sábado, 23 de janeiro de 2021

O interesseiro

Chega sempre de forma lenta, rasteira, parecendo com uma brisa leve vinda do mar, sem assombro envolvendo com suavidade o cativado e, como não poderia deixar de ser a eficácia da abordagem cinge como lindo laço de fita cor de rosa o alvo que agora está à mercê da roda sinistra que se instala por perto deixando praticamente tudo sem chance de escape. 

Como tudo que é – ou parece bom - vai se espalhando com singeleza nas abordagens e as demandas são tão sutis que de pronto atendidas e assim numa sequencia interminável a rotina avança sempre na tentativa de desatar os nós que aparecem do nada, mesmo que a ponta da flecha não lhe tenha mirado a testa, tudo vai ocorrendo na mais perfeita desarmonia do abuso do tempo, do espaço e da vida. 

Segue o tempo para frente onde os braços compridos do calculador manipulam o passado, o presente e se lançam no futuro com muita coragem, aliás, de fazer inveja aos menos afortunados de confiança, a quem tem as pernas mais enfraquecidas no andar, uma alma mais tranquila que se deixa levar aqui e ali por curiosidade, duvida, boa vontade, pois, afinal, não custa nada. 

O enredo parece de fácil entendimento, porém sempre tem aquele momento do excesso, do limite transposto que deixa uma marca que a ingenuidade até agora ignorou, ou talvez, a boa vontade andou elevando sua potência talvez por perceber que o entendido jaz absurdo e o cansaço resolve - por ser o seu destino - colocar uma pedra em cima e seguir por outro caminho onde não surja tanta bruma imposta pelo cobiçoso energético de plantão e assim se aprende a lição.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Caluda

 

Veio assim como uma bela manhã de inverno que ao se atrasar propositalmente a mostrar sua luz vem tateando centímetro por centímetro a Terra, fazendo quase que de propósito um retardamento na clareação do mundo do tempo, que, desta feita, vem frio, gelado condicionando o corpo e a mente ao recolhimento e porque não dizer inspirar a todos um pouco de timidez e o ver e ouvir abaixo, a menos ou nada. 

Foi uma surpresa encantadora perceber que por qualquer motivo eu, meu entorno e mais uma dezena de fazedores de barulho indeterminado de causa, mas, com certeza, com muito efeito, nesta manhã preguiçosa restou muda. Deu-me a impressão que alguém soprou um “Mandrake!”, ou “Estátua!” ou “Vaca Amarela” que com toda a pompa e circunstância dos ditos antigos teve uma obediência ao comando. Nada como uma volta ao passado remoto para obter pérolas brincalhonas que induz ao sorriso imediato, ao abrir e fechar os olhos para lembrar melhor e um relaxar cativante do esqueleto que se dá conta, afinal, que existe por ai segredos muito bem guardados e prontos para agir com sedutora eficácia. 

Eu acredito que o tempo resolveu dar uma parada estratégica no barulho do mundo utilizando as brincadeiras de criança já esquecida pelos adultos de hoje e sequer reconhecida por outros da atualidade ficando a “caluda” entre nós como uma sombra. A companhia desta moça com nome também antigo a lhe denominar apareceu bem na hora correta, quando os ruídos já não conseguiam mais se fazer audíveis pela forma desconexa com que se manifestavam. 

A natureza, que não dá ponto sem nó, entrou na brincadeira, os ventos mudaram de quadrante com rapidez incrível atazanando o mar que ditava as regras com fúria, as nuvens desciam tanto que anuviava todas as formas de vida naquele lugar. A bicharada arregalou os olhos e se aquietou assim como a cachorrada de rua ficou abichornada. Foi por um instante apenas que todo este imbróglio aconteceu bem na minha frente. Nada mau para um ensaio de desejos secretos.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Evasão

 

Eu vi a correria do lado de fora do mundo, e fiquei pensando que seria interessante, ao invés de ir junto, aguardar e observar com lupa quem estava indo por ir, quem se aprumava para pegar a estrada e quem por qualquer motivo nem olhava, somente seguia na meta de lugar nenhum. Cautelosa, mais por andar devagar e estar lenta em quase tudo do que por convicção, me quedei a observar o movimento. 

Não galguei nenhum andar, não subi em nenhum morro e não alcancei nenhum topo de escada, pois me dava a impressão que esta massa disforme que se deslocava não alcançava terra firme. Fiquei no limiar do mundo, no caminho do mesmo, para poder enxergar quem passava por ali e me surpreendi porque não vi ninguém passando, arrastando as chinelas na pedra, na sarjeta, no meio da rua de pedregulhos ou de poeira assentada desde há muito. 

O que se passava nesta minha visão que acabou sendo surreal por todos os motivos uma vez que vagavam como se fossem criaturas de outro mundo os pensamentos, as atitudes, os mandos, os desmandos, a discórdia, a estupidez, a ignorância, os desafetos, a raiva e por ai vai uma longa lista de adjetivos comportamentais que desfilavam à minha frente se aglomerando em grandes blocos, se arrastando a centímetros do chão em lenta progressão para lugar nenhum, me parecendo que o importante era reunir a massa e arrastar-se como praga pestilenta. 

Constatei que nos arredores, pela frente, por detrás ou pelos lados não havia os sentimentos antagônicos ao desfile que acabava de presenciar o que me causou grande aflição. Iniciei minha procura pautando o que eu poderia ver e que tanta falta faz e que desse conta de dissipar aquela nuvem tenebrosa que se arrastava ao rés do chão.

Fui andar um pouco mais para perto do mar e assim fui encontrando a natureza marítima de prontidão e sorrindo para mim lembrando-me que os bons sentimentos nunca mudam e jamais rastejam em formato desastroso, pois eles estão em todos os espaços vitais, nos sorrisos, nos olhares amigáveis, no andar cambaleante de idosos e bebes, no corre-corre dos jovens.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

O Intruso

Nem bem começou o encontro e já se aproxima o cara que por qualquer motivo lança seu olhar de cima dando a impressão que nem quer entrar quanto mais participar. Rosna um bom dia e ameaça sorrir, mas de repente, não mais que de repente, engole o sorriso que deverá ficar armazenado até que haja outra ocasião, pois pelo jeito esta atual não é merecedora de exposição mínima de agrado a quem assiste sua entrada triunfal. 

A conversa corre solta com variantes de todos os vieses que possam deixar o ambiente tão aberto como um largo sorriso nos olhos de tantas saudades, com braços estendidos no ar para um abraço, vozes que não se cansam de procurar o diapasão para que nada saia do tom e o motivo aparente se transforma em uma massa de conversa que abençoa a todos, seguindo em franca recuperação do tempo perdido, do tempo calado, do tempo enviesado, do tempo roubado. 

Enquanto se vai no vai da valsa com os passos da dança otimista e abençoada que ensaia novo ritmo uma vez que entrevado de há muito, a figura extemporânea a cada minuto se afasta mais e mais de fazer parte do momento, ocasião única, em que abrigados do sol escaldante, dos ventos airados e do populacho escandaloso se procura, como agulha no palheiro as conexões que andaram retorcidas como fio elétrico que pegou fogo. 

Devagar e com o capricho dos sentimentos à flor da pele a costura vai sendo executada com sucesso mesmo que haja àquela hora de falar todo mundo ao mesmo tempo, cruzar assuntos e rolar conversa paralela deixando á deriva a ocasião. 

A única pedra no sapato do dia foi o intruso que com a cabeça baixa manipulava seu celular alheio ao mundo com Vida que o cercava, chamava a chincha, sorria com os olhos, abraçava sem braços caindo no vazio de ouvidos moucos.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...