quinta-feira, 10 de abril de 2025

Fio desencapado

 


Estava tudo igual com a pasmaceira dos dias passando, o sol nascia e descia com variação de tempo conforme a estação, o mar com sua mutação incansável sempre à mercê dos senhores do destino como a lua e o vento, estes, incansáveis no trabalho de agitar a maré, brincar com o clima, zombar de quem necessita da parceria. Neste cabedal de água salgada indomável o balé é coordenado pelo planeta.

A natureza estava dando o seu recado, sem dúvida o mais fiel possível. Porém aos meus olhos havia algo diferente, que não combinava com esta mesmice dos dias. De alguma forma aquele mar ali estava bem desigual em sua essência e neste momento suas ondas estouravam desencontradas num amontoado nunca visto e com um som ensurdecedor.

 A partir desta observação surgiram outras, demonstrando que algo havia mudado, as cores do dia estavam espetaculares, o verde das árvores reluzia, os pássaros se aglomeravam frente a janela com a conversa mais estridente que o tom monocórdio costumeiro. As flores brotavam de todos os canteiros fosse ela de cultivar ou selvagem, enviando um recado que a terra fértil do lugar se encontra na superfície de uma calçada, na beira do valão, no cômoro, entre as pedras do caminho, cumprindo a sina de brotar sem hesitar.

A impressão era de que todas as cores da vida haviam se renovado de um momento para outro. Alguém lembrou com sabedoria que, vez ou outra, nos sentimos como dentro de um fio sem abertura, sem luz, sem saída. Mas neste dia o modo de fio desencapado vigorou no assombro de refazer o destino.

sábado, 5 de abril de 2025

Letras em tempo

 


Hoje com esta pasmaceira peculiar dos dias amenos de outono onde nem o vento nem o sol querem andar juntos, minha mente, meus sentimentos e minha alma, inclusive, entraram no modo retrogrado e desde bem cedo ando esquecendo certas palavras, dificultando a minha entrada neste mundo de falatórios de toda laia ao qual sou empurrada toda hora, todo dia, mas não todo sempre, acreditem.

Acabei pensando que talvez o dia, matreiro, sem ter o que fazer de relevante, tenha resolvido me enviar desafios, me obrigando a duvidar de minha linha de pensamento, ou do destino das minhas ultimas letras no confuso caderno de rascunho que quase sempre anda perdido pela casa. Posso encontra-lo na mesa de trabalho, embaixo do sofá depois de um cochilo extemporâneo, atras da almofada, em cima do fogão, da geladeira, da máquina de lavar ou na bolsa que nunca uso. Como o propósito de manter este rascunho é para não haver nenhuma perda do alfabeto, que está sempre me assaltando, a trilha dele dentro da casa faz jus ao conteúdo.

Neste exato momento eu percebi que o dito cujo de rápidas anotações não se encontrava à vista propositalmente e entendi, rapidamente, que o dia ameno veio para lembrar que algumas letras inventadas perambulantes acintosamente por aí, não teriam mais o meu prestigio, portanto, as eliminei cegamente e segui meu rumo ao santuário da minha escrita imaginando haver me esquivado de quaisquer assuntos resgatando meu vocabulário. Voilá!

quinta-feira, 3 de abril de 2025

A primeira janela – O conto

 


Amaryllis governava aquela casa antiga com primor tendo ajuda de pessoas que exerciam as tarefas como se fosse um sacerdócio, uma veneração pela preservação, pela ordem, pela boniteza, pela natureza entrando pelos olhos e se afundando em cada canto da casa que rescindia a flores, folhagens e terra fresca. Colchas de crochê finamente elaboradas pelas avós enfeitavam as camas, as poltronas, as mesas de refeição. O assoalho de madeira maciça onde ecoavam as botinhas de couro das meninas, os tamancos do rapaz, o salto alto da dona da casa finalizando com as botinas do esposo eram cobertas por tapetes que abafavam o vai vem dos moradores e a faina diária do casarão.

As aberturas muito antigas - tanto portas quanto janelas – arranhavam estranhamente ao se abrir e fechar parecendo ávida para expor o ambiente externo e trazer para dentro da rotina da casa sua vida de início da manhã. Se entreabre para o mundo, em sussurros, assuntos de todos os tempos, passarada em alvoroço, ruídos da rua na manhã brumosa quando os personagens diários que frequentavam a madrugada vinham dar seu recado. Assim se ouvia o leiteiro, o padeiro, o capataz, o entregador de fruta e o carteiro, este se equilibrando no cesto de muitas missivas dirigida todos os dias àquela casa. Era chegada a hora de se debruçar nos janelões centenários onde figuravam floreiras impecáveis onde em cada palmo de terra exíguo se exibia uma espécie diferente formando um canteiro de flores aéreo ao redor da construção.

Neste momento encontramos Maria Flor que transitava neste ambiente com brejeira curiosidade levando para todo canto sua traquitana de estudo e de brincadeira sendo este ambiente quente, afetuoso e amplo que lhe deixava muito a vontade para expandir sua fantasia de menina. Menina essa mais quieta, de pouca fala, um pouco amuada, de muitos olhares e percepção aguda. Nem sempre lhe seria favorável esta condição, mas naquele tempo ela não tinha conhecimento disso.

Em um memorável dia Amaryllis tomou a mão da menina e a levou para um pequeno quarto no centro da casa, quase escondido, com uma porta monumental, provida de vitrais com desenho feito cetim opaco, o que a deixou paralisada. Uma lindeza só.  Na entrada da porta, à direita, uma mesa pequena detinha um dos raros telefones da época que, para fazer ligações dependia de uma telefonista, anunciando um tempo que, por enquanto, andava devagar.  Feito o registro em sua mente, sentiu um puxão novamente e, ao entrar no recinto sentiu uma clareza não bem identificada. A saleta havia sido arrumada com uma grande escrivaninha em frente a uma janela o qual se destacava lindamente no centro daquela mesa que continha seus alfarrábios de escola,  um armário pequeno e duas gavetas com lápis de escrita e de cor, algumas borrachas e apontador, uma pequena lixeira e um rádio de pilha de longo alcance.

A paisagem que se descortinava da abertura, após os gerânios abundantes do peitoril, era nada mais nada menos do que a entrada da casa de sua avó que todas as tardes vinha lhe chamar para o café da tarde. Neste momento seus cadernos eram empilhados cuidadosamente para assistir as histórias das duas irmãs com uma preciosa xicara de café e torradas com margarina.  Para Maria Flor foi o início da vida entre janelas em que o destino, mansamente, foi apontando, uma vez depois da outra, novas ventanas.

A partir de agora impera a sequência regular dos tantos cenários desfrutados por Maria Flor que, por gosto, precisava ter para si o quadro do mundo exterior sempre a disposição, fosse qual fosse a paisagem, a situação ou a vizinhança. Em um canto da vida aguardava solene e calada a velha mochila de couro guardiã da imperativa e voluntariosa necessidade de se evadir.

A caminhada entre vidraças passou por ruas antigas com o quadro principal topando com um telhado velho, mas não menos interessante. Após, um cenário lúdico com escola de criança em alegre interação, e, mais tarde, bem perto do céu, com o olhar da lua e das estrelas espiando por entre as frestas da veneziana.

Muito depois, a abertura de todas as manhãs veio como um presente da vida e assim surgiu frente a uma nova janela aquele imenso oceano que todos os dias assobia seu segredo, obedece ao vento, se curva à lua, ao sol, a preamar e aos arroubos do alfabeto de Maria Flor.

Fio desencapado

  Estava tudo igual com a pasmaceira dos dias passando, o sol nascia e descia com variação de tempo conforme a estação, o mar com sua muta...