quinta-feira, 4 de setembro de 2014

O anônimo


O dia estava luminoso e a expectativa brilhava assim como tem de ser quando se está prestes a lançar a alma ao vento, ela, sempre partida em mil pedaços, mas rearranjadas em um único volume, seguida de página em página e finalmente as letras, ora brincalhonas, ora mordazes que iam dando vida aos pensamentos sempre desconcertantes. Este todo complicado resultou na escancara do de tudo um pouco.

Ela já estava sentada aonde deveria entregar e assinar sua vida contada na metáfora, mostrar a trajetória infame de querer alinhar sempre o imponderável, a mania de estar sempre se repetindo, a impulsividade de escrever sobre o que vê, o que sente e o que imagina, conquistando desta maneira inimigos e fãs. Alguns, tão sinistros, ao se identificarem com algum dos textos cortaram as relações para sempre com a autora sobre o argumento de que a mesma roubava suas vidas. Vai saber.

A pilha de livros ficava à sua esquerda e projetavam sombras muito determinadas que se refletiam por debaixo da mesa, mais precisamente em seus pés. Achou que parecia um mau agouro voltar-se para baixo, mas pensou também que esta não era a hora de ficar elucubrando estórias, era chegada a hora de se entregar aos outros, sem pressa.

A mesa ao lado replicava os tons e sobretons nas taças de cristal que receberiam o espumante com a incumbência de deixar o ambiente no enlevo do sussurro aconchegante e ao mesmo tempo gerar um alarido sem muito sentido, um diz que diz sem nexo com sorrisos destemperados e cumprimentos entre tantos demonstrando um convescote sem noção.

Ela não tirava os olhos do fundo do corredor e mesmo parecendo um presságio suas mãos acariciavam a mesa lustrada, mas sua alma sangrava aterrorizada e em alguns momentos pensava que talvez fosse melhor fugir, tocar fogo em tudo e destruir todos os seus pensamentos que resolveram ter vida própria e se assentar no papel.


Era esta a situação quando se posicionou ao seu lado um anônimo ilustre, gomalina na cabeleira, elegante, bem vestido, bonito, óculos escuros, gabardine preta clássica que lhe estendeu a mão com um sorriso cínico profetizando: acorde.

2 comentários:

Nelson disse...

Mais uma belíssima produção literária, com gran finale! Parabéns!

Nelson disse...

Mais uma bela produção literária com gran finale! Parabéns!

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