domingo, 30 de maio de 2021

A palavra


 Varrer o território com o palavreado de todas as sangas distribuindo o alfabeto em linhas corridas e que, conforme a verborragia, vai se desencontrando na forma, conteúdo e alcance de entendimento, porém é justamente esta a graça de quem se assanha com as palavras que podem ser medidas de vez em quando em relação à chuvas torrenciais que lavram a terra levando consigo tudo o que encontra. No caso da escrita, da mesma forma se vão jogando para cima tudo o que vem à cabeça e vai ficando pelo caminho o dito pelo não dito e mal dito provem a ofensa sussurrada e a agonia surda deixando bocas entreabertas de supresa frente ao que se lê ou que se ouve. 

O sanatório geral do vocábulo segue seu caminho de cabelo em pé porque do nada a compreensão que já estava combinada se esvai como pó de arroz pulverizando o raciocínio lógico, deixando para trás a esperança de fazer as pazes com o inimigo, de pousar os olhos em algum bilhete de amor molhado de lágrimas, percorrer com pressa um caminho para sentar e ler algo relevante. 

A letra corrida vai enganchando dia após dia todas as tristezas que lhe atravessam o caminho e como ela não tem preconceito vai determinando os parágrafos ao sabor do que lhe assopra os ventos do dia e deste jeito, no embalo do mar e na correria das areias, vai inventando o que lhe aprouver de modo a não perceber a cegueira entre virgulas que surge sempre latente e com despropósito. A caçada das letras – muitas dela sem combinação – se inicia assim que floresce o pensamento da ordem do dia que, de prontidão, inicia a ciranda de guerra e paz, de pedido de desculpas, de perdão e de vamos combinar que ora em diante.

domingo, 23 de maio de 2021

Aquelas mulheres

 

Surgiram do nada ou de tudo uma vez que através dos cabos invisíveis do ar e da terra tudo pode e por este modo etéreo surgiram aquelas personalidades em um encontro improvável, fosse o mundo bem menor, mais restrito e mais tímido. Não foi assim por ali quando as criaturas acamparam uma perto da outra no sitio pequeno que une através das barras da parafernália muitas personas. Sem muitas delongas e audaciosas se atiraram ao jogo da conversa. 

Tomaram assento sem pudor e através dos ventos de revés e a favor foram deitando seus sorrisos sem pensar muito para quem eram dirigidos, parecia ali que o importante era partilhar uma alegria, em primeiro lugar, para depois pé ante pé, se espalharem minuciosamente e talvez sem muito cuidado, opiniões de todo calibre assim como, devagarinho, foram libertos alguns segredos pequenos, outros maiores, e outro sem o menor pudor foram colocados no balcão do encontro um dia e outro também. 

Assim se foram elas aumentando o volume da ligação do bate papo de tal modo que, a partir de determinado ponto, alguns temas considerados espinhosos para jogar no canteiro virtual era segredado para apenas uma delas, mas, como uma condição sine qua non o caso escapava para os ouvidos parceiros, pois, afinal, pareceria uma traição segredar em privilégio e por este motivo, a nota se espalhava entre as outras com alegria curiosa de criança e deste jeito estava urdida a trama do assunto, fosse qual fosse. Mas, por certo sempre havia serventia porque estas mentes lúcidas, alegres e futuristas não vão pregar prego sem estopa e muito menos jogar palavras ao vento. A série virtual formada por estas pessoas distantes entre si geograficamente e com vidas mais recentes e outras mais antigas tem como elo e fio condutor inabalável, as Ideias.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Varal

A vida gosta de ficar suspensa no varal, muitas vezes do avesso, de cabeça para baixo, de lado, pelas pontas, pelo meio e assim as vestes do mundo se expõe dependuradas, todo dia, nas cordas de todos os lugares para tomar um ar, pedir ao sol que jogue seus reflexos que dançam conforme o vento criando um movimento dinâmico e colorido em que os trapos ganham independência e, de certo modo, estão livres de corpos suarentos, gordurosos, esqueléticos, mal cheirosos, perfumados perfeitos e imperfeitos. 

Tremulam ao vento camisas que, dependuradas, não tem razão de existir porque lhe falta o sujeito que a enverga e, por este mesmo motivo, a vestimenta liberta do seu dono balança ao sabor da estação, muitas vezes, demorando a secar, talvez para não voltar ao corpo que cobre e circular por entre muitos e pelos quais não nutre simpatia. Melhor andar dependurado ao frio e ao calor causticante do que seguir caminhos transversos parecendo ter um desejo secreto de se tornar roto mais rapidamente e sair daquela prisão corpórea e de destino indesejado. 

No mais, enfileirados com criteriosa organização, em muitos casos, seguem juntos molhados e com variante de cor e textura calças, casacos, fraldas, lençóis, toalhas e mais o que se tem em uso na residência podendo haver sujeira de uma vida no campo contendo terra, folhas, espinhos e flores secas  que se grudam ao tecido para se aventurar por ai, fora do solo, conferindo o que rola por outras terras. 

Pode haver também a sujeira da cidade e do asfalto, a fuligem das chaminés, a poeira das calçadas, o respingo das sarjetas na vestimenta dos executivos impecáveis e urbanos que transitam pelo caos das cidades, deixando suas roupas com mais manchas que alguém possa ter a capacidade de tirar. Deste modo interessante as cidades deixam as marcas nas roupas que nenhum varal poderá limpar.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

No pau a pique

  

No pau a pique o Sol teima em transbordar-se por entre destroços, mas, valente como sempre, o Rei de todas as horas e para todos com vida ou sem ela - uma vez que sua performance também atinge quem já se foi desta para melhor ou sequer chegou a colocar os pés por aqui neste Vale de Lágrimas - se valendo da sua natureza em nascer todos os dias com pequenas variações na aparição, dependendo do humor da maresia, das nuvens que perambulam vagabundas pelo céu, pela neblina que embaça a tudo fazendo uma brincadeira de esconde-esconde com viventes de todos os quadrantes. 

Seus raios se colocam de plantão na brincadeira de iluminar ou sombrear este equipamento praiano que vive á beira do mar e com ele - e por ele - sofre as fustigações do tempo e da barbárie, esta, obviamente não pertence à majestosa casta da natureza que apenas defende sua vida espaçosa, pois gosta da liberdade e da independência que lhe foi conferida por Deus, unicamente. 

Os feixes de luz avançam por sobre a madeira que de um lado surge carcomida pelo sal de sua vida a beira do mar e, por outro, alguns de seus destroços que foram vandalizados pelo poder do fogo deixa a carcaça calcinada com seus suportes aparentes e sem o domínio da construção, com o perigo ditando seu destino e prevendo que a valente Guarita perde sua força e se esburaca vivamente frente aos olhos de todos. Ela, justo ela, que com um desenho tosco serve de pouso do Salva Vidas que por ali se aquerencia no verão das multidões e mira seu olhar agudo por além das ondas da arrebentação seguindo em braçadas fortes na busca de quem não tem noção de perigo e desafia a natureza. Deve ser estes mesmos incautos que portaram a caixa de fósforos para acender uma insolência na Guarita cuidadora que ora rescende a madeira queimada se misturando tristemente ao ar marítimo.

quinta-feira, 13 de maio de 2021

Beijos, Lili

Entre patas de cachorro, pisadas humanas, areias corridas de vento e marcas de sabe-se lá o que ou de quem, encontrei este cartão de amor jogado ao léu provavelmente pelo signatário da missiva que em linhas tortas e mal feitas e uma linguagem mais errática ainda, expressou o seu amor. Mais adiante encontrei o envelope com a assinatura da remetente; “Beijos Lili”. Fiquei pensando em como esta missiva amorosa e de data bem anterior ao dia do achado veio parar ali. Sabe-se que a beira da praia no tempo da noite vira terra de ninguém e de tudo aparece e reaparece como devastação humana na manhã seguinte, assim como este cartão com impecável design colorido, lúdico e expressivo, neste caso de paixão ao sujeito incógnito. 

O dia amanheceu muito calmo e por este motivo aquela prece amorosa ainda ali se encontrava, largada pelo seu objeto e esquecida pelo seu autor, que talvez não a tenha remetido e por qualquer motivo largou ao vento da noite anterior para que o mar fizesse o trabalho de levar para longe aquele engano, aquele ato intempestivo declaratório que Lili poderia ter suspeitado que não teria a recepção ou a guarida no coração do moço. 

Ali estava o bilhete composto com o capricho da letra feminina jogado com tal maestria na areia da praia, com pisadas relutantes ao seu redor como se humanos e animais respeitassem aquela cartinha colorida, banhada pelo sol e a mercê de olhares curiosos na leitura do conteúdo. Quem sabe Lili o levava para onde ia e mostrava para quem quer que fosse de seus amigos e indagava sobre a dúvida da entrega ou não ao moço amado, mesmo que a data comemorada já fosse parte do passado. E assim a poesia e o mistério das areias praianas de inverno se instalam sutilmente.

sábado, 8 de maio de 2021

Por cima

Espiei por cima do ombro, movimento que tenho feito muito raramente, mas o fiz, por algum motivo camuflado e lembrei que determinados assuntos não é bom perder o hábito de praticar, então fui lá, conferir o que me parecia - no íntimo  - me chamar tanta atenção. Em tempos mais atrasados havia decidido levantar o nariz e enfunar as narinas tal como as velas das embarcações que navegam por aqui, absorvendo a maresia que além de me despertar me faz olhar com clareza o entorno e muito mais, o interno. 

Percebi que havia um pequeno percurso que obrigatoriamente eu devia trilhar sob pena de perder as melhores lembranças, que já guardadas insistem em aparecer quando menos convém ou quando menos se espera, mas confesso que descobri que o sujeito oculto da vida está sempre de plantão, de olho arregalado examinando o para frente para trás como uma máquina de costura de fazer bainhas – tempos antigos – que vai em zigue-zague e que pesponta o tecido com exatidão matemática. 

Decidi explorar este lugar que se apresentou como um filme antigo, algumas imagens em preto e branco outras em um sépia amarelado como folha de outono, acompanhado por aromas que reconheço como se fosse uma fotografia que recebe retoques da cor original, podendo aparentar outro matiz, em virtude da passagem do tempo. Apesar de tudo isso a figura surgiu nítida e comovedora um recado para mim que espiar por sobre os ombros terá sempre, e cada dia mais, resultado emocionante.

Gosto amargo

  Girei os calcanhares com gosto amargo na boca travando meu raciocínio para reconhecer o espaço de tempo que ocupo desde há muito e que hoj...