segunda-feira, 30 de junho de 2025

Arroubo senil

 


Eu tinha certeza do que ia acontecer mesmo sendo avisada do perigo iminente que a cada dia mais se aproximava de mim, deixando farpas pelos cantos, sinais silenciosos quase inaudíveis que serpenteavam no entorno como fumaça magica penetrando lentamente na casa, chegando com força naquela prateleira de livros rota de tanta leitura que segue a postos para qualquer consulta. O dicionário Analógico amarelado do tempo de uso, segue firme, resguardando com carinho todas as palavras que capitaneiam o meu raciocínio e me fazem voar no tempo, no dia, na noite, na luz e na escuridão.

Em outro canto percebi que a pilha de papel em branco se acumulava, as canetas de anotação estavam sem tinta assim como os lápis careciam de ponta fina para arranhar com pressa as resmas de papel que perambulam por toda a casa. Todos estavam relegados a um recanto não havendo ao meu alcance nenhum instrumento dando a impressão de uma varrição de ideias da minha velha mesa de trabalho.

Me voltei mais animada para a minha escrivaninha, esta que recebe com toda a paciência do mundo, meu grito de revolta, meu suspiro de saudade, meu olhar molhado de lágrimas, minha gargalhada e meu choro convulsivo e percebi que havia sido surripiada minha inspiração, eivada de provérbios, advérbios, pronomes e pontuação - sem falar nas palavras inventadas - que me acompanham por cima do ombro como fieis algozes do assunto. Aceitei este mando Divino e considerei o fato como um arroubo senil causado pelo delicioso ar gelado da costa. Voilá!  

domingo, 29 de junho de 2025

Sem resposta

 


Localizei o velho telefone com fio em um cantinho do sótão, numa posição que parecia proposital, porque além de desconectado de sua antiga linha fixa o fone estava displicentemente fora do gancho, dando um recado de que por ali não passaria nenhuma voz longínqua, nenhuma risada, nenhum papo firme sobre coisa nenhuma, nenhuma notícia alegre ou triste, nenhuma voz embargada de saudades e muito menos soluços de tristeza e decepção. 

A conexão estava vazia de propósito havendo apenas a lembrança de tempos idos em que o aparelho aproximava todas as vozes, de todos os lugares, de todos os timbres, de todos os sotaques, de todos os idiomas da maneira mais lúdica e emocional que se pode imaginar. 

O telefone antigo fazia parte da mobília e em torno dele sempre havia um aparato de decoração que abrangia um móvel que lhe conferia pompa, circunstância e conforto para atender o aguardado tilintar estridente que ressoava pela casa desencadeando uma correria desabalada para atender em tempo hábil, quase sem fôlego, o tal chamado. 

O contato sempre tinha a importância devida de um enamorado que aguardava um alô, uma mãe saudosa do filho que se lançou no mundo, de notícia boa demais e outra triste de causar dó, mas, mesmo assim sendo necessária a importante transmissão, sempre em ocasiões especiais. 

A imagem do aparelho relegado a um cantinho do sótão em postura displicente sugeriu que ele estava mandando um recado de que, ora em diante, não existe mais um lugar com aparato especial na residência, a relevância se volatizou, a conversa emocionada se rendeu a banalidade, o conteúdo do diálogo longínquo foi relegado a palavra abreviada, a voz ficou sem ar e as perguntas sem resposta.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Na ponta dos pés

 


O tempo está tão calado que o céu se confunde com o mar e assim eles dois concluem que se misturar no horizonte talvez seja uma boa ideia, porque parece sempre que tudo está sendo levado com força para os cantos que certa dose de pasmaceira é uma opção não pensada no dia a dia, mas se for colocada em prática, se dará a perspectiva de um planeta diferente. De inquieto se torna estático deixando fluir apenas uma réstia de luz, um ou outro ponto de sombra, conchas e andarilhos da beirada estancam suas atividades e o nadinha de brisa não desfaz o retrato onde a placidez é a pegada da hora. 

A majestade do oceano cabe quase que totalmente onde se esfumam suas espumas alardeando que o dia veio com ares de amor, trançando tudo o que aparece na natureza, indo e vindo apenas no movimento das profundezas que também se recolhe, parecendo prever algo que possa acontecer neste lugar deserto, nesta praia aliviada, neste mar solitário e refém do que acontece no entorno. 

Mais adiante algumas pegadas ainda frescas vão sumindo à medida que o mar as alcança, apagando a energia que emanava de um ou mais pés que por ali vagueavam. Algumas palmilhas se foram apressadas concluir o percurso, outras mais erráticas faziam voltas de lá para cá como que procurando seu destino ou sua força, outras se afundaram na areia parecendo que um chumbo de tristeza as embocou e assim outras mais diversas e leves pareciam pegadas de criança de tão miúdas. E assim o mar com toda a tranquilidade foi retirando dos seus donos suas marcas. 

Pelo descrito até aqui não estava no “script” o encontro de encantadores e minúsculos pés femininos com o seu par na beirada deste mar, que obviamente se preparou para a cena. E assim, na ponta dos pés, alguém se ergueu para alcançar o olhar do seu amado, lhe enlaçou em seus braços, ergueu seu rosto e assim esta manhã inacreditável foi selada com um beijo de amor de praia.

 

quarta-feira, 25 de junho de 2025

Matéria do Blog do Frigorifico Renner no Jornal Ibiá de Montenegro

 Compartilho a matéria sobre a renovação do Blog Frigorifico Renner no Jornal Ibiá de Montenegro, desta autora.   http://frigorificorenner.blogspot.com




terça-feira, 24 de junho de 2025

Esqueceram de mim

 


Maria Cecilia andava sempre com a cabeça nas alturas e tanto é verdade que além dos familiares, amigos e professores abanavam a cabeça desolados porque o seu olhar perpassava através do que ela estivesse olhando, parecendo haver um motivo sempre translúcido mais interessante, mais colorido, mais bonito, logo, logo ali.

Quando a família saía e já se aprontava para embarcar no carro, ao procurar a menina lá estava ela, de pijama, na cozinha, tomando café preto com farinha de mandioca com a Babá. Seus pais desistiam da companhia e seguiam seu rumo com alegre adeusinho de Maria Cecilia que, impassível, passava a mão no seu livro de história se assentando pedantemente na poltrona da sala de visita acompanhada pelo riso irônico da empregada.

Por este motivo apelidaram a menina de “sobrinha”, a menina que fica, que não quer ir, que é esquecida por tantas faltas, que tem em sua cabeça a urgência de aproveitar os momentos do silêncio e do vazio da casa ora desocupada e  adonar-se de todos os ambientes, de morar um pouco em cada um deles, dormitar na cama grande, descansar na cadeira do papai, costurar em fio torto seus retalhos, ocupar toda a mesa de refeições e ao fim do dia espraiar-se pelo jardim afora porque, afinal, ali era seu mundo de fantasia e contemplação. Aparentemente não existia espaço suficiente para Maria Cecilia viver.

Para ela, até então, não se tratava de nenhuma ilusão ter seus olhos à frente uma vez que ia tragando de todos os cantos o que houvesse escondido, cada fresta possuía suas teias de aranha particular, armários jamais abertos guardavam o cheiro do pó e do antigo, as portas continham por detrás de si segredos inconfessáveis, e o eco do longo corredor gritava em altos brados a algazarra da casa assim como os cochichos dos adultos pairava no ar.

Em o tempo passando o todo dia foi se modificando, as idas e vindas mudaram, a cozinha mudou de lugar, o fogão a lenha foi fechado, os armários perderam seu conteúdo e na casa havia apenas um ressoar de sons antigos. Maria Cecilia ao rever este lugar sagrado depois de tantos e tantos anos não conseguiu espichar o olhar além do vazio do tempo. Baixou a cabeça e rumou ao jardim onde se perdeu no denso nevoeiro.

sábado, 21 de junho de 2025

O que vem de lá

 


Nem bem o sol vem a público, ao céu e a terra e eu já estou a postos em sua beirada espumante curiosa para saber o que foi que ele trouxe para a areia durante estes dias de vento, frio e chuva, já prevendo que não apenas coisas de cá, de lá e do fundo emergiriam desta viagem. Fiquei me perguntando o que o mar gostaria de conversar neste dia, qual o segredo que me seria confiado ao pé do ouvido, qual impropério inimaginável seria desferido, qual rugido em ondas ressoaria desta garganta devolvedora do que não lhe pertence.

Eu sei muito bem que a conversa comigo acontece quando os tantos e muitos invasores se enroscam na nascente do alto mar gelado e, astutamente embrulham seus espinhos, suas raízes, seus tentáculos aéreos aprisionando pequenos peixes, algas desgarradas, tatuíras e mariscos lentos e incautos e caranguejos enfraquecidos das redes de pesca e assim a contagem vai ao infinito costa afora.

E assim a onda enorme varre o que lhe passa pela frente e os deposita aos meus pés.  Me assentei na areia molhada com pés e mãos enredados na sobrevida de alguns que vieram de longe aqui aportar: uma semente, uma alga com caule em botão, um galho da terra verde renascendo. Pensei logo que ali estava uma oportunidade de refazer um caso, criar uma alternativa, ver com outros olhos e ouvir com humildade o que vem de lá e sem dúvida, perdoar.

sexta-feira, 20 de junho de 2025

Aquela mesa 3

 


Não tive nem tempo de me aprumar naquele dia e já me vi banhada pelos salpicos das lembranças, tão veementes que me assolavam todo o corpo fosse o que eu quisesse fazer. Vendar os olhos para não rever fotos antigas, amarrar meus pés para não correr ate a beira do mar para sentir o vento daquele tempo que agora anda quente por aqui, prender minhas mãos dentro dos bolsos para que não vasculhem todas as gavetas e caixas que primorosamente guardam o meu passado, não deixando nenhuma réstia de papel para demonstrar o paradeiro das decujas. Caixas selada e bem no alto, assim a coluna que já não me serve como antes, trava se resolvo me esticar para pegar. 

Meus braços ficaram abertos para o vazio, porque quanto mais eu queria fugir mais eu me inclinava a recolher, mais me parecia que estava tudo à mão, que eu poderia alcançar e me salpicar com o sangue da saudade, com o rol de lembranças que ao invés de se organizarem para o momento invadiam a alma aos borbotões, escalavam todos os momentos muito rapidamente, pulando de um retrato para outro, confundindo às vezes o tempo e a época, mas jamais se atrapalhando no sujeito. 

Remoçou-me a entonação da voz, meus olhos começaram a brilhar em diferentes tons, minha ansiedade se acotovelou no portal do passado sem dali querer se evadir. Apareceram tantas palavras não ditas, tantas dúvidas do tempo de então, que de uma maneira bem compreensível pedi perdão à vida pela afoiteza de decisões da juventude. 

E com esta historia diabólica a me circundar a alma, acabei ficando a mercê de tudo o que lembrava aquele tempo perdido na lonjura da vida e fui então refazendo novos retratos de mim mesma, fui pincelando quem eu sou com algumas tintas antigas, ajustei o humor para aquele sorriso que vazava da única foto que eu tinha e assim fui retocando um a um todos os detalhes da minha figura, agregando também a situação, a juventude transbordando, a roupa, os sinais corporais, o avanço e o recuo em dança sublime. E assim eu vi com nitidez a Mesa 3, o pão , a água, a salada e os dois.

 


terça-feira, 17 de junho de 2025

Quem está aí?


 

Neste emaranhado de locuções que se atravessam por todos os lados tenho mantido certa cautela e distância em relação ao que não entendo bem. Talvez seja um cansaço mental, uma vontade de não entender, uma chatice se instalando, uma falta absoluta de interesse de se debruçar sobre qualquer coisa mesmo as mais comezinhas. Nada de conversa fiada nem de papo reto, nem pensar em aprofundar a fala porque certamente todas as letras acabarão batendo com a cabeça na parede e voltando estropiadas por terem sido agredidas na sua formação ou, talvez voltem para nenhum lugar. 

Então, com este estado de coisas no patamar nirvana e a mufa esvaziada vou subindo alguns degraus do vazio instalado mas, para minha surpresa, não há silêncio neste caminho e as vozes se calam e se alteiam ininteligíveis transversando o assunto seja ele qual for. Sigo em frente na trilha do vapor gelado deixando para trás estas vozes que pelo jeito não dizem nada e que apenas figuram por aqui como vazio existencial, sem destino. 

Ando me negando a colocar os pés no chão porque percebo que ao olhar para o lado não encontro uma face corada, olho brilhante, voz embargada, sorriso entre orelhas, cabelos ao vento e muito menos aquele cachecol invernoso em  xadrez preto e vermelho de eterna serventia.

Persigo este vazio do canto de inverno e acabo por me dar conta que a estação do fogão a lenha, da estufa, do banho quente, da manta, do gorro, do chimarrão e do café pelando agrada a galera de casa que aproveita o tempo para elevar o pensamento, ter conversas íntimas, um olhar no vazio, aquietamento do espírito e ouvidos moucos liderando o ranking da lista de desejos.

 

 

quinta-feira, 12 de junho de 2025

Dia dos Namorados

 



Ana Lucia lembra muito bem de quando conheceu Carlos Alberto, desenhado na entrada de uma sala qualquer, desconhecendo em toda sua vida o furor que a presença daquele, até então, estranho, causou. Seus olhos ficaram pregados na figura ímpar que demandava uma alegria interna e um carisma sutil que rescindia em torno de si e de todo ambiente. Baixou os olhos impactada pelo fulminante olhar escuro de brilho intenso sentindo o ar rarefeito quando o jovem rapaz enigmático se aproximou com passadas largas, gingado atrevido, voz tonitruante e sorriso farto.

O encontro daqueles dois foi pautado em um acontecimento raro que traz sentimentos que não fazem parte do cotidiano da vida, da rotina de trabalho, do leva e traz de tudo aqui e ali. Ana Lucia gosta de pensar que a situação  inusitada e súbita foi motivo para o romance pertencer a um patamar exclusivo, o qual somente os dois encantados tinham acesso.

O relógio, este algoz que marca a vida andando não existia na situação de amor, sempre com chegada e partida marcada pela cadência forte do coração que trombeteava a conexão eminente, desconhecendo a ronda ameaçadora do destino com suas flechas envenenadas apontadas para os desavisados enamorados. Um dia, no umbral de nenhuma porta, a inversão aconteceu.

O amor ficou estacionado na alma de Ana Lucia e Carlos Alberto e reunido de maneira real e física através dos milhares de bilhetes que circulara entre os dois pelos mais variados motivos.  “Já cheguei, senti tua falta, te esperei e foi difícil partir, um papel de pão manchado com café escrito eu te amo, cinzas frias no cinzeiro, um colar de prata dentro de um livro de poesias, uma pulseira, não senti frio por estar aquecido com tua lembrança”  e, um dilema. 

terça-feira, 10 de junho de 2025

À mercê

 


Ando dormindo quase que para sempre, cada vez que vou ao leito quentinho, depois das preces e da encomenda de mim mesma a Deus pois o dia de amanhã não me pertence. Aguardo no limbo do sono até chegar a hora em que alguém vem me visitar e sussurra suavemente que fui a escolhida do dia. Então me apresento, agradecida, porém desconfiada e então me dirijo até a rua deliciosamente gelada nestes dias para verificar com os meus próprios olhos se o mundo ainda se encontra no mesmo lugar ou, talvez, o céu tenha decidido que hoje não seria um dia para se levar a sério.

Me dei conta imediatamente que eu havia sido brindada singelamente para passar o dia dentro da minha rotina, que não aparecia nenhum corpo estranho na conjunção intricada que une a ossada e seus comparsas formando minha estrutura física, que braços e pernas se coordenavam assim como a cabeça e seus parceiros estavam desempenhando suas funções com normalidade.

Feito isso me debrucei sobre o outro lado da minha vida e, com certa parcimônia, passei a escarafunchar quais as letras que andavam flanando vagabundamente na minha mente, guardando um certo silêncio a respeito do assunto. Lá estavam elas, de costas para mim, enredadas em um fio condutor que desaparecia no ar, todas andando sem ritmo como se houvesse algo as atrapalhando.

Me coloquei em alerta e comecei a me esforçar para, em primeiro lugar, coloca-las enganchadas uma na outra para obter uma formação literária mínima e com fundamento, desejando que houvesse relevância ao invés deste redemoinho de consoantes e vogais estéreis.

A esta altura dos acontecimentos minha autonomia na criação corria de um lado para outro tal qual neurônio brincando de esconde-esconde em uma dança descoordenada, chegando perto e em seguida sumindo da vista, escorregando na rima, derrapando no provérbio em uma alegre confusão de letras travessas. Decidi acompanhar o divertido ritmo bagunçado do dia e fiquei à mercê.  

domingo, 8 de junho de 2025

A Importância

 


Este varal que se apresentou a mim logo cedo parecendo ou desejando que estivesse ocupado com as vestimentas da casa, incluindo a roupa normal do dia a dia, a vestimenta para dormir, os apetrechos de montagem da cama no período de friaca que aparece devagarinho, o pano de chão, o pano de louça. Enfim, andava faltando ali o propósito do artefato que amanhecia rejeitado, porém, o que eu enxerguei foi apenas o vazio e o silêncio obsequioso do entorno, parecendo que neste momento a importância foi dar uma volta por aí.

O dia nasceu com ar soturno e não parecia amigável, o sol estava ausente, o vento negando sua força, a chuva resistindo e tudo dando a impressão clara que os elementos que compõem o amanhecer se encontravam em recesso absoluto talvez não querendo dependurar na natureza sua finalidade.

Assim sendo me achei no direito de me reunir a eles, corroborar com o protesto de tudo, qualquer coisa ou quem sabe coisa nenhuma, somente pelo prazer de calar, de negar este período de claridade e obscurecer os diálogos rotineiros e maçantes, recusar qualquer reação, relegar ao dia seguinte o tom impertinente da próxima revolta.

Me distanciei um pouco do envolvimento a que fui submetida e parei para pensar que ali estava uma oportunidade para refazer o roteiro diário e transformar a dor do vazio em um amanhã com o varal da casa ostentando apenas uma palavra onde o vento a possa beijar, o sol aquecer e o sereno abençoar. A Importância.

sexta-feira, 6 de junho de 2025

O descarte

 


Nas idas e vindas da rua, quando me apronto para jogar pesado o jogo da vida de verdade, esta que anda no caminho, que tropeça e cai, que erra o logradouro, que conversa com os desconhecidos, que ri de tudo sem motivo ou chora todo dia por nada, é bem esta que me atrai e então me preparo para perscrutar tudo o que rola por aí.

Imagino de antemão que o mal e o bem andam juntos e por este motivo devo estar preparada se surgir algo do meu interesse repentino ou quiçá, alguma coisa que não me desperta atenção e justamente por isso me debruço no ocultado contando quase sempre com a mesmice que levanta barreiras e deste jeito constrói o meu caminho de sol e sombra.

Foi assim naquele dia sombrio e gelado que me deparei com uma quadra com característica de abandono e que aos meus olhos seria um alerta, um grito de socorro, tal a tristeza que emanava do lugar.

Uma poltrona de design bonito restava ali, na beira do campinho encharcado, abandonada, desgastada e suja, porém, com sua dignidade mantida, afinal fez parte da decoração de um lar, acomodou uma mãe amamentando seu filho, um idoso no descanso, um professor em suas leituras, uma avó com o neto no colo, uma dona de casa aguardando a chegada de familiares ou somente um lugar especial para receber visitas.

Pensei em todas opções para um enredo importante para este triste fim, porém, o que me chamou a atenção de fato é a facilidade no descarte e descuido de praticamente tudo. O bota-fora circula por atitudes, diálogos, locais, pessoas, objetos e moradias, queimando o antigo, o perene, o bem posto, na tentativa de apagar o antes.

terça-feira, 3 de junho de 2025

Menos mundo

 


Ao abrir os olhos percebi que alguma coisa estava acontecendo dentro de mim, era como se algo ou alguém estivesse me empurrando. A respiração estava retesada, o coração dava acordes dissonantes do normal. Ao levantar percebi minhas pernas estranhamente fortes e o frio acariciava meu corpo ainda quente da cama, brandamente. Um pouco depressa demais resolvi atender o chamado e praticamente me joguei aos quatro ventos na rua como se não houvesse nada mais a fazer ou, quiçá, eu, sonambulada estava enxergando alguma outra passagem logo ali.

Resolvi que este seria o dia em que iria espiar a vida, fazer um caminho diferente, desviar da trilha socada, encontrar novas casas, vislumbrar rostos desconexos, outros amores, intrigas sem fundamento, vizinhos diferentes, brigas fúteis, novas comemorações. Andava eu naquele dia atrás de um misto de vida.

Eu imaginava um dia comum, apenas mais um dia e assim resolvi que eu iria dar um pulinho na vila fazendo o percurso no busão da comunidade. Por ali, frente ao meu olhar surpreso, desfilou quem habita o res do chão, mãos calejadas no aperto de mão, oração na ponta da língua, abraços em aberto, gengivas descarnadas, rostos pregueados, passos em falso, bengalas mambembe.

A crueza do dia surgiu ao perceber que hoje fui apresentada ao transporte de todo mundo, talvez de menos mundo e certamente de nenhum mundo. Voltei para casa com o sorriso invertido.

domingo, 1 de junho de 2025

O calor do inverno

 


Ao acordar tive que olhar duas vezes para a linda temperatura que cercava a minha casa, que me envolvia carinhosamente, que gelava meus ossos, que arrepiava meu cabelo, que orvalhava o caminho e a bancada onde descanso, não porque preciso, mas para poder organizar a mente que anda sempre aloprada por aí e, às vezes, ela precisa de uma correia bem forte para se aquietar. Como sou dominada pela palavra, antes dela vem o que dizer.

Me assento no banco de praça desta rua gelada que sorri para mim, me abana com uma brisa fresquinha e deliciosa demais, respinga meus cabelos com as últimas gotas de orvalho na beira do mar, afaga minhas mãos chamando o sol para participar deste encontro que apenas se inicia no calendário.  A luz quentinha do dia e o ar manso gelado combinaram de ser amigáveis porque eles sabem muito bem que o calor passado mora dentro de mim. É preciso expulsá-lo de maneira sutil e amorosa, uma vez que ele voltará, certamente, com sede de vingança.

A questão agora é como proceder, com gentileza, para retirar da retina aquele tempo abrasador, aquele sol inclemente que rasgava o céu e dominava absoluto durante as horas intermináveis do dia da estação fumegante.  O que servirá como fio condutor para tirá-lo de dentro das minhas entranhas, onde parece, mesmo hoje, instalado para nunca mais de mim desviar.

Vou acionar os fantasmas que assombram o verão e já estão a postos: um casaco pesado pendurado na entrada da casa, gorro, manta, bota forrada com lã de ovelha. Na cozinha, sopa no fogão a lenha, bolinho frito, chimarrão, chaleira chiando, pipoca, quentão, vinho tinto, cachaça com limão e um cartão postal do inverno na Europa. Estas armas sutis e zombeteiras farão o calor, internalizado, tomar chá de sumiço.

Dia do amigo

  Encontros acontecem a todo instante cruzando nosso caminho, pulverizando a atmosfera que nos envolve com um delicado lampejo divino e entr...