sábado, 30 de maio de 2020

Contas a pagar



Não são apenas as contas da vida em curso que anda se acumulando nesta paradeira e que, amontoadas na gaveta, gritam por socorro de quitação, porém, em muitos casos, inexiste a possibilidade de cumprimento da rotina. Os menos afortunados acham por bem tentar se livrar da miragem ameaçadora e empilham de qualquer jeito os atrasos, outros organizam por data e outros ainda planejam como se livrar do mal na tentativa de aproveitar o momento e fazer girar a roda da fortuna.

Na contrapartida dos problemas reais também se acumula contas a pagar nos sentimentos uma vez que, com o afastamento de quase todos ou de muitos, sobram questões mal ou não resolvidas no tabuleiro e as cartas vão se embaralhando a medida que o tempo avança para um final desconhecido.

Com os nervos dando sinal de colapso sobra tempo – também – para se fazer questionamentos sobre a Vida, esta trajetória que para muitos é efêmera e que afirma que assim como aqui estamos, ali adiante não mais faremos parte de nada e como se nada houvesse acontecido viramos pó. Para outros, a certeza do fim dá ânimo para agradecer ao privilégio da oportunidade de fazer, ou, pelo menos tentar, que a passagem seja cumprida á risca, sem subterfúgios e sem fugir da raia traçada.

Com o andar da carruagem os espaços estão mais vazios e os pensamentos de sofrimento em relação à existência vão se espraiando, avançando na alma acumulando muitas perguntas sem resposta. Os atores e os coadjuvantes do passado se tornam protagonistas do agora e por este motivo urge, aparentemente, que as soluções sejam rapidamente aventadas. A distância é como uma lente de aumento dos problemas e com uma progressão geométrica incalculável as gavetas da alma seguem em acumulo progressivo de questões que passaram batido. É tempo de se acercar da alternativa de redenção e perdão a si mesmo, em primeiro lugar, e aos pressupostos, e alguns verdadeiros  algozes da Vida de cada um.

sábado, 23 de maio de 2020

O encanador



Ouvi não sei bem onde que a mania dos dispensados de viver dignamente a sua liberdade resolveu de outra maneira sua condição de presidiário por causa da sua má sorte por ser velho e – por isso mesmo – possuir alguns itens faltando na composição de sua máquina administrativa corporal e outros sobrando, e assim, tanto um quanto outro, que estão em regime controlado é pego no pulo levando a culpa.

Na sequência dos delírios restantes ouve-se a boca pequena que a intelectualidade perdendo um pouco de sua voz anda vociferando com timbre rouco que não consegue alcançar a porta da rua. A voz vai baixando tanto o tom que chega a ficar inaudível e por consequência a mente vai tomando certa preguiça porque não tem mais interlocução viva e real.

A história contada começa naquela casa que abriga personagens pensantes acima da média e que ao se verem cerceados da troca de ideias com seres humanos (e não com imagens) vão surtando e buscando outras distrações no corpo físico da residência.

O cara que possui mãos de um “lord” resolve, por força das circunstâncias, tomar para si tarefas de pedreiro e se joga na garagem a tirar a poeira do ferramental que não usa desde há muitíssimo tempo ou talvez, só as tenha por ter sido presenteada por alguém que ele nem lembra mais. Seus apetrechos sempre se concentraram em cima de uma escrivaninha.

Decidido e com os músculos a flor da pele já que os nervos estão abichornados lá se vai envergando à risca um macacão organizar o material e começar a caçada. Na cabeça a intenção de furungar os canos da casa porque lhe parece que é por ali que vaza inclusive seu pensamento.

Enquanto se dedica a tarefa minuciosa de abrir os escondidos começa também a pensar que a tarefa de limpeza está afetando o seu raciocínio e assim vai pulando de cano em cano com fúria. Perceberam os ocupantes da  residência que a faxina física afetou o pensamento lógico desobstruindo de certa forma os entraves do nosso tempo atual deixando as reclamações, as discórdias, os desafetos e as traições para outro momento. Agora é hora de partir com luvas em punho na arrumação do interior dos armários, gavetas, estantes porque, no fim e ao cabo, tudo passa. E a casa fica em ordem.

terça-feira, 19 de maio de 2020

Quem sou - dueto de textos de Vera Lucia Renner e Nelson Pafiadache



Um título que une com o mesmo propósito iguais letras que se diferenciam claramente na construção da escrita não se distanciando, entretanto, do sentido proposto!

Quem sou – por Vera Lucia Renner

Resolvi aceitar o desafio de eu mesma me perguntar “Quem sou” após ter lido artigo semelhante muito bem escrito pelo meu interlocutor favorito para assuntos literários e imaginei que se eu mesma discorresse sobre o tema talvez chegasse a um resultado inusitado, estranho, descabido e diferente do dele obviamente. As histórias são diversas, mas ao fim e ao cabo todos somos parecidos até que se decida o contrário, se duvide, renegue ou renuncie a visão que os outros deliberam ter, para o bem ou para o mal, de “nosotros”.

Lembro que até bem pouco tempo a roupagem que me cobria estava enredada e sufocada para acolher quem deveria ser, aceitando sem reclamar as imposições da vida, estas que aí estão embarafustadas de rotina do a dia a dia e que vão se incorporando como uma lama astral nefasta que molda a existência e se prende ao absurdo dos outros. O de fora desconhece o de dentro e deste jeito incomum de existir me fui vida afora cumprindo ritos alheios.

Por mais que eu quisesse e me empenhasse não encontrava aquela que estava ali à mostra de todos e que, por certezas outras, deveria ficar escancarada, uma vez que está em minha frente, em letras garrafais, a epígrafe de quem eu devo ser.  Apresentava-me ao mundo cumprindo à risca o rito de passagem de quem eu sou para o que esperavam, melhor dizendo, do que exigiam. Sou ré confessa que por minha conta e risco não consegui escapar deste universo que nos rouba a alma. A minha e mais um tanto de gente. É o protocolo da existência.

Foi com um tapa na cara da vida muito bem dado, que vim a mim com tanto vigor que em poucos dias as dúvidas e as reflexões antigas tomaram um rumo vertiginoso dentro de mim derrubando as muralhas do mundo adverso que me aprisionava e, uma por uma, foi caindo a máscara de quem sempre se apresentou com perfil duvidoso.  Significou um acordar do sono em berço esplêndido e ao descer deste púlpito comum a todos me deparei comigo mesma, essa daí que de ora em diante rejeita qualquer rótulo, bem ou mal feito, e que tem nas letras, na solidão, no vento, no sol e no mar a companhia desejada. Por fim o resgate de uma criança que, ao crescer, ignorou sua memória seletiva.

Quem sou – Por Nelson Pafiadache

Meu nome é Nelson e nascido em 1954, em Montenegro, RS. Cheguei para partilhar uma casa com mais cinco irmãos.  Seis anos depois, atravessei a rua para a casa nova e “fim do aluguel”- sussurrava meu pai! Logo alguns dias na nova morada, veio meu batismo de fogo escolar, pois diante da minha resistência em escrever toda letra “o”, sem tirar o lápis do papel para finalizá-lo, fiz minha mãe dedicar-se parte de uma manhã, através de severo método, para consumar o desiderato.

           De lutar para sobreviver ela sabia muito, mas de didática não tinha essa de que “vovô viu a uva e não pôde comer, porque não tinha dinheiro”. Contrariando Freire, achava que o vovô devia ter guardado um dinheirinho ou se contentar com uma laranja comum do fundo do quintal! 

          Na sua despedida, tendo vivido mais de 90, me senti grato por tanto que dela recebi, mas ficaram três questões em aberto; duas iria constrangê-la e a terceira era sobre a relevância da feitura do meu “O” desenhando uma rodinha e passado um risquinho no terço superior. Intuo que por ser muito exigente, achava que não se podia perder nos detalhes que estragava o todo. Não gostava de populismo e menos ainda do politicamente correto, era o que era e pronto!

          Dado este confinamento e ser do rotulado grupo de risco, pela idade, saúde, pensamento e obra, por minha culpa, tão grande culpa, Hosana nas alturas, volto a escrever um pouco e refletir muito mais, pois este segundo não se submete a nada e a ninguém. Escrever é arte que milhares aderem, mas com maestria, raros. O leitor sabe reconhecer quem é do ramo e que lhe faz bem, feito cloroquina nos primeiros dias!       

          Das reflexões confesso algumas perquirições existenciais e volta e meia me pego a buscar saber quem sou eu, do que sou capaz, de como possam me conceber os outros e com que acerto ou engano. Olho para os circundantes e ficou a imaginar se depois de tantos anos, possam saber quem soy yo? Se sou eu e minhas circunstâncias ou se minhas circunstâncias nem são objeto de tanta relevância. Alguém saberia avaliar ou conhece algum instrumento para medir isso?

          Mas lá pelas tantas trato de a tudo simplificar e pensar que sou muito parecido com todos. Mas mesmo assim, importa descobrir quem sou eu, imaginado por mim e concebido pelos outros. Se me escondo de mim, por vezes, hei de ter me escondido de tantos e tantas vezes, porque precisamos sobreviver, até pelos truques, fintas, jogadas, nem todas com aparência tão ética, tão morais, apenas importando não se afeiçoar com essa forma de reagir, apenas usá-las em estado de necessidade ou em legítima defesa, para sobreviver nesta selva dos homens.

          Então, quem sou eu? Sentencio: Sou quem eu sou e um pouco sou aquilo que pensam quem eu possa ser. Às vezes coincide noutras, nem a dezena do jogo do bicho acerta, mas o que importa é que eles também sigam nessa inquietação, que é em verdade uma parte do viver, essa luta de indefinições até mesmo que sendo quem somos, vale para a vida e nada para a morte morrida ou matada, menos de amor, porque disso nunca assisti exéquias!

terça-feira, 12 de maio de 2020

O nome e o apelido



Eu tenho um interlocutor cujo amor pela palavra e a intimidade com que tece em renda perfeita seus escritos nos aproximou. Devo este acontecimento aos cabos invisíveis da atualidade que junta todo mundo numa mesma bolha também ficando difícil até separar o joio do trigo. Mas, convenhamos, com o nome próprio que ele porta não ficou complicado constatar que um “Filho do Campeão” só poderia dar saltos de afinidade, generosidade e empatia. Esta última, aliás, acontece através de apenas um olhar ou, não tão amiúde, quando se tem uma base de educação das antigas ou ainda, como é o caso, o gosto por escrever.

Eu me dirijo a ele pelo nome próprio que no significado geral dos dicionários também se denomina “Filho da Nuvem” o que achei de certa maneira uma alcunha mais que perfeita para denominar este personagem que apenas conheço pelas páginas trocadas e pela voz. Lembro que ao alternarmos textos paira sobre nós nuvens de duvidas, interrogação sobre um tema ou outro, troca de significados e por fim  autorização para o fim do debate, sempre profícuo.

Pois ora veja, em uma conversa rápida trocando informações nem tão importantes sobre a vida que passa o Filho do Campeão (ou da Nuvem) resolve que devo mudar o modo de tratamento, eliminando o nome próprio e utilizando o apelido, gracioso, é verdade, porém, de algum modo desvirtuando o real significado do seu belo nome que tem a historia na origem. Fiquei honrada com a oferta, mas também relutante porque talvez houvesse uma quebra na pompa e circunstância dos primeiros parágrafos que se esvairiam como pó de ouro no ar.

Então comecei a imaginar se de ora em diante as conversas se adequassem ao “modo” apelido, de ambas as partes, porque a quebra do protocolo deve ser igualitária e por este motivo lhe revelaria o meu. De criança, e que não é nada sonoro, diga-se. Pensei muito no assunto e por todos os inícios de conversa que projetei na mente não havia jeito de enredar algo que combinasse com os apelidos. Ambos gostamos de palavras mais eruditas, mais inusitadas e que o ser comum de hoje não faz a menor ideia de onde elas vêm. Esta é a graça.  Nossas letras que ora andam separadas ora achamos por bem misturar não terão uma bela combinação na assinatura. Sinto muito “Filho do Campeão”. Pedido negado.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Novas práticas



Eu já havia decidido bem no fundo da minha alma - provavelmente sem ter completa consciência - que este ano seria diferente para mim, havia um impulso forte para mudar mesmo não sabendo ao certo do que eu precisava e muito menos ter conhecimento do necessário a fazer e o que a intuição me apontava. A partir da vida que andou nos últimos tempos os estalos foram acontecendo um após o outro até eu não ter mais ouvidos para ouvir. O silêncio que é o meu mestre acabou sendo atacado vilmente quebrando as minhas barreiras naturais. O barulho me foi apresentado como um aviso.

Dirigi-me voluntariamente a um grande vazio e com os ouvidos no vácuo tive condições de observar com cuidado o que a Vida andava querendo me mostrar e que até este momento exato eu não conseguia perceber e muito menos organizar. Pensei nela como quando se faz uma mudança de casa colocando os objetos em caixas separadas, embaladas adequadamente e devidamente etiquetadas para que tenhamos o norte do conteúdo. É fácil, muito fácil esquecer um ou outro objeto no momento em que eles saem da nossa vista e estes nos surpreenderão em menor ou maior grau ao serem redescobertos.

Foi assim que este momento se apresentou para mim. Vazio de tudo. Alegrei-me e agradeci por ter conseguido zerar a minha mente e colocar em modo de espera minhas decisões de ora em diante.

Ao me debruçar sobre a premência de estabelecer diretrizes que me protejam mais no dia a dia me vi tomada por uma preguiça gigante e uma vontade de deixar estar. A inércia veio cochichar que talvez esta fosse a melhor opção para este momento. Deste modo resolvi deixar tudo o que recolhi da minha mente barulhenta fechada a sete chaves aproveitando apenas o silencio e o vazio reinstalado como companheiros fiéis. Devo aos dois novos aliados a acomodação voluntaria e sem esforço da nova pratica de viver e conviver  nos caixilhos que a duras penas consegui esvaziar.

domingo, 10 de maio de 2020

Minha mãe



É sempre o inesperado quem me acolhe ao lembrar minha Mãe e quase sempre é algo que vejo em mim, o que não é difícil uma vez que estou envelhecendo e meus traços vão tomando um contorno muito semelhante a ela como uma condição atávica.

Ao andar pela casa vou tropeçando em quase tudo que lembra a casa dela porque alguns objetos fizeram parte da minha vida toda. Além disso o jeito de arrumar é muito parecido. Quase não possuo móveis modernos, os meus enfeites são as porcelanas e objetos que vieram desde a casa em que nasci passando pelas doações de tia e avós. A minha arrumação fica quase que sendo um santuário de lembranças e assim eu vou vivendo sempre de olho no que é belo, que tem tradição e me conforta, comprovando que eu não preciso de nada.

Na aparência acontece a mesma coisa. Quando eu visto uma roupa colorida – que não é minha preferência – fica claro que fui empurrada para aquele figurino como se houvesse uma força maior. A mesma coisa acontece ao me olhar no espelho e ver em mim as rugas dela, o cabelo escasseando nas têmporas e branqueando em torno do rosto como assim foi em minha Mãe. Na manicure as mãos que se estendem na vaidade são distintas na cor do esmalte, e então começo a perceber nossas diferenças.

Ao contrario de mim ela era contida, não tinha o riso fácil e falava baixo, acho que era porque o seu interior de artista brilhante puxava o seu melhor para dentro, guardando elementos para poder dispô-los em suas artes manuais. Hoje eu sei que suas gargalhadas migraram no entrelaçamento das tapeçarias que tecia constantemente deixando um rastro dos seus sentimentos alegres e coloridos pendurado na parede.

O brilho do seu olhar estava refletido nas mil miçangas com que bordou ponto a ponto meus vestidos de baile e suas alegrias ficaram enfurnadas nas longas luvas de cetim que compunha o traje que escondia meu braço magrelo e sem traquejo social, porém, minha Mãe possuía glamour nato que assim me era conferido. Ainda escuto o rufar da maquina de costura que ela acelerava com os pés parecendo um trem antigo que ruidosamente lhe fazia companhia.

Não tenho o dom que minha Mãe tinha para a costura e o bordado mas gosto de pensar que a minha intimidade com a escrita e meu despudor em demonstrar o que me vai dentro da alma costurando histórias através das letras vem deste talento dela.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Fique em casa



O espaço em que se vive, o lugar para onde se foge todo santo dia aceita sem reclamar a desatenção que recebe quando as demandas externas continuam a impulsionar os olhos de todos para uma tela - pequena ou grande – não importa. É assim que no dia a dia o lado de fora vence a batalha e acaba roubando a atenção levando consigo a alma, alma essa estropiada dos descaminhos do mundo, que se debate na controvérsia e se perde entre tantas verdades e mentiras abrangendo todas as ordens inversas e controversas.

Percebe-se que o Universo esta atento, e de um modo bem radical aponta a cegueira em que se vive, mesmo estando com os olhos abertos sem de qualquer modo enxergar. Deste jeito às avessas se estabelece a obrigação de deitar o olhar para a entrada da casa e eleger o capacho como o xerife e guardião de nossas boas práticas a partir de agora. Isto acontece como se nunca houvesse sido importante restringir o acesso do nocivo ao lar.

Como se fosse pela primeira vez o olhar é surpreendido pela montagem dos espaços de convivência que - por qualquer motivo - foram se adequando ao modelo atual de convivência dos núcleos familiares. A tecnologia hipervalorizada nos dias de hoje se instalou de tal modo na decoração da moradia demonstrando que ao entrar em casa, o lado de fora entra junto.

Agora confinados, as surpresas vão se revelando em todos os níveis. O olhar insistente para fora deixou escondido grande parte da rotina que se deve ter dentro de uma morada, seja ela grande ou pequena, de muitos ou poucos moradores. Com certa timidez as pessoas vão olhando para dentro de si mesmas e – mais importante – mirando o outro ocasionando descobertas que com certeza irão valorizar e consolidar as relações para sempre. Para o bem e para o mal. De qualquer modo fica muito claro que parar para pensar nunca foi tão importante.

Os minutos que eram vividos como se não houvesse amanhã estão sendo redimensionados passando a ter um tempo de utilização verdadeiro porque são eles que marcam a alma que parou e se arrependeu da corrida para o nada. A natureza se revelou uma parceira dos sonhos e divagações uma vez que o azul do céu e do mar ressurge para muitos deixando as ruas desertas se tornarem verdadeiros retratos de um tempo.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...