terça-feira, 24 de junho de 2025

Esqueceram de mim

 


Maria Cecilia andava sempre com a cabeça nas alturas e tanto é verdade que além dos familiares, amigos e professores abanavam a cabeça desolados porque o seu olhar perpassava através do que ela estivesse olhando, parecendo haver um motivo sempre translúcido mais interessante, mais colorido, mais bonito, logo, logo ali.

Quando a família saía e já se aprontava para embarcar no carro, ao procurar a menina lá estava ela, de pijama, na cozinha, tomando café preto com farinha de mandioca com a Babá. Seus pais desistiam da companhia e seguiam seu rumo com alegre adeusinho de Maria Cecilia que, impassível, passava a mão no seu livro de história se assentando pedantemente na poltrona da sala de visita acompanhada pelo riso irônico da empregada.

Por este motivo apelidaram a menina de “sobrinha”, a menina que fica, que não quer ir, que é esquecida por tantas faltas, que tem em sua cabeça a urgência de aproveitar os momentos do silêncio e do vazio da casa ora desocupada e  adonar-se de todos os ambientes, de morar um pouco em cada um deles, dormitar na cama grande, descansar na cadeira do papai, costurar em fio torto seus retalhos, ocupar toda a mesa de refeições e ao fim do dia espraiar-se pelo jardim afora porque, afinal, ali era seu mundo de fantasia e contemplação. Aparentemente não existia espaço suficiente para Maria Cecilia viver.

Para ela, até então, não se tratava de nenhuma ilusão ter seus olhos à frente uma vez que ia tragando de todos os cantos o que houvesse escondido, cada fresta possuía suas teias de aranha particular, armários jamais abertos guardavam o cheiro do pó e do antigo, as portas continham por detrás de si segredos inconfessáveis, e o eco do longo corredor gritava em altos brados a algazarra da casa assim como os cochichos dos adultos pairava no ar.

Em o tempo passando o todo dia foi se modificando, as idas e vindas mudaram, a cozinha mudou de lugar, o fogão a lenha foi fechado, os armários perderam seu conteúdo e na casa havia apenas um ressoar de sons antigos. Maria Cecilia ao rever este lugar sagrado depois de tantos e tantos anos não conseguiu espichar o olhar além do vazio do tempo. Baixou a cabeça e rumou ao jardim onde se perdeu no denso nevoeiro.

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