram enodados até se romperem os enlaçados ou
se cumprir o citado.
Acho que o que importa mesmo é o inicio da caminhada que
demonstra qual a fé que será professada para dar boa conta de tudo, um por um.
A condição de estarem todos juntos é o que faz a minha mente escapar e buscar
novas idéias, assuntos e apelos.
A conquista é que me faz arremeter na busca do que ainda não
sei, não vi ou não percebi. Ladeada por muitos afazeres vou acariciando cada nó
que me amarrou ao futuro, como a força do arco-íris que me leva à frente como
um empuxo de vida.
O oitavo nó me veio do momento: amor, laço final e frágil com
desamarro imediato, se for o caso.
Coisa boa.
domingo, 19 de dezembro de 2010
Dial
O que vem ao nosso encontro é analisado e catalogado de acordo com nossos sentimentos de prazer, ódio ou indiferença. E o descarte corre solto entre tantos assuntos a tratar, nem todos merecendo nosso cuidado assim como aqueles que queremos dar cuidado, não nos aparece pela frente.
Vida dura esta de brincadeira de gato e rato que, enquanto um persegue para destruir o outro foge para se salvar. Na contramão do desejo, escapa por entre espíritos, sorrateiramente, a verdade e o contexto se inverte surpreendendo com o brilho de coisas novas
Acertar o dial é o diabo.
sábado, 18 de dezembro de 2010
Estou fora
Temporada de fuga esta, quando a histeria toma
conta de todos como se o mundo fosse acabar e a mesma pieguice atravanca os
espaços e todos os rostos.
Estar fora deste redemoinho eufórico que transforma os
espíritos colocando-os numa luta insana de analisar e completar o que deveria
ter sido feito e, ai meu deus, rapidamente estabelecer no GPS nosso destino.
Escapar do progresso e vivenciar coisas mais simples, como
uma conversa sobre o tempo na quitanda da esquina, uma observação sobre as
alfaces, andar por entre ruas distribuindo sorrisos bobos. Lançar o olhar de
grande angular admirando toda a natureza, surripiando tiranamente o que não
favorece a vista.
Férias ao pensamento
que me açoda e me persegue com o algoz da eterna conexão, esta fobia humana que
nos aprisiona por livre arbítrio.
Total interação comigo mesma e com a minha vontade de
simplificar e olhar o futuro, e os outros, com lentes mais brandas, filtradas
na visão mais esmaecida de todos os desejos e paixões.
Passar ao largo do cinismo e das promessas não cumpridas, do
escamoteamento de sentimentos verdadeiros sem a menor ousadia na aventura do
caminho, porque a chegada, essa, poderá nunca existir.
Correr célere para tudo que possa manter a risada em alta
passando por assuntos como gato em brasas.
sábado, 4 de dezembro de 2010
Assassinato virtual
Relegar à morte um integrante, ou vários, de nossa lista
virtual é fácil. Basta um clic e aquela pessoa que de alguma forma está mexendo
com o nosso coração desarrumado, nos perde de vista. O movimento das redes
sociais é o instrumento para demonstrações mudas de indignação. A pessoa em
descarte vai levar um tempinho para se dar conta que foi varrida da vida do
outro.
Olheiros virtuais são todos, observando a vida de quem amamos
e de quem nem tanto, pelas idas e vindas dos sinais na telinha. É um entra e
sai diário e a cada sinal verde do outro lado uma sensação que revira nossos
sentimentos, aparecendo uma saudade, uma mágoa, uma lembrança, um sorriso, um
olhar, uma fala.
Volta com força à mente
aquele convite que se derramou entre lábios e que, infelizmente, não foi
possível apreender.
Balançamos no cotidiano de uns e outros, atentos aos sinais
de ausente, ocupado e disponível. Há certo conforto em verificar que todos
estão vivos e a pleno vapor, e se houver uma folga fazemos a chamada para uma
conversa de louco, onde um só escreve, o outro perde a leitura e acaba
escrevendo sem responder o que perguntamos.
Não faz mal, o contato
é que importa.
Estes sinais são um instrumento eficiente para retirar da
nossa vida possibilidade não conjeturada.
Muitas formas de fugir.
Duas lágrimas
O dia chora mansinho se unindo a tantas e tantas outras vertentes cristalinas que brotam de olhos de todos os matizes sempre mantendo a au...

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A traição impera de certa maneira no nosso dia começando pelo tempo que prometeu ficar de céu azul e se vendeu aos ventos e chuvas, desa...
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Descobri que estou sempre de malas prontas, não importando a viagem. Ao meu alcance, a bolsa do dia a dia que carrega em si as esperanças...