sábado, 30 de março de 2019

Páscoa



Tenho certeza que a natureza conspira com o sagrado quando está para chegar o tempo da Paixão de Cristo principalmente neste lugar onde se tem um clima que envolve positivamente as almas mesmo para quem aposta corrida contra si mesmo todo dia, deixando o tempo sem tempo. O calendário, porém, é implacável  demonstrando toda a manhã que a celebração mais importante da cristandade está por perto.

Após o lufa-lufa do calor que parece sempre instigar os ânimos para um tom sempre mais alto, todo o entorno arrefece o alarido dando lugar a um ensimesmar-se, um baixar os olhos em sinal de respeito, sorrisos moderados, alegria incertas  e muita oração.

A liturgia que envolve os preparativos para a Páscoa sempre inicia pela reflexão e pela humildade de reconhecer-se como um ser humano que necessita, por força da história, alimentar-se da fé. É uma ocasião importante para apiedar-se dos menos afortunados, de sentir bem no fundo da nossa alma a chama divina da esperança e ter como propósito refletir sobre a melhora da vida humana em todo o seu contexto.

O silêncio é imperativo e a proximidade da natureza vem acrescentar detalhes que talvez passassem despercebidos se o olhar não estiver atento. A reflexão se consagra como um ato de fé e de coragem de seguir em frente, agora mais forte.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Ouvindo



Neste dia me joguei em qualquer caminho que se apresentasse porque dentro de mim não havia mais espaço para meus pensamentos e muito menos para ouvir o que a vida resolvesse vociferar. Não sei direito meu estado uma vez que o mar me chama à chincha e lá vou eu estabanada atender o chamado imperioso, como se não houvesse outro dia pela frente, como se essa fosse a única opção, como se fosse uma cruza de vida ou morte. A disposição é essa, é só me chamar que eu vou.

Não demorei muito para encontrar a saída, ora veja, na beira da praia bem como é peculiar. Assim eu a encontrei, impecável e solitária parecendo me esperar e ao chão me joguei para ter a oportunidade de ouvir o que até mim não chegava, por um, ou por todos os motivos. Ávida, nem bem a resgatei e já minhas lágrimas lavavam a pequena estrutura que se mostrou receptiva às demandas que me afligiam.

Não precisei aproximar a linda concha, enviada por Netuno, pois de cara percebi que os primeiros acordes sonoros já haviam me rondado em sonhos, em mensagens dúbias, em versos mal feitos, súplicas infundadas, enfim, um restolho de recados que já haviam me alcançado como falácias e eu não lhes havia dado crédito, afinal, o que não vem para somar, descartado está.

Resolvi virar o jogo e assim me assentei, bem na beira do mar, com a vieira em punho e com a certeza de relatar àquela acústica tudo o que se passava no meu coração porque, deste jeito, eu tinha convicção que boas lembranças adviriam. Minha aposta no mar foi um sucesso uma vez que comecei a escutar todos os acordes sonoros líricos que aquelas lembranças outrora me fizeram dançar, sorrir e desejar que assim a vida seguisse, mesmo em dúvida.

segunda-feira, 25 de março de 2019

Solstício do outono



A queimação do verão ainda paira no ar quase que em todos os recantos da natureza e um pouco no semblante do povaréu que insiste em ficar por aqui, que resiste em guardar as roupas de praia, que demora em se acostumar que a estação do despir já está começando. De fato, para o praieiro da gema, mudar a indumentária quase não acontece, afinal, o mar está sempre ali e o chinelo de dedo não se aparta de ninguém. O coração está sempre aquecido de amor pela beira do mar e o frio não chega a acontecer.

Os sinais surgem muito discretamente na natureza que, mesmo resistente, vai deixando o desfolhar ocorrer dando um recado para os ventos não ficarem estabanando tudo o que é deixado ao solo uma vez que este estirar-se junto ao tronco é a última homenagem a quem lhe deu a vida, quem lhe fez brotar suas folhas e flores a partir de sua seiva motivadora.

O mais instigante deste tempo de outono que inicia é a paradeira no ar que acontece como se fosse um silêncio reverenciado que se instala dominador desde o alvorecer até o apagar das luzes no céu. A calmaria se espalha pelas ruas entrando nas residências sem que ninguém tenha a coragem de arrulhar no contrapé, de destituir a soberania da natureza que neste momento clama pela caluda.

O período é de deixar cair por terra o que tem seu fim proposto pela estação outonal e assim vai acontecendo, com as folhas que se apartam dos seus troncos e caules vivenciando a transformação da natureza que colore com todos os matizes quantos lhe aprouver, deixando o solo revestido por um lindo tapete natural. O mar, sempre imprevisível, recua em ondas deixando o protagonismo para o solo que aproveita o espaço para receber os coadjuvantes do solstício de outono.

sexta-feira, 22 de março de 2019

Água



Ela se reúne, empoça e escolhe a dedo a trilha aonde vai se esparramar, todas elas escolhidas com cuidado porque o seu destino é dar vida ao caminho que acompanha sua trajetória e assim vai vicejando as encostas, deixando em estado de progresso seus banhados. A água possui uma limpidez translucida em todas as suas nascentes, o que não quer dizer que esta imagem consiga transcorrer deste modo toda a sua passagem pelo território.

Existem tantas linhas cruzadas a partir de uma vertente, variando seu destino conforme os meandros da topografia, que nunca é de livre arbítrio, muito pelo contrario, seguir incólume na sina vítrea como manda a natureza que a criou. O solo é quem propõe o traçado e então a água vai permeando o caminho que o planeta proveu.

Pobre nascente! Borbulha cristalina inicialmente, porém, tem seu destino traçado a percorrer tantos caminhos quantos a natureza pródiga lhe determinou, e assim o faz sem pestanejar. Lá se vai ela sinuosamente invadindo terras, montes e colinas que poderá ser da mais agreste e inóspita até a mais pujante, sem sequer imaginar as modificações que seu curso irá sofrer por outros coadjuvantes que permeiam o caminho.

Recém-nascida, não surge muita surpresa, porém, ao engrossar seu leito brota no caminho desvios que a remete por debaixo da terra e deste jeito se vê atravessando grandes conglomerados de cimento com tuneis de concreto lhe oferecendo passagem. Assim fica determinado que naquele lugar a nascente carece de esconder-se o que de certo modo não é coerente com a sua  criação.

Em outro tanto do percurso suas águas até então cristalinas se transformam em um espesso caldo escuro sem que o curso possa ser cancelado e deste jeito triste, aquele olho d’água vítreo advindo dos montes se transforma em caudaloso córrego fétido. Nas suas margens a humanidade faz o desserviço. Pobre planeta, triste fim.

segunda-feira, 18 de março de 2019

Apagão



Aqui, onde decidi lançar raízes, um local que está mais para caixa-pregos, volta e meia acontece um apagão generalizado me fazendo correr à janela para verificar as mudanças da paisagem na noite escura que me encanta, pois certamente a falta da luz artificial vai trazer aos nossos – pobres – olhos cegos o que nos é ocultado noite após noite. Nem bem me acostumei com a penumbra e a nuvem de vagalumes se exibe por entre a copa das árvores brincando de esconde-esconde uns com os outros, certamente aproveitando este cochilo humano para então cumprir com o destino que lhes foi auferido.

Os besouros encantadores de criança, muito mais dentro de livros de historia do que nas matas, riachos e afins estão apagados da nossa rotina que recebe feérica iluminação artificial seja dia ou noite e deste jeito esquisito sua defesa e sua reprodução ficam ameaçadas. Num piscar de apagão os besouros iluminados se animam e saem à caça em meio aos jardins que em sua plenitude dá uma descansada geral dos artifícios humanos. A correria é unânime porque por ali vão acontecendo os namoros e a energia liberada pela luminescência dá o start ao seu instinto predador ocasionando uma renovação natural que a natureza agradece.

À parte dos pirilampos tão sonhadores a negritude da noite acontece com muita calma, dando recados sutis que induzem ao silêncio de cada um, uma vez que a noite é soberana na sua escuridão. Naquele interregno da vida moderna é permitido olhar com outros olhos o entorno, enxergar o que – parece mentira – o dia não mostra, a alma não percebe, a vida não deixa, os muros da cidade ocultam e, muito pior, nossa alma não permite. Às vezes demora um pouco mais para a energia voltar, o que pode ser um presente aos ratos de praia.


sexta-feira, 8 de março de 2019

Águas de março



Abandono é coisa séria, mas por aqui, onde rola as areias do Litoral Norte é mais do que normal a prática do desertar, uma vez que nosso endereço, em sua maioria, dança conforme a musica, o que quer dizer que existe no calendário anual ocasiões específicas em que a vida se agita para mais. Pensando metaforicamente, o olhar de cima poderá contemplar a evasão do povo com todos os seus pertences se dirigindo praticamente para um só logradouro, como uma massa real que vai se confundir com a selva de pedra de cada um.

Para quem fica a urbanidade volta ao modo praiano blindado pelas características do mar que peremptoriamente toma posse de sua parte neste quadrado que por algum tempo ficou ao dispor de corações desconhecidos em sua maioria.

Os que ficam tem amor ao lugar e lhe deve seu sorriso todo santo dia porque não há como não se deslumbrar frente ao oceano, este maioral que regula o humor, que alonga o olhar ao horizonte trazendo a paz por mais que haja conflito, que resfria o corpo para então chegar à consciência, que comanda a brisa que enfuna as velas dos pesqueiros e, mais que tudo compactua com devoção para o sucesso de nossa fauna e flora assim como toda a performance da natureza aos seus pés.

E lá vamos todos praianos de carteirinha usufruir alguns meses onde não precisamos dormir ao som de bate-bum nenhum, de se imiscuir no mar de guarda-sóis na beira da praia, de ficar na fila do pão como ilustre desconhecido, de não poder andarilhar por ai, não conseguir ouvir o canto dos pássaros e pior do que tudo, na linha do horizonte sempre há uma inconveniência. Então fica a certeza do acerto na escolha da beira do mar para viver, seja na juventude seja na velhice, sempre é tempo. Amém.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...