quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Primavera


Levantei o nariz porque havia algo no ar diferente e apesar de estar gelada naquela manhã não quis me abrigar porque algo me dizia que bem pertinho alguns milagres estavam acontecendo e eu os perdi, quando a noite entrou com seu manto negro, abafando de proposito qualquer imagem que se possa pensar em ver nas noites escuras, sem a lua brilhando sobre as nossas cabeças. Pareceu-me que havia uma ciumeira da noite com o dia, quiçá com a lua, porque eu penso que ela intuía que de agora em diante iria começar a perder terreno para a luz, o sol e, claro, o mar, o Deus do Praieiro.
Resolvi abrir as janelas mesmo ainda com muito frio, provavelmente porque a natureza me queria assim, despreparada, de pijamas e sonolenta neste dia de horário desigual. O clima e eu temos uma relação tão próxima que ele não dá um passo sem vir ao meu ouvido segredar seus arroubos, suas dúvidas e suas tristezas quando os ventos e as marés tomam de assalto o seu destino.
Assim eu o ouvi segredar-me, através da brisa, que os perfumes estavam mutantes, que as areias que se confundem com o quebra mar estavam recolhidas nesta época porque haveria de pronto outros sujeitos que viriam lhe tomar o lugar. Assim, decididamente, a maresia se recolhia para um descanso protocolar, uma reação atávica que a natureza lhe ditava uma vez que outros personagens se tornariam donos das frases de encanto nos amanheceres litorâneos, no fungar dos pescadores, no espasmo dos amantes do mar.
Estes protagonistas aparecem sempre que os dias iniciam suas luzes mais cedo, quando de fato o sol arrebenta o azul celeste e sai faiscando o seu reinado deixando para trás longas noites de frio. Em seu lugar, a brisa arrefece o amanhecer, acalma as ondas, nega enfunar velas que afoitas querem se atirar ao largo e vão lavrando com muita sabedoria todo o perfume das flores que ameaçam renascer de suas cinzas invernais, dos gramados que tremem ansiosos para deixar os inços soterrados e todos os galhos que por algum tempo foram impedidos de seguir seu curso. É deste jeito que a Primavera se anuncia, prometendo fragrâncias e novas seivas que terão como missão fazer brotar a sua índole em todos os corações que lhe são escravos.

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