domingo, 7 de setembro de 2014

Virtual



Antigamente vivíamos entre portas e janelas muito bem cuidadas, os moradores se esmeravam na pintura da entrada, instalavam campainhas que tinham a tarefa de avisar o residente que havia um visitante e assim também proporcionavam a ele momentos de deleite ou de emoção ao levantar a mão para tocar um sino, um din-don, uma imitação de cigarra – para os mais surdos – ou uma pesada argola lembrando os tempos mais antigos, na verdade, quando não existiam tais engenhocas.

O umbral da residência recebia muita atenção e importância porque muitas vezes um de seus vasos de flores era o escolhido para “esconder” a chave da casa porque não havia perigo algum em deixá-la ali para que seus usuários em seu vai e volta o fizessem com naturalidade. O capacho fazia parte do acordo de facilidade para entrar e sempre era um personagem de destaque no alpendre e uma opção libertária de esconderijo.

As janelas eram muito privilegiadas, porque mostravam o externo para quem estava dentro, com incumbência de trazer as imagens do que acontecia na rua, no jardim, no trânsito em frente à casa, no céu, nas nuvens e no ar. Eram elas que davam o recado todo dia e serviam com fidelidade absoluta. Através delas os humores vespertinos se alteravam porque a programação poderia mudar conforme fosse a noticia que entrava através destes grandes olhos. Cortinas eram instaladas, algumas para vetar a luz do sol que em determinados dias não era bem vindo ou simplesmente para fazer uma bruma entre a realidade e o sonho, se por acaso ali vivessem poetas, escritores, artistas ou apenas pessoas mais sensíveis. Como uma moldura da vida, as floreiras davam o acabamento perfeito a estas janelas que em seu parapeito recebiam cotovelos curiosos perscrutando a rua, sorrisos com a chegada de parentes e vez ou outra muito choro por quem dali se afastava para sempre.

Impossível não pensar em nossas atuais portas que perderam sentido e encanto, uma vez que a virtualidade das relações extinguiu as campainhas que perderam seu propósito. Ninguém mais se anuncia e todos entram sem permissão em todos os lares através do mundo virtual e assim as aberturas, além de não terem trancas não encarnam o romantismo de uma visita inesperada, do amor retornando, da vizinha trazendo uma prenda ou da chegada surpreendente de um filho que se foi há tempos.


As janelas de hoje são as que mais sofrem, porque restam fechadas com black-out para que a luminosidade não atrapalhe a interatividade desenfreada compartilhada entre tantos aparelhos de alta definição. As flores, ora, flores murcham por falta de atenção e o capacho se desfia sozinho.

Um comentário:

Anônimo disse...

Oi, Vera, penso que entendi bem o escreveste sobre portas e janelas. Vim de um pequeno "paese" há pouco tempo e pude ver todos esses cuidados ainda hoje, foi estar no paraíso. E também muitas flores, até em Veneza. E eu pensava que era cuidado só dos alemães.
Sobre os dias de hoje, concordo contigo.
Beijos.
Maria Rosa

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