sábado, 27 de setembro de 2014

Distância


Mais por costume do que por vontade própria a distância faz esquecer um pouco de tudo ou de tudo um pouco, não havendo mais nenhuma sanha, não lembrando fosse o que fosse se espichando o despudor em deslembrar. Fica para trás o tormento insistente da mente descontrolada, da emoção que finca pé e a todo o momento vem ofertar a imprecisão e o descaso.

O vazio se instala soberano e não aparece nem em sonhos os desejos antagônicos, os suspiros profundos, os olhares apaixonados e muito menos os seus sujeitos. E assim vai seguindo de cabeça feita e do avesso buscando novos feitos para contrapor o deletado, preenchendo o que ficou em branco pesquisando no entorno novas histórias, reescrevendo o passado.

As cartas na mesa estão sem naipe e não significam nenhum traçado futurístico, não anunciam o novo amor aguardado, não mostram o caminho das pedras nem apontam para o tesouro perdido.

As duas pontas se afastam tanto que parece impossível reatar ou reaver qualquer coisa e então, desta feita, acontece o encurtamento das distâncias destituídas do seu maior poder: o esquecimento. Os segredos guardados aparecem com lucidez e nova serventia, se revelando aos poucos fazendo todo o sentido. Com este pano de fundo serpenteado de surpresas a orquestra ensaiada se refaz com seus instrumentos no lustro e afinados na proposta de manter em alta o tempo perdido.

No atraso da vida perdem-se detalhes, escondem-se minúcias, esquecem-se situações ou jogam-se fora impulsivamente tantas histórias que agora precisam ser recontadas e trazidas à tona com o olhar do novo.


E assim foram restauradas todas as falas, os olhares se cruzaram tantas e tantas vezes que se acostumaram rapidamente com a linguagem muda do dito não dito, todos os sorrisos se arrevesaram em gargalhadas preenchendo os instantes com muita sonoridade e assim a rota foi retomada, desta vez com ares de para sempre.

domingo, 14 de setembro de 2014

Ofensas



Não presto atenção em tudo e por isso mesmo vive caindo no meu colo o que não pressuponho que aconteça. Então num desses desvarios de pensar, de ler e de escrever enxerguei nitidamente o quanto pode ser curiosa à falta de tato e por que não dizer – de educação – do anônimo. E falo em desconhecido para mim, não que a pessoa se esconda. Em tempos reais e de conexão vale tudo, larga-se palavras e ofensas ao vento como se elas não fossem chegar ao destinatário.

Os arautos que sineteiam nos caminhos ainda tortuosos da comunicação moderna infestam nosso cotidiano agridem nossas origens, nossa família e nosso passado, como se deles fossem. Não existe trava na língua, amor à ponderação, respeito ao próximo. Tudo vai na lata.

Penso no direito de julgar ao próximo sem que ao menos lhe seja permitido ter um encontro com olho no olho para poder sentir a frieza ou o acaloramento da discussão ou das falas em uma simples conversa.

Os diálogos ingênuos deram lugar a grandes discussões de grupos que reunidos estão virtualmente muitas vezes falando sozinho, contando de si para si, se arvorando como o dono da verdade desrespeitando a opinião pública, conforme o caso. Chegou a hora dos sem dono, do desserviço de jogar todas as ideias em solos desconhecidos sem se preocupar se o pátio fica grudado ao seu. Caia onde caia a ofensa grassa.

A relevância e a verdade estão descartadas uma vez que neste momento, a opinião individualizada se tornou tão passional que a razão nem mesmo importa. Importa vomitar a ofensa, agredir quem não se conhece, tornar público o ditado sem fundamento ou razão de ser.

Levantar hipóteses não faz mais sentido nestas horas de tantas veredas enredadas, tantas ideias plantadas, tantos pensamentos cruzados. Bom saber, entretanto, que o que está selado, está feito.

domingo, 7 de setembro de 2014

Virtual



Antigamente vivíamos entre portas e janelas muito bem cuidadas, os moradores se esmeravam na pintura da entrada, instalavam campainhas que tinham a tarefa de avisar o residente que havia um visitante e assim também proporcionavam a ele momentos de deleite ou de emoção ao levantar a mão para tocar um sino, um din-don, uma imitação de cigarra – para os mais surdos – ou uma pesada argola lembrando os tempos mais antigos, na verdade, quando não existiam tais engenhocas.

O umbral da residência recebia muita atenção e importância porque muitas vezes um de seus vasos de flores era o escolhido para “esconder” a chave da casa porque não havia perigo algum em deixá-la ali para que seus usuários em seu vai e volta o fizessem com naturalidade. O capacho fazia parte do acordo de facilidade para entrar e sempre era um personagem de destaque no alpendre e uma opção libertária de esconderijo.

As janelas eram muito privilegiadas, porque mostravam o externo para quem estava dentro, com incumbência de trazer as imagens do que acontecia na rua, no jardim, no trânsito em frente à casa, no céu, nas nuvens e no ar. Eram elas que davam o recado todo dia e serviam com fidelidade absoluta. Através delas os humores vespertinos se alteravam porque a programação poderia mudar conforme fosse a noticia que entrava através destes grandes olhos. Cortinas eram instaladas, algumas para vetar a luz do sol que em determinados dias não era bem vindo ou simplesmente para fazer uma bruma entre a realidade e o sonho, se por acaso ali vivessem poetas, escritores, artistas ou apenas pessoas mais sensíveis. Como uma moldura da vida, as floreiras davam o acabamento perfeito a estas janelas que em seu parapeito recebiam cotovelos curiosos perscrutando a rua, sorrisos com a chegada de parentes e vez ou outra muito choro por quem dali se afastava para sempre.

Impossível não pensar em nossas atuais portas que perderam sentido e encanto, uma vez que a virtualidade das relações extinguiu as campainhas que perderam seu propósito. Ninguém mais se anuncia e todos entram sem permissão em todos os lares através do mundo virtual e assim as aberturas, além de não terem trancas não encarnam o romantismo de uma visita inesperada, do amor retornando, da vizinha trazendo uma prenda ou da chegada surpreendente de um filho que se foi há tempos.


As janelas de hoje são as que mais sofrem, porque restam fechadas com black-out para que a luminosidade não atrapalhe a interatividade desenfreada compartilhada entre tantos aparelhos de alta definição. As flores, ora, flores murcham por falta de atenção e o capacho se desfia sozinho.

sábado, 6 de setembro de 2014

Mentira


De tempos em tempos sou envolvida pela mentira, engraçado, porque se tem uma coisa que não faço é mentir. E não é por gosto não, não minto porque tenho medo, porque se antevejo deixar alguém na mão dando uma desculpa inexistente tenho a certeza que serei descoberta e fico paranoica em relação à criatura e ao fato, e então desisto. Melhor pagar o mico de não estar a fim de qualquer coisa sugerida, do que falsear as intenções que vem a você com o mote de fazer parte do mundo aludido do outro.  Como carregar a falsidade será o tema da sua vida se cair nesta armadilha.

Percebo que em muitos casos a mentira faz parte do dia a dia, ela existe e está ali na agenda diária de compromissos, tipo, uma reunião desajustada, uma mentira, um passeio previsto esquecido, outra mentira, um encontro desmarcado, mais uma mentira. A sequência se torna uma teia que enreda o real da vida e a falta de coragem de ser autentico. Seria bom tomar uma chuveirada de lealdade todas as manhãs e distribuir como se fosse o pão da vida, os acontecimentos que tem fundamento, que chegam recheados de argumentos interessantes mesmo que as noticias ruins grasse, o idílio previsto não aconteça, o amor não tenha mais conserto, o negócio esteja falido e o interesse tomou Doril. Todos estes temas pedem sensibilidade que somente a clareza de atitudes pode prover.

Quando sou desafiada a dar uma espiada na vida lá fora e sem querer tomo o caminho errado, a mentira me pega no contrapé e compreendo que a calúnia vai se apresentar no momento em que está sendo gestada, parecendo um sino tocando no fundo, mas bem no fundo da minha cabeça. Talvez eu a reconheça a partir do convite que veio em tom de voz e se a empreitada desonesta vem por escrito faz a minha intimidade com as letras esquadrinhar a cadência inequívoca da desculpa que vai me atingir a seguir.

Sempre fico surpresa ao perceber que saltar fora dos trilhos sem querer traz uma nova forma de ver e entender as pessoas que coexistem entre tantos personagens criados particularmente e cada um com esmero invejável.

Prefiro pensar que são eles – os mentirosos - que dão brilho à caminhada, oxigenam o coração por conta do susto e da surpresa, trazem mais cuidado ao se avistar com todos e definitivamente trazem uma alegria enorme na aferição da nossa intuição.

quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O anônimo


O dia estava luminoso e a expectativa brilhava assim como tem de ser quando se está prestes a lançar a alma ao vento, ela, sempre partida em mil pedaços, mas rearranjadas em um único volume, seguida de página em página e finalmente as letras, ora brincalhonas, ora mordazes que iam dando vida aos pensamentos sempre desconcertantes. Este todo complicado resultou na escancara do de tudo um pouco.

Ela já estava sentada aonde deveria entregar e assinar sua vida contada na metáfora, mostrar a trajetória infame de querer alinhar sempre o imponderável, a mania de estar sempre se repetindo, a impulsividade de escrever sobre o que vê, o que sente e o que imagina, conquistando desta maneira inimigos e fãs. Alguns, tão sinistros, ao se identificarem com algum dos textos cortaram as relações para sempre com a autora sobre o argumento de que a mesma roubava suas vidas. Vai saber.

A pilha de livros ficava à sua esquerda e projetavam sombras muito determinadas que se refletiam por debaixo da mesa, mais precisamente em seus pés. Achou que parecia um mau agouro voltar-se para baixo, mas pensou também que esta não era a hora de ficar elucubrando estórias, era chegada a hora de se entregar aos outros, sem pressa.

A mesa ao lado replicava os tons e sobretons nas taças de cristal que receberiam o espumante com a incumbência de deixar o ambiente no enlevo do sussurro aconchegante e ao mesmo tempo gerar um alarido sem muito sentido, um diz que diz sem nexo com sorrisos destemperados e cumprimentos entre tantos demonstrando um convescote sem noção.

Ela não tirava os olhos do fundo do corredor e mesmo parecendo um presságio suas mãos acariciavam a mesa lustrada, mas sua alma sangrava aterrorizada e em alguns momentos pensava que talvez fosse melhor fugir, tocar fogo em tudo e destruir todos os seus pensamentos que resolveram ter vida própria e se assentar no papel.


Era esta a situação quando se posicionou ao seu lado um anônimo ilustre, gomalina na cabeleira, elegante, bem vestido, bonito, óculos escuros, gabardine preta clássica que lhe estendeu a mão com um sorriso cínico profetizando: acorde.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...