sábado, 27 de junho de 2020

Sinal de fumaça



Que bom que assim fosse, que pudéssemos incinerar nossos pensamentos e fazer deles uma nuvem densa, uma fumaça de respeito que ao ser expelida se transformasse em um recado para os céus, este daí para quem todo o santo dia miramos com olho comprido. Vertem sinais de todo calibre, às vezes disfarçados de bala de prata que na maioria dos casos passam ao largo, zunindo para outras paragens mais profícuas no entendimento.

Seria uma oportunidade de desabafar o que vai dentro da nossa alma, desde as questões mais intimas e inconfessáveis até as normalidades de todo dia. Pensamentos volatizam no nosso entorno e nesta parada obrigatória se acumulam desordenados havendo uma percepção de que seria melhor poder correr. Mas, como fugir de si mesmo se as portas de saída estão lacradas,

De pronto encontrei em mim algumas opções interessantes para jogar na fornalha. Dei tratos à bola e achei por bem classificar em dois lotes o que me vinha à cabeça. O primeiro lote tem a ver com inspiração e teimosia, pois colocar no papel o que me vai por dentro somente sendo birrenta, portanto, este fica. O segundo lote, me dei conta, tinha a ver com acontecimentos passados, questões mal paradas e também muitos sonhos e esperanças vãs empilhadas em uma base com pernas frouxas.

Ao constatar com clareza este panorama em minha frente, decidi me livrar o mais rápido possível do incômodo da lembrança recorrente e encarar de primeira aquela ocasião estapafúrdia de todos contra um ou de um contra todos e assim lá se foi o primeiro sinal de fumaça para os sem noção. O próximo veio na consequência e foi um espalha brasa para todo lado até não sobrar ninguém. O subsequente teve o mesmo destino e após esta jogada de mestre os causos se demudaram em belíssimos tufos de fumaça se transformando rapidamente em recados bem dados.

sábado, 20 de junho de 2020

A carta



Encontrei a carta no meio de um livro, destes que a gente tem uma vida inteira e volta e meia  folheia como se fosse a primeira vez. A carta foi escrita em computador já há um tempo e havia sido impressa. Não estava envelopada, porém, estava amassada e parecia ter sido socada nas mãos com certa fúria ou desespero, tal sua aparência, mas por fim foi alisada e dobrada com cuidado marcando uma página de um livro de contos e crônicas.

Abri com certo cuidado porque, juro, eu não lembrava de tê-la escrito. Não havia data, não rescendia a nenhum odor que a levasse a mim, apenas algumas traças tinham concluído seu trabalho e eliminado a pontuação, o que poderia alterar, e muito, o significado.

Antes de deitar os olhos ao conteúdo dei tratos à bola para trazer de dentro de mim a lembrança de tê-la redigido. Porém, logo desisti da ideia porque seria mais proveitoso e assertivo terminar com esta duvida, ler o conteúdo e jogar fora se não me dissesse coisa nenhuma ou cair de joelhos frente a algo que eu havia esquecido. Por bem ou por mal.

Encorajada e já um pouco impaciente com a duvida sobre o que ali estava escrito fui abrindo a dita cuja e comecei a ler. O texto grafado era sobre um fim, um estado mudo e uma partida para nunca mais voltar. O que mais me surpreendeu foram as metáforas utilizadas para a redação deste importante documento e creio que o designado poderia não entender patavina.

Ao concluir esta análise lembrei-me do fato e também do subterfúgio que utilizei para, de certo modo, não me fazer entender.  Lembrei também que eu não havia conseguido colocar no papel os meus sentimentos, logo eu, que não me importo de me afogar nas emoções. Iniciei uma nova missiva dizendo para mim mesma que a escreveria “com o fígado” e comecei assim:

“Tenho duvidas se vais entender, mas não tenho duvidas do que eu vou escrever...” comecei mal, desisto. A carta foi para o lixo.

quinta-feira, 18 de junho de 2020

O algoritmo




Ando de boca fechada por aí sem poder conversar com o mundo através de um sorriso simples, um trejeito amistoso com a cabeça, uma gargalhada bem dada e assim, maneteada pelo algoritmo que determina com detalhes minuciosos quem te lê e quem te vê na foto, resolvi, além de calar a minha voz, vendar o meu olhar e dei adeus às imagens do mundo exterior. Ficarei na companhia do vento, ora forte ora fraco, da maresia, dos aromas de comida e da natureza, do tato e, claro, das topadas nos móveis – poucos - como se não bastassem as da Vida.

Decidi que por um tempo indeterminado não me interessa quem irá passar pela minha frente. Animei-me, uma vez que aqui está a oportunidade de no escuro enxergar melhor o que anda desfilando diante de mim na luz. Com os olhos vendados não sofro a interferência do externo e as lembranças assomarão à superfície. Mas, passar a limpo está fora de questão porque ao se entreter olhando para dentro o espírito vai fazendo uma seleção natural do que nos faz, ou fez, bem.

Vale lembrar que o que eu preciso agora é de acontecimentos repaginados com o pincel da essência da minha alma que irá determinar os entretons originais que por ventura estiverem esmaecidos na memória. As lembranças acontecem de assalto e agora, vendada, o contexto vai se alternando sem que o fio da história se apresente. Não existe lógica – nem algoritmo - que consiga estabelecer os retratos que vão passando na claridade da escuridão. O conforto e a quentura de ensimesmar-me, juro, não tenho coragem de negar.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Coração partido



Os mil pedaços estão ali espalhados pelo chão como se fossem cacos inconsertáveis de algo que ocupou por pouco, muito ou por toda a vida uma alma que agora sangra ao perceber que talvez todos os seus esforços foram em vão para manter no bate pronto os amores dentro do coração, símbolo físico do afeto. Não foi por falta de aviso. Enquanto tudo indicava para um fim desastroso foi a obrigação de cumprir ritos que maximizou a desgraceira. Ou pior: vislumbre ilusório de uma situação como se assim fosse possível parar o tempo.

Ficou fácil escolher aquela estrada ladeada por canteiros de flores as mais diversas. Eram tantos os formatos e matizes que cresciam e se emaranhavam promovendo uma visão idílica que não se percebia os perigos ocultos de sair do caminho apontado. Porém ali estavam eles fardados de espinhos pontiagudos, seiva venenosa e insetos ocultos, prontos para revelar seu mal se fossem desafiados. Bem assim. Mas, o que os olhos não veem o coração não sente.

A montanha nem parecia ser tão íngreme olhando do sopé e assim, com equipamentos emocionais enfraquecidos se vai aquela alma quase penada lomba acima em busca do sonho de amor. Vale lembrar que na mochila rota e murcha se acumulam desilusões e foram ali colocadas para ser um norte, um exemplo, para a próxima tentativa de amar. Na primeira parada, por causa do peso, a mochila é descartada e com ela o rico histórico que lhe salvaria de nova desilusão. Pois ora veja, novamente surge o imponderável: o que os olhos não veem o coração não sente.

O mar aberto, com todos os seus mistérios cantados em prosa e verso estava ali, sempre à disposição para receber qualquer tipo de coração aberto ao amor, dos mais felizes aos mais desgraçados. Todo santo dia as ondas vem lamber as areias e, principalmente, as feridas de quem se desiludiu, de quem vem juntar suas lágrimas ao oceano, de quem prevê que orando para Iemanjá seu destino amoroso vai mudar. Diante da imensidão do mar e dos seus segredos profundos, tudo é possível, até iludir-se. O que os olhos não veem o coração não sente.

sábado, 13 de junho de 2020

Aquela máscara



Uma beleza andar na multidão - ou nem tanto - enfarpelados de mascaras que oculta muito ou quase tudo da nossa feição. Conforme o modelito e acessórios não saberemos quem é o dono daquele corpo que anda por ai, mas talvez o identifiquemos pela indumentária que em lugares pacatos não varia muito uma vez que não há preocupação de projetar uma imagem social, de riqueza ou de status, às vezes falso. Vale mais projetar o conforto da cabeça aos pés e sair por ai sem preocupações, sem olhar para o lado, sem analisar os que cruzam por aqui e por ali.  Para poucos.

O envoltório ganhou o mundo e começa escondendo o sorriso, um cartão de visitas universal e agora oculto deixa em dúvida vizinhança, amigos, prestadores de serviço e o scambal. Ao não se deparar com o sorriso fica a duvida da acolhida e se dá uma vacilada se o dito que lhe frenteia está de coração aberto ou acuado. Na duvida, a recomendação é ser assertivo e protocolar, pulando para o outro lado da rua. Fugir do outro, este é o mantra da hora.

Emudecidos, os disfarçados perambulam protegidos sem a obrigação de ter de ouvir conversa fiada, contação de vantagens, assunto sem fundamento e maledicência. De esguelha se espia as presenças profícuas evacuadas de nós.

 A camufla do rosto faz o olhar embaciar, se voltar para baixo, para as pedras do caminho, encilha o pensamento e a iniciativa murchando o sorriso que ficou sem destino. A boca escondida e a voz abafada é superada pelo poder do olhar que irá fuzilar o mal intencionado que ri com os olhos e condena com o lábio oculto. Não se mascare por dentro e mantenha seu olhar fixo e brilhante para ofuscar a boca tapada à mando.

segunda-feira, 8 de junho de 2020

Desvio



Não foi nem um pouco difícil desviar do caminho apontado uma vez que inexiste atitude melhor do que procurar no vazio as respostas sequer formuladas. Às vezes elas chegam antes da pergunta ou da dúvida e somente por este motivo já dá para dar tratos à bola de muitos assuntos suspeitos que brotaram não se sabe de onde. Portanto, arriscar é permitido e de preferência fazendo alarde porque somente deste jeito este mundo cheio de certezas vai ouvir.

Porém, de forma insuspeita a trilha não foi escolhida por livre arbítrio, apenas se apresentou sedutora como se fosse uma proposta amorosa, encantadora, sugerindo um amor incondicional e eterno parecendo haver a certeza de que esta seria irrecusável. Com esta promessa, andar à frente pareceu tão interessante, inexistindo um olhar mais apurado para o ofertado tão gentilmente e com tanta serventia.

Neste caso específico o rumo visualizado nas brumas da dúvida se desenhou como caído do céu, se oferecendo como novo, como do bem, não demonstrando a camuflagem e perigo da oferta mesmo que o desejo mais profundo fosse mesmo ficar à deriva, à mercê e adotar novas práticas, mais radicais e inovadoras que, neste exato momento, advinham com força descomunal ao trato do dia a dia.

A energia do acaso, porém, desativou a força interior do propósito e como se fosse barquinho de papel no aguaceiro da sarjeta se dirigiu à ilusão. A navegação turbulenta mostrou de cara o engano e a realidade foi batendo nas ventas do iludido que decidiu desvestir-se da promessa de amor eterno mascaradas de reais e saiu assim, nu de si mesmo se posicionando em perspectiva.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...