domingo, 10 de maio de 2020

Minha mãe



É sempre o inesperado quem me acolhe ao lembrar minha Mãe e quase sempre é algo que vejo em mim, o que não é difícil uma vez que estou envelhecendo e meus traços vão tomando um contorno muito semelhante a ela como uma condição atávica.

Ao andar pela casa vou tropeçando em quase tudo que lembra a casa dela porque alguns objetos fizeram parte da minha vida toda. Além disso o jeito de arrumar é muito parecido. Quase não possuo móveis modernos, os meus enfeites são as porcelanas e objetos que vieram desde a casa em que nasci passando pelas doações de tia e avós. A minha arrumação fica quase que sendo um santuário de lembranças e assim eu vou vivendo sempre de olho no que é belo, que tem tradição e me conforta, comprovando que eu não preciso de nada.

Na aparência acontece a mesma coisa. Quando eu visto uma roupa colorida – que não é minha preferência – fica claro que fui empurrada para aquele figurino como se houvesse uma força maior. A mesma coisa acontece ao me olhar no espelho e ver em mim as rugas dela, o cabelo escasseando nas têmporas e branqueando em torno do rosto como assim foi em minha Mãe. Na manicure as mãos que se estendem na vaidade são distintas na cor do esmalte, e então começo a perceber nossas diferenças.

Ao contrario de mim ela era contida, não tinha o riso fácil e falava baixo, acho que era porque o seu interior de artista brilhante puxava o seu melhor para dentro, guardando elementos para poder dispô-los em suas artes manuais. Hoje eu sei que suas gargalhadas migraram no entrelaçamento das tapeçarias que tecia constantemente deixando um rastro dos seus sentimentos alegres e coloridos pendurado na parede.

O brilho do seu olhar estava refletido nas mil miçangas com que bordou ponto a ponto meus vestidos de baile e suas alegrias ficaram enfurnadas nas longas luvas de cetim que compunha o traje que escondia meu braço magrelo e sem traquejo social, porém, minha Mãe possuía glamour nato que assim me era conferido. Ainda escuto o rufar da maquina de costura que ela acelerava com os pés parecendo um trem antigo que ruidosamente lhe fazia companhia.

Não tenho o dom que minha Mãe tinha para a costura e o bordado mas gosto de pensar que a minha intimidade com a escrita e meu despudor em demonstrar o que me vai dentro da alma costurando histórias através das letras vem deste talento dela.

2 comentários:

Unknown disse...

Boas lembranças, como é bom te-las e poder recordar. Lembranças, só os humanos tem. Lembranças boas, só os humanos bons tem.

m.reginasouza68@gmail.com disse...

Um reencontro que só a maturidade permite.

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