quarta-feira, 27 de setembro de 2017

Mudança


Acho que fiquei assim com a mão estendida, não por acaso, porque sempre que a possibilidade de algo que me agrada aparece, lá estou eu na primeira fila, esquecendo as tantas ocasiões em que me defrontei com uma expectativa com perna de anão. Sempre esqueço esta parte porque além das minhas mãos, o meu olhar anda sempre por aí, errante, e então é óbvio que tropeço no inverossímil, no causo perdido que só vê quem não quer, no olhar ladino que para mim parece apenas uma falta de vergonha passageira, uma dose de humor negro, uma assertiva que desprezo por não ter consistência para mim naquele momento ou por constrangimento de responder a uma audácia.
E foi com este caminho mal andado que fui passando a mão por cima dos detalhes minúsculos que sobreviviam no dia a dia e passavam por mim como pequenos meteoros, que tão rápidos e brilhantes iludiam completamente, como se fosse uma cauda solar que ofuscasse e assim se instalava a perigosa expectativa de enxergar mudanças importantes, antes mesmo que elas viessem a bailar comigo.
Como alçar voo ao desconhecido com tanta distração pela frente, com um entorno desigual, que promete muito, mas não entrega e seu alcance surge contaminado, ladrilhado de promessas insuspeitas. Aparentemente tudo escorre pelas mãos que, sedentas na construção do novo, se enganam redondamente na avaliação e com este destino montado, a decepção vem se enganchar e é neste momento que a tentativa de separar o joio do trigo acontece usando, mesmo que tardiamente, o critério de pé atrás com os personagens.
Parece que os talentos para perceber a armadilha deixada na passagem não são de fácil compreensão e o modo de seguir em frente, sem ter as mãos solapadas vai ficando bem difícil, até que um dia, do nada, a mente clareia, os olhos se arregalam e os sentimentos começam a ter menos drama e mais verdade. Para acompanhar o ritmo, as atitudes se abrem mais ainda com a certeza de que vai colher o certo, não vai apontar para o suspeito, não vai buscar a amizade onde não existe, não vai acenar para quem não corresponde. Neste dia as mãos espalmadas se colocarão no ar com a simplicidade de quem agradece. 

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

20 de setembro


O orgulho de ser gaúcho possui características tão fortes e arraigadas, aliás, como tudo o que se refere aos hábitos da gauchada que nasce tão tradicionalista que já sai falando alto e não precisa de muito para iniciar acalorados debates quando o assunto vem metido em dois lados, parecendo que não existe tempo ameno nas opiniões, sempre é o extremo.
O espirito cívico se exacerba quando se impõe datas comemorativas sobre a história do estado e junto a esse caudal de eventos, tudo acaba se misturando e entra no jogo todas as paixões deste povo que pisa com dureza, que defende tudo com extremismo, que não reza para todos os santos, mas apenas para o seu. Claro, aquele que é de preferência e deste jeito as ideias vão se acumulando e se espalhando entre todos sempre com aquele tom de disputa vitoriosa.
São muitos os modos de firmar o amor pelo território do sul começando pela Cavalgada do Mar organizada todos os anos por piquetes de toda a parte desfilando pela extensão da nossa costa alargada sem percalços, passando por inúmeras praias, desde as mais famosas até pequenos povoados. As famílias vão se acomodando reverentemente na beira do mar para vê-los passar, engalanados, vestidos como manda o figurino dos pampas, com seus cavalos bem cuidados e selas impecáveis desfilando com empáfia suas lutas.
Onde há um CTG pode contar certo com uma programação intensa da preferência deste povo que segue ardorosamente as características de orgulho e luta pela história. Faz parte das celebrações o cardápio que, tal como o brio do povo, nada possui de mais ou menos, sendo tudo elevado ao quadrado dos excessos desfilando em todas as casas a carne gorda, arroz de carreteiro, espinhaço de ovelha, roupa velha, mandioca, pinhão, tudo muito bem aproveitado para que as pessoas se regalem em suas festas comemorativas.
Para os lados onde o mar encontra a mata seguem alvorotados todos os segmentos para que não escape de jeito nenhum a comemoração tradicionalista que tem na rotina diária do gaúcho uma ponta de tudo o que esta gente incorpora como sendo sua alma, a começar pelo chimarrão, hábito que transmite sempre o sentido de se cercar de muitos, de coçar o fio do bigode, de prosear, de alargar a roda e fazer com que solte-se o verbo por onde passa o tal do mate amargo.

domingo, 17 de setembro de 2017

Silencio


Apurei meus sentidos porque no ar havia tanto silencio que imaginei estar, sabe-se lá, em outro plano, mesmo que meu corpo se fizesse presente, mas, claro, não completamente. De certo modo eu planava no mutismo regulamentar da rotina que agora demanda muitos olhares ao entorno, dissecando o que envolve o corpo físico com tanto esmero. Afinal, em terras regadas pelo oceano, a existência é tão mutante quanto, rebelde quanto, instável quanto e dependente o máximo do clima. Tudo sempre envolve o sol, o vento e o mar e desta feita transformei-me numa criatura que tem a cabeça tão envolvida com o oceano que me fica difícil pensar em outros termos.
A comparação neste dia foi irrepreensível já que meus ouvidos ainda repercutiam os ruídos da cidade grande, meu nariz estava em apuros por conta do ar rarefeito, meus cabelos demonstravam certa rebeldia e secura que acontece nos grandes centros, minhas pernas doíam por tantas ladeiras acima galgadas, meu olhar ainda refletia o caos urbano e foi com este feitio que me achei em meio ao silêncio obsequioso desta natureza que não consigo mais parar de falar.
A cada volta percebo que o meu ouvido ficou tão afinado que vai embalando os sons de um modo peculiar, quase viciado em filtrar o que desejo ouvir para que assim se restabeleça no meu íntimo o silêncio reparador que necessito para ter a mim mesma de volta, para poder celebrar todas as canções, para poder abrir os olhos e enxergar o mutismo por vezes melancólico da natureza que se reverencia a si mesma sempre que melhor lhe aprouver. 

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Banalidades


Essa daí me acompanha dentro da minha cabeça, desde os quinze anos, porque mesmo que eu não me tenha utilizado de sua serventia como hoje o faço, ela certamente surgiu em minha vida para que agora, no ir dos anos, se defronte a mim com certa nostalgia, mas muito mais como um desafio, tenho certeza. Não tem a menor importância que esta máquina da foto seja apenas uma ilustração saudosa, anterior a mim, que possua um design requintado, uma erudição que faz baixar a cabeça, que o seu som reverbere como musica amada e antiga, que demonstre sua linguagem cadenciada que fatalmente obedece aos trancos do coração e alimente as melhores fantasias em paredes mais antigas e talvez ancestrais.
Pasmem, com ela se escrevia e se imprimia ao mesmo tempo, um perigo para quem tem a cabeça cheia de caraminholas e urge coloca-las no ar. Um mínimo pensamento e lá estão elas materializadas como se as ideias estivessem predestinadas a se tornar realidade desde o seu berço. Não há deletar no seu menu principal e penso que, antigamente, servia para pensar melhor antes de cravar uma frase, olhar para o horizonte, inspirar qualquer ar, relutar frente alguma preciosidade e então medir o que o nosso pensamento estaria a abordar, o que de tão urgente fazem os dedos martelarem em teclas perfeitas.
Parecia, naqueles tempos, que o desperdício de papel iria denunciar nossa incompetência, nossa incapacidade de conjugar todos os verbos com perfeição, que seria impossível lacrar os sentimentos mais ditosos que pudéssemos ter e mais do que tudo, dar vida ao que nos vai por dentro. Escuro ou claro.
As máquinas evoluíram de tal forma que escrever, corrigir, mudar de ideia, apagar, ir e voltar se tornou de tal forma banal e efêmero que modernas telas recebem qualquer bobagem, qualquer mal escrito, qualquer infâmia, qualquer opinião sem que os autores tenham um mínimo de visão critica de si e do entorno.


quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Primavera


Levantei o nariz porque havia algo no ar diferente e apesar de estar gelada naquela manhã não quis me abrigar porque algo me dizia que bem pertinho alguns milagres estavam acontecendo e eu os perdi, quando a noite entrou com seu manto negro, abafando de proposito qualquer imagem que se possa pensar em ver nas noites escuras, sem a lua brilhando sobre as nossas cabeças. Pareceu-me que havia uma ciumeira da noite com o dia, quiçá com a lua, porque eu penso que ela intuía que de agora em diante iria começar a perder terreno para a luz, o sol e, claro, o mar, o Deus do Praieiro.
Resolvi abrir as janelas mesmo ainda com muito frio, provavelmente porque a natureza me queria assim, despreparada, de pijamas e sonolenta neste dia de horário desigual. O clima e eu temos uma relação tão próxima que ele não dá um passo sem vir ao meu ouvido segredar seus arroubos, suas dúvidas e suas tristezas quando os ventos e as marés tomam de assalto o seu destino.
Assim eu o ouvi segredar-me, através da brisa, que os perfumes estavam mutantes, que as areias que se confundem com o quebra mar estavam recolhidas nesta época porque haveria de pronto outros sujeitos que viriam lhe tomar o lugar. Assim, decididamente, a maresia se recolhia para um descanso protocolar, uma reação atávica que a natureza lhe ditava uma vez que outros personagens se tornariam donos das frases de encanto nos amanheceres litorâneos, no fungar dos pescadores, no espasmo dos amantes do mar.
Estes protagonistas aparecem sempre que os dias iniciam suas luzes mais cedo, quando de fato o sol arrebenta o azul celeste e sai faiscando o seu reinado deixando para trás longas noites de frio. Em seu lugar, a brisa arrefece o amanhecer, acalma as ondas, nega enfunar velas que afoitas querem se atirar ao largo e vão lavrando com muita sabedoria todo o perfume das flores que ameaçam renascer de suas cinzas invernais, dos gramados que tremem ansiosos para deixar os inços soterrados e todos os galhos que por algum tempo foram impedidos de seguir seu curso. É deste jeito que a Primavera se anuncia, prometendo fragrâncias e novas seivas que terão como missão fazer brotar a sua índole em todos os corações que lhe são escravos.

sábado, 2 de setembro de 2017

Mudando


Escolhi este lugar porque o meu desejo é estar de agora em diante em um espaço que possa abrigar tudo o que eu sou, de bom e de ruim, de lindo e de feio, de verdadeiro e falso, de quando eu nem existia até os dias de hoje, o que, convenhamos, é uma aventura de certo modo assustadora, porém, eu acredito em tempos ulteriores em que andei por aí sendo outra.
Então, vejamos: o lugar pode ser pequeno, igual a minha cabeça que se assemelha à da minha mãe e não sei se é bom ou ruim, mas enfim a genética está ai para fazer de nós retratos bem ou mal feitos dos antepassados. Começo bem minha proposta do novo lugar para sempre, em que pretendo aninhar todas as minhas idades em ordem cronológica impecável, desde quando eu portava longos cachos dourados que minha mãe enrolava com orgulho até agora quando estes, que ainda enredados, recebem, não os maternais dedos em volúpia de orgulho pela cria, mas os cremes de ultima geração que agora, em segundos, envolvem a cabeleira já grisalhando.
Mas parece que isso é apenas um bom começo, porque muitas outras estórias estão guardadas e que me vêm à lembrança de maneira muito sintomática, conforme meu estado de espirito que vacila com o clima. Uma residência com o mar pela frente modifica o humor de qualquer um e assim se parte para uma integração com as marés, as luas, os ventos e as ressacas. O vivido vai mudando de tom à medida que o olhar se afunda em conluio com a natureza estrondosa e o som incessante do oceano gerando no ar uma dúvida.
E assim, como quem não quer nada, as minhas experiências vão formando uma fila desafiadora à minha frente como se fossem personagens de uma peça de teatro antigo, onde o figurino, a maquiagem, a fala, a interlocução, o cenário e o enredo se tornam um acontecimento primoroso e, mesmo que eu me defenda do que vai acontecer acabo por permitir que todas estas delicadas lembranças se enfunem pelo ponto de evasão da casa.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...