sábado, 23 de maio de 2020

O encanador



Ouvi não sei bem onde que a mania dos dispensados de viver dignamente a sua liberdade resolveu de outra maneira sua condição de presidiário por causa da sua má sorte por ser velho e – por isso mesmo – possuir alguns itens faltando na composição de sua máquina administrativa corporal e outros sobrando, e assim, tanto um quanto outro, que estão em regime controlado é pego no pulo levando a culpa.

Na sequência dos delírios restantes ouve-se a boca pequena que a intelectualidade perdendo um pouco de sua voz anda vociferando com timbre rouco que não consegue alcançar a porta da rua. A voz vai baixando tanto o tom que chega a ficar inaudível e por consequência a mente vai tomando certa preguiça porque não tem mais interlocução viva e real.

A história contada começa naquela casa que abriga personagens pensantes acima da média e que ao se verem cerceados da troca de ideias com seres humanos (e não com imagens) vão surtando e buscando outras distrações no corpo físico da residência.

O cara que possui mãos de um “lord” resolve, por força das circunstâncias, tomar para si tarefas de pedreiro e se joga na garagem a tirar a poeira do ferramental que não usa desde há muitíssimo tempo ou talvez, só as tenha por ter sido presenteada por alguém que ele nem lembra mais. Seus apetrechos sempre se concentraram em cima de uma escrivaninha.

Decidido e com os músculos a flor da pele já que os nervos estão abichornados lá se vai envergando à risca um macacão organizar o material e começar a caçada. Na cabeça a intenção de furungar os canos da casa porque lhe parece que é por ali que vaza inclusive seu pensamento.

Enquanto se dedica a tarefa minuciosa de abrir os escondidos começa também a pensar que a tarefa de limpeza está afetando o seu raciocínio e assim vai pulando de cano em cano com fúria. Perceberam os ocupantes da  residência que a faxina física afetou o pensamento lógico desobstruindo de certa forma os entraves do nosso tempo atual deixando as reclamações, as discórdias, os desafetos e as traições para outro momento. Agora é hora de partir com luvas em punho na arrumação do interior dos armários, gavetas, estantes porque, no fim e ao cabo, tudo passa. E a casa fica em ordem.

Nenhum comentário:

Papelaria em dois tempos

  Não sei quem me encontrou primeiro, se aquela papelaria antiga ou eu, que ando gastando a sola do sapato atrás de quinquilharias que lembr...