quinta-feira, 26 de outubro de 2017

O vento


O andar é silencioso como se pisasse em ovos, como se quisesse levitar para não destruir a grama recém-bafejada pela maresia, como se assim pudesse não algaraviar a passarada que quase não dorme por aqui porque sempre tem algum trinado ecoando entre as sombras. Há sempre um ninho onde menos se espera, um refúgio para quem ficou sem o seu galho preferido e de certa forma chama os seus pares num grito pungente de ajuda. Parece sempre que é um silencio barulhento este, da natureza.

Os caminhos tem igual personalidade, ora sendo cuidados, ora escondidos nos cômoros, nos arredores das vilas que se insinuam por entre as quadras mais longínquas, as trilhas dos pescadores que para terem acesso ao mar marcam com suas chinelas o caminho deles, quase invisível. E então tudo fica de certo modo escondido, aparecendo todos estes milagres apenas para quem tem a vista fina, o apuro da mente conjuminada com o detalhe que prolifera neste ermo.

O sol também segue amainado e um pouco escondido entre nuvens parecendo não querer aparecer de todo. Quem sabe ele – e todas as outras características - tem certo receio de antecipar a temporada do tudo ou nada, os dias em que todas as praias sentem na carne que sua alma foi vendida, que seu espirito vai ser por algum tempo modificado, que as conversas de todos os dias se modificarão tanto que as cidadelas, os municípios e os distritos de uma hora para outra se tornam adultos e assim tem que lidar com a maioridade que de fato nem quer ser conquistada.

Mas o rei da indignação é mesmo o vento que anda encafifado com tudo e não para de soprar, sobejando para os cômoros que agora nem tem mais pouso certo porque em alguns lugares se movimentam por cima das calçadas, das ruas e dos jardins adjacentes à beira do mar. Ele é assim, contumaz em sua missão e me parece que agora encanzinou em soprar sempre, dia e noite, deixando nossos ouvidos moucos para o restante, nossas janelas parecem não ter serventia porque o bate bumbo é constante. E eu aqui faço de conta que não me importo porque, quem sabe, ele consiga atrasar a invasão que tira todo mundo do eixo mesmo sem seu sopro.

segunda-feira, 23 de outubro de 2017

Um ano


É só abrir a porteira do dia com o sol alumiando ou aquecendo, o vento arrastando tudo ou a chuva arrefecendo a natureza que os moradores se jogam como se não houvesse amanhã à plataforma de notícias que chega através de todo o aparato tecnológico de que hoje dispomos, seja em formato grande, pequeno ou médio. O certo é que ela é visualizada igualmente em todos os aparelhos acessados e assim, com presteza, vai listando o que precisamos saber antes de sair de casa, antes de chegar à padaria, antes de escovar os dentes, antes de ligar a TV ou de sair da cama para quem pode. Verdade, cada um de nós insere à sua rotina o hábito de ler o que anda rolando no seu quadrado.

E assim aconteceram 365 dias, um após o outro, com registros selecionados com rigor e competência para que a população do Litoral Norte tivesse acesso aos acontecimentos mais importantes da região, todas escritas com imparcialidade, selecionadas a dedo para cumprir com a missão jornalística de informar com precisão o que acontece.

Porém, todos sabem que a cereja do bolo noticioso tem em seu DNA o espírito de deixar completamente informado quem ama o litoral o ano inteiro, quem acorda todo dia chamando a sexta feira para mais perto, para quem, ao olhar o calendário faz um grifo forte nos feriados, para quem adora fazer a traquinagem de vir apenas jantar no seu restaurante preferido aberto o ano todo, dormir ao som das vagas do mar e no outro dia sair bem cedinho de volta ao seu trabalho. Nesta volta, vai com um sorriso no rosto e informado dos próximos acontecimentos do lugar escolhido, sentindo-se bem ao queimar um dia até que o tempo implacável volte a lhe brindar com o final de semana.

Acreditamos que este ano passado, pontuando tudo o que aconteceu, saímos mais fortalecidos, mais conhecidos, mais experientes, mais esclarecidos e com credibilidade, tanto que a partir de agora novidades importantes se agregarão a nós, além do noticiário diário, dos artigos com feição de entretenimento, outros com informação histórica e abrangente. O que importa é proporcionar o melhor da informação e assim temos muito mais a entregar para uma população que ama aqui morar e outra que ama vir um final de semana sim, e outro também.

sábado, 21 de outubro de 2017

Um rastro de tempo


Encilhei a oportunidade que cavei, a duras penas, para mudar com o pouco que havia restado das tantas besteiras acumuladas, materiais e espirituais sendo que esta última parece ter adquirido vida própria ao longo dos anos, agindo como uma sarna crônica não desgrudando de mim em tempo algum, demonstrando uma personalidade altiva que nem a sabedoria de fundo de quintal, a pseudo inteligência amorosa, a intuição afiada e a ingênua certeza de tudo não dão cabo da dita cuja. Mesmo assim, parti, levando mais dentro da alma do que no lombo.

O peso da bagagem real mal dava para lacear os braços e pernas e assim este tipo de bota fora – cangalhas - seguiu com a leveza que se deve ter quando se decide deixar as raízes do lado de fora do curso normal da vida, que o passado representado pelos objetos acumulados foi tão perguntados sobre sua serventia que poucos se mantiveram arrolados para seguir junto. E assim se fez a transição sem resfolego demasiado, sem apego ao inútil, sem que nenhuma dor de retirante pudesse soçobrar diante deste entulho escolhido a dedo.

O processo de organizar tudo em seus devidos lugares igualmente não sofreu alteração frente ao planejado porque, exíguo o espaço e diminuídos os pertences a arrumação se ajeitou por si só. Ao transplantar raízes há que se encontrar um melhor sítio, escolher a melhor terra e adubos e com muito jeito acomodar o que pertencia a outras paragens ao novo. Assim se cumpriu o ritual de cada coisa em seu devido lugar e para coroar a escolha, lugar certo para tudo. Deste modo a casa vicejou em todos os seus cantos com a nova vida que havia sido concedida.

Chegou a hora de organizar o estado de espírito que, infelizmente, não consente que a consciência lhe meta a mão, mesmo que tudo se confunda um pouco sem saber direito o que se deve colocar como uma reserva especial, ou se seria de bom tom se livrar logo para não ter aborrecimentos, ou, ainda perpetuar algo com o ferrolho da boa vontade. Na faina de lavrar o restante ficou perceptível um rastro picotado de pessoas, acontecimentos, lugares, eventos que não encontraram paradeiro dando a impressão que tudo ficou perdido nas beiradas do sempre.

sábado, 14 de outubro de 2017

Fantasias


A chuva é assim, cheia de segredos e manias, às vezes varrendo o chão com fúria porque considera demais a pressão. Não aparece quando o homem faz rezas visando o plantio ou porque o gramado tem que ficar verde ou porque a fotossíntese não acontece sem a dupla fagueira, sol e chuva. A água que cai dos céus tem muita serventia, mas nem todas estão disponíveis sempre.

Nem bem abrimos os olhos corremos para as janelas para verificar como será o dia, se vai precisar guarda-chuva, casaco, galochas ou se um abrigo bem leve vai dar conta do recado. “Será que vai chover?” deixou de ser aquela abordagem ridícula de um paquera que não sabe o que falar para se aproximar e deste jeito engraçado a frase vai saltando de todas as bocas do mundo, incontinenti, ao passar por qualquer um e se alinhando ao cotidiano. E quando ela teima em ficar, só de birra ou porque o clima mandou, a pergunta se inverte: será que a chuva vai parar?

Quando a torrente resolve desaguar sobre a região de certo jeito impermeável a ela, o peito vai se apertando e o pensamento acaba migrando para todos aqueles que não têm força para deter a natureza indômita. Vivemos na selva de pedra que foi construída com descaso em relação aos drenos naturais, mas o coletivo faz ouvidos moucos e a permeabilidade do terreno vai sendo invadida a par e passo, com bueiros entupidos, muros inacreditáveis erguidos em beiradas, e assim o urbano vai aprontando das suas.

O personagem airado vai tomando conta dos dias por sua falta ou por sua permanência, não havendo jeito de sair de cena. Neste paraíso litorâneo, porém, ando sempre prevenida em relação a ele porque a qualquer momento pode arrefecer seu humor, o sol aparece, as nuvens iniciam a dança da evasão para o horizonte, as poças d’água da chuva vão espelhando o céu que resolve abrir-se, o mar se acalma e reflexos fazem todo o sentido. Em mim, a fantasia de não ser uma só.

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Um sonho


Não tinha jeito de minha mente apagar a imagem daquela casa na beira do mar que simplesmente aconteceu na minha frente em um dia destes, ao me perder por vontade própria, andando por aí e entrando em tudo que é buraco de rua para ver se encontro o retrato que figura dentro da minha cabeça. A foto não mostra tudo o que a casa é, mas sim a força dela em mim e então, um mundo paralelo de possibilidades aterrissa em minha frente a começar pelo potencial do arrabalde.

Mais do que olhar para a habitação, aconteceu de me perder em devaneios quando percebi que a dita encostava seu jardim muito estreitamente junto a praia em frente, ao lado de um sinuoso caminho agreste, sombreado por cômoros e pinheiros nativos, conferindo ao beco um sentido absolutamente irreal e misterioso. Este caminho parecia ser a saída do lugar ou apenas uma trilha para alcançar a vizinhança e escancarou-me histórias dos viventes daquele lugar escondido, sem que eu pudesse conter minha imaginação.

Desviei a atenção novamente para olhar com mais vagar a construção e o que ela parecia me gritar a plenos pulmões com sua aparência um pouco abandonada, com certo descaso em todo o terreno construído e, claro, vazia de seus donos, pelo menos no momento em que eu me apoderei do imóvel como se dona fosse. 

E assim, a cada pedaço daquela paisagem por onde meu olhar vagava, acontecia dentro de mim o quadro perfeito como se eu tivesse o talento de transformar cada recanto sem vida em um lugar diferente. Talvez eu tenha pensado que pelo motivo simples de quem viver nesta casa, ao acordar todos os dias, se encontra com os pés na areia e em seguida nas ondas do quebra mar, podendo se arremessar com alguma ou nenhuma veste, com a mente vazia da noite que se foi, com os olhos fechados e cabelos enredados portando apenas o confronto com a natureza, inclusive se confundindo com ela.

De repente, caí de pronto destes pensamentos idílicos e passei a ter uma imaginação mais comedida, parecendo que eu havia escorregado do meu prumo, que havia me excedido um pouco no deslumbramento do desconhecido. 

Então lembrei que o tempo para o lado de cá não é exatamente um amor sem fim, porque a região não tem esta personalidade sonhadora uma vez que anda sempre em arrufos com o vento, com a chuva, com raios e trovões e, claro, com dias calmos e praianos. Dei meia volta, mas pensei: quem sabe um dia.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Doação de sangue


Ele é vermelho para todo o mundo, mas existem algumas metáforas alcunhando nosso tecido mor como algumas castas que o diriam de cor azul e também para a gauchada que ao torcer pelo time preferido diz que o seu sangue é da cor de sua bandeira. Alegoria um pouco exagerada uma vez que se for necessário doar um pouco desta seiva, a cor premente vai aparecer.
Um corpo completo mantém as canaletas em constante renovação em circuito fechado, bombeando em todos os sentidos, deslizando nas partes mais longas da carcaça ou fazendo evolução nas tantas curvas, driblando toda a sorte de obstáculos fazendo-se passar com altivez a sua trinca que limpa e se previne contra seus malfeitores que às vezes se infiltram no físico.
Temos tantos canais navegáveis deste liquido precioso e oculto aos olhos no dia a dia que parece não nos darmos conta da sua importância ou da falta que ele faz fora de nossas veias, o quanto podemos socorrer a quem dele precisa um pouco, quem, por alguma desfaçatez do destino, se partiu em cacos abrindo uma brecha para que o desvio do precioso escarlate desague em alguma calçada, no meio da rua, ou em lençóis de pronto socorro.
Por estar muito bem protegido dentro de nós mesmos custamos a crer que se abrirmos mão de alguns mililitros nada afetará o funcionamento da máquina azeitada que estamos usufruindo por ora. Nossa região, rica em canais marítimos, riachos, vertentes, lagos e rios que se conectam entre si, a céu aberto ou por debaixo da terra, e que resulta em terrenos e várzeas férteis, nos dá o exemplo de como nossa vizinhança pode ter a saúde imunizada. Basta esticar nosso braço saudável para que um pouco de nós jorre pelo outro.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...