Num arremesso mal dado, justo neste dia cinzento, meu
corpo se desmantelou e fugiu de mim deixando apenas a mente a funcionar. Vi o
molambo se afastar irado, composto apenas de braços e pernas desconjuntadas no
andar, me deixando com o sentimento de haver me tornado uma alma penada.
Aproveitei a separação para exercitar o desapego de tudo
o que me faz ficar desanimada e saí à cata do que vale a pena buscar me dando
conta que só olhando o entorno com a alma posso encontrar uma verdade mais ou
menos.
Flanando sem rumo acompanhei indivíduos nus de propósitos
dignos mas se esmerando no cumprimento da agenda que os faz correr ao camarim teatral
diversas vezes ao dia, mudando as máscaras e as fantasias, se travestindo de
dramáticos com códigos muito particulares, acreditando serem reais personagens
de si.
A esta altura meu anfiteatro estava abarrotado de notáveis
que se entreolhavam e alguns deles foram percebendo que se assemelhavam aos
outros na malandragem ao tratar o próximo. Com coragem evadi do recinto as
vilanias e aportei generosidade e coerência em boas doses para que no futuro eu
não corra mais o risco de maltratar minha carne em excessivas concessões.
Desci dali aflita para reencontrar meu corpo físico
fugido quando o avistei, muito bem humorado, sem a minha cabeça sempre culpada
a lhe perseguir, a lhe ameaçar com fantasmas noturnos e lhe açoitar os músculos
com ferro desde que nasce o dia. Sorri benevolente e me aproximei
delicadamente, percebendo a seguir que a fuga desbragada tinha surtido efeito e
ele parecia feliz por ver sua alma refeita se incorporar a si.
Conceder não mais.